O tempo é inexorável. Segundo após segundo, dia após dia, tudo se transforma. Na verdade, o tempo não passa. Determinante do vir a ser físico e biológico, o tempo é uma dimensão da realidade cósmica evolutiva. As mudanças vão deixando seu rastro, no mundo e em nós mesmos. A consciência reflexiva registra estas mudanças e distingue nelas uma sequência, extraindo desta experiência a falsa impressão de que o tempo passa. Todavia, nós é que passamos, individualmente, como seres temporais, ao nos identificarmos com a própria finitude. Inquietos, nos damos conta de que nos exaurimos nos determinismos físico-biológicos. Os processos físico-químicos, cada vez mais complexos, que resultaram na vida são eternos, a existência individual do ser biológico é que é finita. E nesse vir a ser finito caracterizam-se, num movimento temporal, as mudanças centradas no presente. Tomando-o como referência, o presente que flui separa o já vivido, e o que está por vir. Portanto, o presente, numa perspectiva linear, é um corte do tempo, vivenciado na “existência”[1], ao separar o passado e o futuro. Um átimo tão fugaz que, psicologicamente, é difícil identificá-lo. Todavia, o real, em ato, só ocorre no presente. Portanto, o culto do ontem e o fascínio do amanhã podem obstruir a única chance que temos de agir livremente em cada momento das nossas vidas. Perdemos, assim, a única oportunidade de trabalhar o hoje, preparando um futuro auspicioso. Porque o passado congelado no presente não deixa espaço para a ação livre. E a plenitude do amanhã depende das diligências efetivas no hoje.
Guardemos, pois, as lembranças agradáveis no seu arquivo próprio, evocando-as quando forem úteis ao presente criativo. A experiência acumulada ajuda, mas é a inspiração atual que cria o “novo” no presente que flui. Projetemos grandes feitos, e ajamos, agora, coerentes com os propósitos definidos na elaboração dos nossos projetos. Mas não nos escravizemos nem às lembranças que entulham o presente, nem às expectativas projetadas, pois, a todo o momento é possível inovar. Deixemos espaço no presente para agir livremente, porque só no “agora” podemos criar e amar. Ninguém ama ou cria no passado ou no futuro, mas no aqui e agora... “criando” e “amando” vivemos os momentos áureos da “existência”...
Façamos uma analogia entre a “existência”, e a leitura de um livro. A “existência” se desdobra num vir a ser pontuado por ontens, hojes e amanhãs. Mas as ações são sempre realizadas no hoje. O livro, por sua vez, é um condensado de idéias que se desenvolvem em torno de um eixo temático, e são expostas ao longo das páginas impressas. Ao ler o livro é absolutamente necessário que façamos esta leitura página por página até a última. Podemos memorizar lances já lidos do texto, e alimentar a curiosidade pelo desfecho da estória desenvolvida no livro, mas é na leitura de cada página que estamos concentrados, vivenciando as emoções do enredo, ou vislumbrando a mensagem do texto.
Contudo, se ao lermos a primeira página ficarmos a contemplar a verdade e beleza que dela emanam, sem vira-la, as seguintes nunca serão conhecidas. Dessa forma, “aborta” no nascedouro a possibilidade de conhecer a obra, e o leitor deixará de apreciar o desenvolvimento do tema em questão. Analogicamente seremos “abortos” existenciais se não formos capazes de virar as páginas da nossa própria “existência”, uma por uma, cada uma a seu tempo.
Com essa analogia queremos enfatizar a necessidade de não nos deixarmos paralisar, hipnotizados pelos encantos do passado que foi bom enquanto durou, mas sendo apenas memória, não é real e não deve obstruir a oportunidade de agir, agora, concretamente. Isso implica num esforço concentrado da vontade dirigida, objetivamente, contra o enleio fantasista no deleite da lembrança de um momento que não se repetirá jamais.
Ao virar a página do livro, ou da existência poderemos deparar, respectivamente, com um lance emocionante do enredo, ou com uma experiência existencial nova e enriquecedora...