sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Tributo a Raul de Leoni

TRIBUTO A RAUL DE LEONI (I)

  Nascido em Petrópolis aos 21 dias do mês de julho de 1895, Raul de Leoni viveria apenas 31 anos para amadurecer o seu talento poético. Prosador reconhecido por muitos críticos entre os melhores da crônica literária nacional é mais lembrado pelos poemas que nos legou num único livro “Luz Mediterrânea”. Esta coletânea é um testemunho expressivo do seu estro reconhecido desde quando “...era ainda bem criança e já possuindo a sensibilidade evocadora de um poeta de símbolos profundos”[1].
  Cada vez mais conhecido e admirado, muitos vêem na sua obra, contraditoriamente, laivos pagãos, serenidade estóica, um cristianismo temperado na “dúvida amável”, enfim, uma espiritualidade cristã que contrasta com o materialismo que lhe tem sido imputado. No fundo Raul de Leoni era antes de tudo um humanista apaixonado. Sua obra poética revela um pendor especial para a análise da “existência”, na linguagem espontânea e fluente do intelectual culto, cuja “...alma curiosa  dos abismos, / Inquieta da existência e doente do Além...” “Sofria toda a humanidade.../ Nessa contemplação imponderável”.[2] Na obra de Leoni, o Poeta fascina por suas imagens fluidas ricas de significado, enquanto o pensador sensibiliza pela percepção das sutilezas da “existência”. Neste tributo despretensioso quero apenas dar voz à admiração comovida de um leitor assíduo do Poeta Filósofo.
  Em seus versos, há lampejos de um existencialismo que se “ignora como pensamento filosófico, e como sistematização de uma filosofia da vida”, como disse um dos seus críticos. A obra de Raul de Leoni vista por essa ótica reflete a despreocupação do “pensador” com os rótulos que se poderiam pespegar no seu pensamento, enquanto estava inteiramente absorvido no esforço de penetrar “Todas as grandes realidades vivas / E encontrar as verdades cristalinas / do universo visível e aparente / no coração das horas fugitivas”[3]. O poeta vivia sua experiência existencial, de corpo inteiro, desligado do julgamento alheio.
  Possuidor de sólida cultura clássica, impregnado de uma rebeldia a um tempo só arrojada e comedida, Raul de Leoni conquistou a simpatia de diferentes correntes literárias e artísticas, com seus versos etéreos, cuja leveza se difunde mansa e profundamente, impregnando as coisas, fazendo levitar a solidez cósmica do universo.
  Pode-se imaginar o jovem poeta, pensativo diante das antinomias da existência, procurando desvendar o mistério dos contrastes existenciais, sem se render à impossibilidade de fazê-lo. Surpreendendo os pensamentos nascentes, explora as possibilidades e associações semânticas dos vocábulos, antes de congelarem-se em idéias contraditórias... e as utiliza como sugestões sutis de realidades intraduzíveis, revelando entrelinhas, em perfeitas imagens abstratas, o que as palavras não podem transmitir na sua rigidez conceitual marmórea. Usava com habilidade as palavras para evocar idéias e sentimentos complexos, conferindo-lhes um significado mais amplo, muito além dos limites interpretativos dos verbetes dicionarizados.
  A síntese foi a grande paixão do poeta, mesmo e sobretudo se ela lhe escapava, e o desafiava, como quando em “Noturno” ele vivenciou a “... ironia longínqua das estrelas ...” / “E...num silencioso desencanto foi adormecendo, lentamente, ...” / de olhos postos “Na fria fluidez azul do espaço eterno”[4]. Neste caso o desafio foi superado por uma intimidade cúmplice com a Natureza, algo como uma entrega mística.
  Tudo indica, a julgar pela serenidade do poeta diante da aproximação da morte, que ele conseguira realizar a sua síntese existencial. Disso dá testemunho os que o assistiram nos últimos instantes. A 21 de novembro de 1926, na cidade de Itaipava morria, em estado de graça, o jovem poeta.
  Em Luz Mediterrânea, Raul de Leoni é um Filósofo-Poeta, perfumando com a beleza dos seus versos as verdades mais profundas; e um Poeta-Filósofo, arrancando emoções estéticas do pensamento racional, sem a preocupação de sistematizá-lo numa doutrina. Daí a beleza espontânea da mensagem do sábio que disse, inspirado por intuição genial: “Não é preciso crer nas cousas, basta amá-las,/ Sendo que amar é muito mais que crer...”[5].Essa afirmação denuncia a linha mestra da caminhada existencial do Poeta no seu diálogo permanente com o mundo e consigo mesmo, em direção à plenitude humana... Ainda que tivesse tido momentos de dúvida, superados com ousadia...

“Espírito flexível e elegante,
Ágil, lascivo, plástico, difuso,
Entre as cousas humanas me conduzo
Como um destro ginasta diletante.

Comigo mesmo cínico e confuso,
Minha vida é um sofisma espiralante;
Teço lógicas trêfegas e abuso
Do equilíbrio, na Dúvida flutuante.

Bailarino dos círculos viciosos
Faço jogos sutis de idéias no ar,
Entre saltos brilhantes e mortais,

Com a mesma petulância singular
Dos grandes acrobatas audaciosos
E dos malabaristas de punhais... [6]

  Quanto mais sensível o homem, mais forte é o conflito entre a sensualidade exigente, e a inquietação ética... Assimilando os desejos da carne, o Poeta compara-se ao próprio “Mefistófeles”; mas também identifica na subjetividade inquieta, puros anseios de verdade e de justiça. Na turbulência do impacto, sente-se como um “sofisma espiralante”. Então, busca realizar a fusão do carnal (diabólico) e do espiritual (divino), presentes na condição humana conflitante. Na tentativa de superar o “cinismo” perturbador que se insinua despudorado, no comportamento humano ambíguo, o ser consciente procura amenizar o próprio egoísmo dos sentidos, com a prática de uma moral humanística.
  Ao emergir da virgindade casta, o homem sente que para conferir dignidade ao impulso sensual, é preciso purificá-lo no crisol da ternura. “Pratica os teus sentidos nobremente, /Na sensação das cousas belas e harmoniosas / E assim educarás melhor uma alma linda, / Parecida com tudo que sentires”[7].
A ternura permeia o simples contato pele a pele e as relações mais íntimas, mitigando-lhes o egoísmo da sensualidade pura. Ela é o filtro humanizante dos impulsos instintivos, transformados em necessidades fortes, mas controláveis pela vontade disciplinada. Neste contexto, o respeito à dignidade do outro é o princípio fundamental que legitima a intimidade física entre os seres humanos. Buscando o respaldo de uma transcendência absoluta para a solução amena dos seus conflitos envolvendo desejos contrariados, o poeta sonha...

“Sonho um cristianismo singular,
Cheio de amor divino e de prazer humano:
O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,
A beatitude com mais luz e com mais ar...

Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,
Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano,
Num misticismo lírico a sonhar
Na orla florida e azul de um lago italiano...

Um cristianismo sem renúncias e sem martírios,
Sem a pureza melancólica dos lírios,
Temperado na graça natural...

Um cristianismo sem mau-humor, que não existe,
Onde a Tristeza fosse um pecado venial
Onde a Virtude não precisasse ser triste...[8]

  Como, porém, integrar, numa vivência única, a natureza física, corporal, e a leveza imponderável da aspiração à transcendência, que convivem no ser consciente? De um lado, a matéria sensível organizada para o desempenho de funções que atendem à organização biológica e criam desejos imediatos, egoístas; e do outro, o espírito sequioso de infinito e de absoluto, que busca o equilíbrio e a perfeição ideais do “ser” total, numa comunidade de consciências?
  Palpando sua dimensão espiritual o poeta se define como um ser sutil, cuja alma é o “estado divino da matéria”:

“Na minha vida fluida de fantasma
Sou tão leve que quase não me sinto,
Nada há mais leve nem tão leve,
Sou mais leve do que a euforia de um anjo,
Mais leve do que á sombra de uma sombra
Refletida no espelho da Ilusão.

Nenhuma brutal lei do Universo sensível
Atua e pesa e nem de longe influi
No meu ser vago, difuso, esquivo
E no éter sereníssimo flutuo
Com a doce sutileza imponderável
De uma essência ideal que se volatiliza...

Passo através das cousas mais sensíveis
E as cousas que atravesso nem me sentem,
Porque na minha plástica sutil
Tenho a delicadeza transcendente
Da luz que flui através os corpos transparentes.
Sou quase imaterial como uma idéia...

E da matéria cósmica que tem
Tantos e variadíssimos estados
Eu sou o estado alma, quer dizer
O último estado rarefeito, estado ideal:
Alma, o estado divino da matéria!...”[9]
                                Everaldo Lopes
                      (Continua)

 





[1] Raul de Leoni – “Noturno”, in Luz Mediterrânea
[2]  Raul de Leoni-  “Noturno”, in Luz Mediterrânea
[3]  Raul de Leoni -  “Gaia Ciência”, in Luz Mediterrânea
[4]  Raul de Leoni – “Noturno”, in Luz Mediterrânea
[5]  Rauk de Leoni – “Do meu Evangelho”, in Luz Mediterrânea -
[6]  Raul de Leoni -  “Mefisto”, in Luz Mediterrânea
[7]  Raul de Leoni – “Do meu Evangelho”, in Luz Mediterrânea
[8]  Raul de Leoni – “Cristianismo”, in Luz Mediterrânea
[9]  Raul de Leoni – “De um Fantasma” , in Luz Mediterrânea -