quarta-feira, 24 de maio de 2017

Tropeços do processo evolutivo



A mídia divulga com frequência desastres ecológicos e sociais, os últimos geralmente atrelados à corrupção e ao crime contra a vida. Esses acidentes comprometem, respectivamente, o equilíbrio dos biomas no nosso planeta e a convivência entre os homens. Estiagens prolongadas, alternando com chuvas torrenciais e inundações, furacões, tsunamis representam turbulências da própria natureza; não as podemos evitar. Por outro lado, o desmando administrativo, a cupidez, o uso da violência e a irresponsabilidade humana na condução da coisa pública envolvem a escolha de cada um, e, portanto, são controláveis.
Escandalosamente,  a fome ainda ameaça, hoje, a sobrevivência de bilhões de indivíduos no mundo  inteiro. Presenciamos, recentemente, a emigração desordenada de milhões de seres humanos que fogem de seus países de origem, tangidos pela fome,  guerras fratricidas e extrema pobreza.  Não é à toa que a ONU acaba de declarar que estamos ameaçados neste começo de século por uma “calamidade” que compromete a dignidade e o bem estar da humanidade. Salvo os cataclismos naturais, alguns dos quais também ligados à ação poluente do homem, tudo corre por conta da falta de planejamento e má gestão do bem comum que um sistema econômico perverso, perversamente administrado, concentra cada vez mais nas mãos de poucos. Por outro lado, o desrespeito ao outro, traduzido em condutas levianas, está na raiz da violência urbana, dos acidentes rodoviários, ferroviários e aeroviários promovendo mais mortes do que a soma das provocadas pelos desastres da natureza e por doenças graves.
Paralelemente observa-se a incompetência do Estado político para gerir a coisa pública, o que se traduz na incapacidade de  promover a justa distribuição do bem comum entre todos os cidadãos; obviamente, esta situação se agrava em razão de expressivo contingente da sociedade não ser capaz de exercer a cidadania plena. A alarmante  falta de ética dos administradores das empresas pública e privada é uma extensão  (muito mais grave por suas consequências) da corrupção praticada pela população em geral. Nesse contexto, a prática corrupta escandalosa dos executivos e parlamentares prolonga a desfaçatez da  população, como um todo. Entre outros expedientes condenáveis, é  notória a utilização de recibos falsos para burlar a Receita Federal, ou a tentativa de subornar o guarda de trânsito, ou o recurso a  atestado médico gracioso para justificar a falta ao trabalho... considere-se também como um deslize ético reprovável a imposição aos trabalhadores da tirania do salário mínimo mesmo quando o beneficiário (patrão) do trabalho prestado reconhece o bom desempenho do trabalhador e pode remunerar  melhor sua atividade. Essa corrupção a varejo está tão difundida que o comportamento ético (por definição, obrigatório) dá manchete, pois já é tido por muitos como um ato heroico. É necessário lembrar que “para mudar o mundo cada um precisa exigir de si mesmo a mudança que deseja ver no mundo”.
Os organismos internacionais, também não se têm demonstrado suficientemente fortes para sanar  as divergências que pautam a desarmonia mundial afetando a paz entre as nações. Numa visão mesmo superficial do nosso mundo conturbado, em que a vida e a natureza estão permanentemente ameaçadas, espanta-nos dar-nos conta de que tudo isso está acontecendo depois de cinquenta mil anos do aparecimento do primeiro Homo sapiens na face da Terra, tempo bastante para o amadurecimento das práticas sociais solidárias não fora o individualismo e a ambição prevalentes no comportamento dos homens.  Vivemos ainda sob a ameaça permanente à sobrevivência da espécie, e, no entanto, tudo depende, hoje, de decisões conscientes e responsáveis. Estamos nos destruindo por falta de solidariedade, ou seja, da prática irrestrita da cooperação e da partilha entre os homens, comportamento que é a marca definitiva da humanização.
A observação de como caminha a humanidade, hoje, dá lugar a temores apocalípticos. Mas, acompanhando a linha evolutiva desde o Homo erectus, passando pelo H. faber, H. habilis  até o estágio atual do H.sapiens sapiens é fácil imaginar que nas etapas anteriores de sua evolução, antes da comunicação verbal e dispondo apenas da tecnologia paleolítica para resolver os problemas emergentes, o homem passou por situações muito mais difíceis tendo em vista garantir a sobrevivência da espécie. É  bem verdade que os problemas sociais, políticos e econômicos eram muito mais simples no passado distante. Pode-se mesmo dizer que no início da humanidade tudo girava em torno da luta pelo alimento e por um abrigo.  Catando frutos, pescando e caçando, abrigando-se em cavernas o homem concentrava todo seu esforço no sentido de     sobreviver, e essa preocupação era bastante absorvente para ocupá-lo por inteiro.
Confrontando a cultura do H. habilis com a do H. sapiens sapiens constata-se uma admirável diferença entre essas duas fases da Evolução. Na primeira a humanidade dispunha de praticamente nenhum recurso tecnológico, mas contava com a solidariedade imposta pelo desejo de sobrevivência que unia os homens na caça e na coleta de frutos silvestres; na segunda desenvolveu-se tecnologia refinada sem o crescimento paralelo da sabedoria necessária para gerir as fabulosas conquistas da ciência e da técnica, em benefício de todos. Em ambos os casos o comportamento ideal desejável sempre girou em torno da solidariedade comunitária. O que lamentavelmente não tem acontecido de forma extensiva.  Ao contrário constatamos que a falsa impressão de segurança produzida pelas facilidades que a tecnologia oferece induziu a impressão enganosa de independência pessoal, reforçando o predomínio do individualismo sobre a solidariedade comunitária. Ao comprar no supermercado uma caixa de fósforos, mal nos damos conta de que estamos usufruindo do trabalho de dezenas de pessoas que atuaram na produção da matéria prima, na fabricação, no transporte e comercialização do produto. Dependemos do esforço de muitos para desfrutar do conforto de acender um simples palito de fósforo. Mas a falta de visibilidade do trabalho embutido no produto industrializado induz a falsa impressão de autossuficiência e independência; essa ilusão leva ao individualismo exacerbado e torna mais difícil organizar uma sociedade voltada para a distribuição equânime do bem comum. Resultado, somos capazes de  produzir alimento suficiente para suprir a necessidade alimentar da humanidade inteira, todavia em muitos lugares no mundo, agora, há milhões de pessoas morrendo de fome.
Por sua imensa capacidade de adaptar-se a todos os climas e, ao mesmo tempo, por não estar submetida aos processos naturais de controle da natalidade, a espécie humana multiplicou-se de forma surpreendente. Os demais animais só procriam em determinados momentos impostos pela natureza o que redunda num processo natural de controle dos nascimentos. Mas, entre os homens só a paternidade consciente e responsável é  capaz de manter a multiplicação da espécie em níveis aceitáveis, tendo em vista o bem-estar de todos. Cabe ao próprio homem estabelecer o marco regulatório da procriação na sua espécie. E esta conquista depende de elevado grau de humanização e socialização com ênfase na solidariedade. Da mesma maneira, a nutrição e conforto da humanidade estão intimamente relacionados com a organização planetária  da produção de alimentos e de bens de consumo, que deve ser prolongada por uma política de distribuição equânime de tudo que é  produzido, por todos os homens. Tudo isso envolve problemas políticos, econômicos e sociais cuja solução depende do grau de consciência comunitária das sociedades humanas. Refinamento comportamental que demanda o esforço da participação de todos no humanismo inscrito no ideal cristão do “amai-vos uns aos outros”. Comportamento que para muitos pode parecer romântico, mas, verdadeiramente, é a  única saída para a sobrevivência da humanidade.
Arrisco dizer sem medo de errar que temos, hoje, mais condição material de resolver os problemas que afligem a humanidade, do que tiveram os nossos antepassados. Atualmente, a solução dos problemas humanos depende da escolha e decisão pessoais de viver de acordo  com o espírito comunitário; ou seja, de praticar, criteriosa e respeitosamente, a distribuição entre os homens dos recursos materiais de que dispomos, para que todos vivamos confortavelmente. Lamentávelmente, mesmo havendo crescido tanto  tecnologicamente, não desenvolvemos, ainda, de modo extensivo, a prática solidária da cooperação e da partilha. Ao contrário, o egoísmo está afastando o homem da orientação comunitária na organização social, a única escolha compatível com a sobrevivência da humanidade.
 Everaldo Lopes

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