sábado, 25 de dezembro de 2010

Virar a página


O tempo é inexorável. Segundo após segundo, dia após dia, tudo se transforma. Na verdade, o tempo não passa. Determinante do vir a ser físico e biológico, o tempo é uma dimensão da realidade cósmica evolutiva. As mudanças vão deixando seu rastro, no mundo e em nós mesmos. A consciência reflexiva registra estas mudanças e distingue nelas uma sequência, extraindo desta experiência a falsa impressão de que o tempo passa. Todavia, nós é que passamos, individualmente, como seres temporais, ao nos identificarmos com a própria finitude. Inquietos, nos damos conta de que nos exaurimos nos determinismos físico-biológicos. Os processos físico-químicos, cada vez mais complexos, que resultaram na vida são eternos, a existência individual do ser biológico é que é finita. E nesse vir a ser finito caracterizam-se, num movimento temporal, as mudanças centradas no presente. Tomando-o como referência, o presente que flui separa o já vivido, e o que está por vir. Portanto, o presente, numa perspectiva linear, é um corte do tempo, vivenciado na “existência”[1], ao separar o passado e o futuro. Um átimo tão fugaz que, psicologicamente, é difícil identificá-lo. Todavia, o real, em ato, só ocorre no presente. Portanto, o culto do ontem e o fascínio do amanhã podem obstruir a única chance que temos de agir livremente em cada momento das nossas vidas. Perdemos, assim, a única oportunidade de trabalhar o hoje, preparando um futuro auspicioso. Porque o passado congelado no presente não deixa espaço para a ação livre. E a plenitude do amanhã depende das diligências efetivas no hoje.
            Guardemos, pois, as lembranças agradáveis no seu arquivo próprio, evocando-as quando forem úteis ao presente criativo. A experiência acumulada ajuda, mas é a inspiração atual que cria o “novo” no presente que flui. Projetemos grandes feitos, e ajamos, agora, coerentes com os propósitos definidos na elaboração dos nossos projetos. Mas não nos escravizemos nem às lembranças que entulham o presente, nem às expectativas projetadas, pois, a todo o momento é possível inovar. Deixemos espaço no presente para agir livremente, porque só no “agora” podemos criar e amar. Ninguém ama ou cria no passado ou no futuro, mas no aqui e agora... “criando” e “amando” vivemos os momentos áureos da “existência”...  
            Façamos uma analogia entre a “existência”, e a leitura de um livro. A “existência” se desdobra num vir a ser pontuado por ontens, hojes e amanhãs. Mas as ações são sempre realizadas no hoje. O livro, por sua vez, é um condensado de idéias que se desenvolvem em torno de um eixo temático, e são expostas ao longo das páginas impressas. Ao ler o livro é absolutamente necessário que façamos esta leitura página por página até a última. Podemos memorizar lances já lidos do texto, e alimentar a curiosidade pelo desfecho da estória desenvolvida no livro, mas é na leitura de cada página que estamos concentrados, vivenciando as emoções do enredo, ou vislumbrando a mensagem do texto.
Contudo, se ao lermos a primeira página ficarmos a contemplar a verdade e beleza que dela emanam, sem vira-la, as seguintes nunca serão conhecidas. Dessa forma, “aborta” no nascedouro a possibilidade de conhecer a obra, e o leitor deixará de apreciar o desenvolvimento do tema em questão. Analogicamente seremos “abortos” existenciais se não formos capazes de virar as páginas da nossa própria “existência”, uma por uma, cada uma a seu tempo.
            Com essa analogia queremos enfatizar a necessidade de não nos deixarmos paralisar, hipnotizados pelos encantos do passado que foi bom enquanto durou, mas sendo apenas memória, não é real e não deve obstruir a oportunidade de agir, agora, concretamente. Isso implica num esforço concentrado da vontade dirigida, objetivamente,  contra o enleio fantasista no deleite da lembrança de um momento que não se repetirá jamais.
            Ao virar a página do livro, ou da existência poderemos deparar, respectivamente, com um lance emocionante do enredo, ou com uma experiência existencial nova e enriquecedora...


[1] Vida consciente

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Corrida de revezamento



O idoso é mais sensível ao tratamento que recebe dentro da própria família, como profissional, ou membro da coletividade. É óbvio que esta sensibilidade exaltada tem a ver com a idéia que o idoso faz de si mesmo. Aliás, isso acontece em qualquer idade. Nossas reações são subordinadas à autoavaliação que fazemos... quanto mais elevada a autoestima, mais ponderadas são nossas respostas nas situações existenciais em que nos envolvemos. O agravante, no caso do idoso é que, dadas as circunstâncias do envelhecimento, cresce a necessidade de atenção especial sem a qual ele se sente abandonado... pior ainda quando pressupõe ser credor desse cuidado como prêmio por seu desempenho nos anos idos. Embora uma visão crítica deste pressuposto mostre ser injustificada a idéia de os filhos obrigarem-se a dar assistência integral ao idoso pelo que ele fez no passado. Injustificada porque os feitos apresentados como o motivo de tal presunção fizeram parte, à época, da postura politicamente correta exigida pela conjuntura familiar. Portanto, nada é devido a quem quer que seja por ter agido da única forma decente que a ocasião exigia. O que não anula o respeito mútuo, e a solidariedade entre filhos e pais idosos, alicerçada em sentimentos espontâneos. A gratuidade do envolvimento sincero de idosos e jovens confere uma aura de nobreza ao relacionamento entre ambos. Mas esses laços de solidariedade são construídos numa longa convivência equânime, justa e generosa. Consolidá-los custa uma vida de pequenas renúncias, muita paciência e  disponibilidade para doação.
São tantas as perdas sofridas, que o sentimento de menos valia do idoso é muito frequente. Ele percebe que está ficando para trás, natural e inevitavelmente. É a realidade. O trem da história está em movimento permanente, e dele temos de saltar na hora certa para ceder lugar aos que vão chegando. Essa retirada para os bastidores da “existência” é sempre dolorosa, mas não precisa ser trágica. É salutar a analogia com uma corrida de revezamento. Indispensável se torna passar aos mais jovens a missão histórica que nos coube, depois de cumprirmos a nossa parte. Da mesma forma que não há desdouro em entregar o bastão ao atleta descansado, na competição esportiva que tomamos como paradigma.
Os mais jovens, ciosos de ocuparem os espaços que pleiteiam e que merecem, deslocam os mais velhos das posições que ocuparam quando no pleno uso das suas capacidades. Na vida social algo semelhante acontece. Os papos habituais dos moços giram em torno de acontecimentos acadêmicos, esportes, encontros lúdicos, festas, e namoricos... Por mais atualizado, participante, e aberto às novidades que seja, o idoso não consegue acompanhar a vida trepidante dos mais moços; assim como são raros os jovens que estão dispostos a sorver a sabedoria dos mais velhos numa conversa interessante.
Todo homem sabe de sua própria fragilidade e finitude. Mas ao passar dos anos choca-se com a realidade. Poucos estão realmente preparados para enfrentar as perdas da velhice com estoicismo, bom senso e ânimo para continuar produtivo, de alguma forma.
Entre os idosos existencialmente centrados, a humildade e a sabedoria andam sempre juntas. Surpreendentemente, há indivíduos iletrados que se tornam sábios, não obstante serem ignorantes. Isto confirma que o equilíbrio das potências da alma no culto à verdade e no compromisso com a justiça é latente na dinâmica da consciência reflexiva. Portanto, ninguém está excluído da possibilidade de desenvolver a humildade com a própria experiência de vida... mas isso demanda sempre um esforço consciente dirigido, a longo prazo. Pelo que o número de anos vividos não garante a sabedoria, irmã gêmea da humildade...
Para muitos a saudade incontrolável dos verdes anos obstrui a serenidade no ocaso da vida. Mas chega sempre o momento em que a realidade vence a fantasia dos saudosistas e a própria Natureza ensina como fazer o revezamento necessário e inevitável, nesta corrida histórica na qual fomos inscritos compulsoriamente.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Enigma do feminino


Alguém já disse que a dimensão telúrica da mulher fundamenta--se na sua relação com Natureza. A mulher está “no mundo” (dentro), e não “com o mundo” (fora), como acontece com o homem. São duas maneiras de o “ser consciente” relacionar-se com sua circunstância. A mulher sente o mundo, enquanto o homem precisa analisá-lo para compreendê-lo. A intuição feminina assentaria nessa intimidade com a Natureza, consubstanciada na identidade do inconsciente feminino com as forças vivas da criação. Por tudo isso o encantamento que o feminino evoca repercute a magia de um enigma.
Não se pode definir com precisão o “feminino”, e, todavia, é nele que está o poder de sedução pelo qual a mulher se torna provocante e “poderosa”. O mistério que a envolve, é o “leitmotiv” do sonho romântico e da poesia, em oposição à obviedade masculina. O homem se revela por inteiro, expondo-se, desarmado, ao olhar do “outro”. Por isso, sai do sério quando se descobre, quase indefeso, sem chão para uma pretensa superioridade, culturalmente, construída...
A mulher é amável por todas as manifestações legítimas do gênero feminino. As que tocam os sentidos externos encantam e seduzem pela beleza estética fonte do estímulo que induz o frisson sensual; as que tocam os sentidos internos comovem pela modulação afetiva delicada e sutil. O máximo fascínio está no “feminino exemplar”, o modelo que reúne todas as virtudes representativas do gênero. Embora só exista como idéia pura, o mistério que o envolve está presente em todas as mulheres. Assim, a mulher seduz por sua presença física, mas cativa por suas virtudes menos óbvias como a cordura, a receptividade, a disponibilidade confiante e sensata, a segurança, a fidelidade crítica e delicada a si mesma, e a coerência dos próprios sentimentos.
Nas relações de gênero, a cupidez do homem diante da plástica harmoniosa feminina evolui, insensivelmente, para a sensualidade que busca o contato pele a pele, e, ainda assim, num lampejo de espiritualidade diviniza a imagem da mulher amada. A atração implícita nestas relações se exerce, de início, através do encanto, da sedução, e da expectativa do prazer sensual. Mas o climax do encontro é a relação inter-subjetiva, consubstanciada no “nós” existencial. Contudo, este é, também, um modelo ideal. O homem nunca desiste de realizar o encontro perfeito, mas raramente o consegue e, na maioria das vezes, contenta-se com relacionamentos menos exemplares sem os quais, porém, sua vida seria mais vazia. Lamentavelmente, a maioria dos pares humanos vive sob o império da sensualidade e muitos não percebem a pobreza existencial desse nível de ligação
Em quaisquer circunstâncias, o enigma do “feminino” confere à mulher um poder sobre o homem que só o poeta sabe exaltar em cantos e versos. É pena que algumas não saibam utilizar este potencial inato, desperdiçando-o ...
            No seu significado mais transcendental, o enigma do feminino se reporta à origem do Universo. Nesta perspectiva é oportuno lembrar o pensamento oriental ao afirmar que o encontro, em plenitude, do feminino (Yin) e do masculino (Yang) reflete a união dos Princípios eternos, opostos e indissociáveis que constituem a unidade do absoluto (Tao). No plano histórico, o masculino e o feminino obedecem à “lógica fatal das coisas, lei eterna da criação”[1] como diz o Poeta inspirado no mistério da existência humana que elege como ideal “...a imensa aspiração de ser divino no supremo prazer de ser humano”[2].


[1] Raul de Leoni em “Instinto”
[2] Raul de Leoni em “Ode a um Poeta morto”.