A mídia divulga com frequência desastres ecológicos e sociais, os
últimos geralmente atrelados à corrupção e ao crime contra a vida. Esses
acidentes comprometem, respectivamente, o equilíbrio dos biomas no nosso
planeta e a convivência entre os homens. Estiagens prolongadas, alternando com
chuvas torrenciais e inundações, furacões, tsunamis representam turbulências da
própria natureza; não as podemos evitar. Por outro lado, o desmando
administrativo, a cupidez, o uso da violência e a irresponsabilidade humana na
condução da coisa pública envolvem a escolha de cada um, e, portanto, são
controláveis.
Escandalosamente, a fome ainda ameaça,
hoje, a sobrevivência de bilhões de indivíduos no mundo inteiro. Presenciamos, recentemente, a
emigração desordenada de milhões de seres humanos que fogem de seus países de
origem, tangidos pela fome, guerras
fratricidas e extrema pobreza. Não é à
toa que a ONU acaba de declarar que estamos ameaçados neste começo de século
por uma “calamidade” que compromete a dignidade e o bem estar da humanidade. Salvo
os cataclismos naturais, alguns dos quais também ligados à ação poluente do
homem, tudo corre por conta da falta de planejamento e má gestão do bem comum
que um sistema econômico perverso, perversamente administrado, concentra cada
vez mais nas mãos de poucos. Por outro lado, o desrespeito ao outro, traduzido
em condutas levianas, está na raiz da violência urbana, dos acidentes rodoviários,
ferroviários e aeroviários promovendo mais mortes do que a soma das provocadas pelos
desastres da natureza e por doenças graves.
Paralelemente observa-se a incompetência do Estado político para gerir
a coisa pública, o que se traduz na incapacidade de promover a justa distribuição do bem comum
entre todos os cidadãos; obviamente, esta situação se agrava em razão de
expressivo contingente da sociedade não ser capaz de exercer a cidadania plena.
A alarmante falta de ética dos administradores
das empresas pública e privada é uma extensão (muito mais grave por suas consequências) da corrupção
praticada pela população em geral. Nesse contexto, a prática corrupta escandalosa
dos executivos e parlamentares prolonga a desfaçatez da população, como um todo. Entre outros
expedientes condenáveis, é notória a
utilização de recibos falsos para burlar a Receita Federal, ou a tentativa de
subornar o guarda de trânsito, ou o recurso a
atestado médico gracioso para justificar a falta ao trabalho...
considere-se também como um deslize ético reprovável a imposição aos
trabalhadores da tirania do salário mínimo mesmo quando o beneficiário (patrão)
do trabalho prestado reconhece o bom desempenho do trabalhador e pode remunerar
melhor sua atividade. Essa corrupção a
varejo está tão difundida que o comportamento ético (por definição, obrigatório)
dá manchete, pois já é tido por muitos como um ato heroico. É necessário
lembrar que “para mudar o mundo cada um precisa exigir de si mesmo a mudança
que deseja ver no mundo”.
Os organismos internacionais, também não se têm demonstrado
suficientemente fortes para sanar as
divergências que pautam a desarmonia mundial afetando a paz entre as nações. Numa
visão mesmo superficial do nosso mundo conturbado, em que a vida e a natureza
estão permanentemente ameaçadas, espanta-nos dar-nos conta de que tudo isso
está acontecendo depois de cinquenta mil anos do aparecimento do primeiro Homo
sapiens na face da Terra, tempo bastante para o amadurecimento das práticas sociais
solidárias não fora o individualismo e a ambição prevalentes no comportamento
dos homens. Vivemos ainda sob a ameaça permanente
à sobrevivência da espécie, e, no entanto, tudo depende, hoje, de decisões
conscientes e responsáveis. Estamos nos destruindo por falta de solidariedade,
ou seja, da prática irrestrita da cooperação e da partilha entre os homens,
comportamento que é a marca definitiva da humanização.
A observação de como caminha a humanidade, hoje, dá lugar a temores
apocalípticos. Mas, acompanhando a linha evolutiva desde o Homo erectus, passando pelo H.
faber, H. habilis até o estágio
atual do H.sapiens sapiens é fácil imaginar que nas etapas
anteriores de sua evolução, antes da comunicação verbal e dispondo apenas da
tecnologia paleolítica para resolver os problemas emergentes, o homem passou
por situações muito mais difíceis tendo em vista garantir a sobrevivência da
espécie. É bem verdade que os problemas
sociais, políticos e econômicos eram muito mais simples no passado distante.
Pode-se mesmo dizer que no início da humanidade tudo girava em torno da luta
pelo alimento e por um abrigo. Catando
frutos, pescando e caçando, abrigando-se em cavernas o homem concentrava todo
seu esforço no sentido de sobreviver,
e essa preocupação era bastante absorvente para ocupá-lo por inteiro.
Confrontando a cultura do H. habilis
com a do H. sapiens sapiens constata-se uma admirável diferença
entre essas duas fases da Evolução. Na primeira a humanidade dispunha de
praticamente nenhum recurso tecnológico, mas contava com a solidariedade
imposta pelo desejo de sobrevivência que unia os homens na caça e na coleta de
frutos silvestres; na segunda desenvolveu-se tecnologia refinada sem o crescimento
paralelo da sabedoria necessária para gerir as fabulosas conquistas da ciência
e da técnica, em benefício de todos. Em ambos os casos o comportamento ideal desejável
sempre girou em torno da solidariedade comunitária. O que lamentavelmente não
tem acontecido de forma extensiva. Ao
contrário constatamos que a falsa impressão de segurança produzida pelas
facilidades que a tecnologia oferece induziu a impressão enganosa de independência
pessoal, reforçando o predomínio do individualismo sobre a solidariedade
comunitária. Ao comprar no supermercado uma caixa de fósforos, mal nos damos
conta de que estamos usufruindo do trabalho de dezenas de pessoas que atuaram
na produção da matéria prima, na fabricação, no transporte e comercialização do
produto. Dependemos do esforço de muitos para desfrutar do conforto de acender
um simples palito de fósforo. Mas a falta de visibilidade do trabalho embutido
no produto industrializado induz a falsa impressão de autossuficiência e
independência; essa ilusão leva ao individualismo exacerbado e torna mais
difícil organizar uma sociedade voltada para a distribuição equânime do bem
comum. Resultado, somos capazes de produzir
alimento suficiente para suprir a necessidade alimentar da humanidade inteira,
todavia em muitos lugares no mundo, agora, há milhões de pessoas morrendo de
fome.
Por sua imensa capacidade de adaptar-se a todos os climas e, ao mesmo
tempo, por não estar submetida aos processos naturais de controle da natalidade,
a espécie humana multiplicou-se de forma surpreendente. Os demais animais só
procriam em determinados momentos impostos pela natureza o que redunda num
processo natural de controle dos nascimentos. Mas, entre os homens só a
paternidade consciente e responsável é
capaz de manter a multiplicação da espécie em níveis aceitáveis, tendo
em vista o bem-estar de todos. Cabe ao próprio homem estabelecer o marco
regulatório da procriação na sua espécie. E esta conquista depende de elevado
grau de humanização e socialização com ênfase na solidariedade. Da mesma
maneira, a nutrição e conforto da humanidade estão intimamente relacionados com
a organização planetária da produção de alimentos e de bens de consumo,
que deve ser prolongada por uma política de distribuição equânime de tudo que é
produzido, por todos os homens. Tudo
isso envolve problemas políticos, econômicos e sociais cuja solução depende do
grau de consciência comunitária das sociedades humanas. Refinamento
comportamental que demanda o esforço da participação de todos no humanismo
inscrito no ideal cristão do “amai-vos uns aos outros”. Comportamento que para
muitos pode parecer romântico, mas, verdadeiramente, é a única saída para a sobrevivência da
humanidade.
Arrisco dizer sem medo de errar que temos, hoje, mais condição material
de resolver os problemas que afligem a humanidade, do que tiveram os nossos
antepassados. Atualmente, a solução dos problemas humanos depende da escolha e decisão
pessoais de viver de acordo com o
espírito comunitário; ou seja, de praticar, criteriosa e respeitosamente, a distribuição
entre os homens dos recursos materiais de que dispomos, para que todos vivamos
confortavelmente. Lamentávelmente, mesmo havendo crescido tanto tecnologicamente, não desenvolvemos, ainda, de
modo extensivo, a prática solidária da cooperação e da partilha. Ao contrário,
o egoísmo está afastando o homem da orientação comunitária na organização
social, a única escolha compatível com a sobrevivência da humanidade.
Everaldo Lopes
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