O poeta inspirado
pela beleza da Natureza ou da mulher amada escreve um soneto apaixonado, sente
a ventura da criatividade e desfruta a paz da harmonia interior, num momento privilegiado
da existência. O mesmo poeta, num outro instante de lucidez existencial, descobre-se,
sobrenadando o vazio do seu vir a ser quando não está amando nem criando. Certamente,
a paixão episódica e o arroubo criativo isolado não se confundem com o amor sem
fronteiras que integra o ser consciente no contexto do todo perfeito da unidade
divina. E a experiência deste amor é fundamental para resgatar o homem de sua
inconformidade com a própria finitude.
A limitação temporal é sempre objeto
de preocupação do homem; pois a consciência de a qualquer momento ser tragado
pelo não ser é a expressão de uma realidade incontornável. O sofrimento moral
correspondente é para muitos um incômodo que tolda a alegria de viver. Por isso
a aceitação emocional deste desfecho será sempre um desafio para o ser
consciente. O medo de morrer está na raiz do próprio instinto de conservação,
manifestação normal em todo ser vivo, que se agrava dramaticamente no homem por
sua capacidade de imaginar, com antecedência, o próprio fim. Teoricamente só o
presente é real, mas, não raro nos surpreendemos ocupados com boas ou más
lembranças do passado e preocupados com as incertezas que nos aguardam no
futuro, realidades virtuais que deslocam a atenção sobre o presente real.
A inconformidade com a finitude é uma “loucura” peculiar da condição
humana. Porque no homem a autoconsciência do ser biológico o expõe
inevitavelmente à vivência de sua temporalidade constitutiva e,
consequentemente, à previsão do envelhecimento e da própria morte. Na dialética existencial vive-se morrendo, de
tal modo que processualmente vida e morte estão sempre entrelaçadas, ou seja, é
preciso morrer este minuto que passa agora, para poder vivê-lo. Todavia, sempre
pensamos a morte em termos absolutos como o fim definitivo da vida. Daí a
ansiedade da espera sem data prevista do desfecho fatal.
É insensato tentar escapar da provisoriedade da vida biológica e, no
entanto, é notório o medo de morrer considerado por muitos estudiosos como o
maior de todos os medos que afligem o homem. Por isso, na vida íntima de cada
um, torna-se evidente a necessidade de encontrar uma forma de superar a
angústia do ser humano de saber-se mortal. Analisando a questão em todos os
seus aspectos, na tentativa de amenizar a angústia existencial a proposta mais
razoável será contextualizar a existência numa dimensão mística, projetando-a
para além do tempo.
O medo inerente ao sentimento de finitude é exacerbado pela saudade da
vida, tão mais forte quanto maior o número de décadas vividas. É confortante para
o homem, pois, a força aquietadora da esperança de transcender a vida
biológica, vivência que encontra um amparo efetivo na crença em uma realização
transtemporal da essência espiritual do eu histórico. Esta expectativa remete
necessariamente a uma experiência mística contextualizada na fé em um absoluto
transcendental que tudo envolve na sua perfeição.
Assim, a existência[1]
implica numa contradição vivida subjetivamente entre o desejo de viver e o medo
de morrer. Oposição cuja única forma de contornar sem estresse é a doação pessoal
do ser consciente a um absoluto transcendental que o inclua. O que corresponde
a uma experiência mística embalada por fé ingênua (sem questionamentos). Embora
possamos afirmar a existência de Deus mediante especulação filosófica a partir
do conhecimento profundo do Universo e do processo evolutivo, a relação que
podemos estabelecer com o Criador é puramente intuitiva e emocional. Dessa
experiência a razão participa apenas remotamente; uma vez que o fundamento da
fé unificadora da consciência com o mundo é essencialmente místico. Para que a
fé produza seu efeito redentor não há que buscar razões para crer. Quem crê realmente
em Deus afirma: creio porque creio, e me entrego cegamente à vontade absoluta
do supremo Criador plenamente confiante no imenso amor que me faz existir como
beneficiário de Sua infinita misericórdia. Daí ser fundamental uma crença
ingênua para viver em plenitude a experiência mística, animado pela certeza de
experimentar a eternidade na presença majestosa de Deus.
Racionalmente Deus não pode ser confundido com uma realidade objetiva,
mas à luz de uma especulação metafísica O reconhecemos necessária[2]
e misteriosamente presente no universo palpável e em nossa própria realidade
pessoal na qual se dá a conhecer, obscuramente, pela manifestação das funções
psíquicas superiores[3],
só possível depois da supercomplexificação da matéria no Sistema Nervoso
Central no homem.
As pessoas
sofrem mais ao confrontar seu limite temporal, quando
são pessimistas, não
aprenderam a amar, não praticam a
generosidade, ou não
se sentem amadas. É compreensível que, em luta contra seus medos e incertezas
elas se perguntem: - Como reverter esta situação? A resposta é óbvia:
Optando pelo otimismo na prática existencial;
aprendendo a respeitar e cuidar do outro,
dando assim um
passo largo
em direção ao
amor; praticando a generosidade que começa quando fazemos empatia com
o outro e descobrimos em nós mesmos as suas fraquezas, assumindo que somos capazes de amar ou,
pelo menos,
respeitar o outro. Evidentemente, todos
esses movimentos interiores só produzem os efeitos esperados quando vividos emocionalmente
e não apenas como uma formalidade.
O
amor a uma causa
ou a um ideal significativo
é o grande antídoto
para o medo da morte. E não há causa mais elevada do
que a da autoafirmação de cada um de nós, como
pessoa, sob a égide da verdade
e da justiça, no esforço
de buscar, constantemente,
o bem honesto.
Tarefa heroica que exige
autoconhecimento, humildade, disciplina emocional, objetividade, e, tal é sua
grandeza, que não dispensa a ajuda da misericórdia divina. Sem a contrapartida
de uma personalidade criativa ancorada na perfeição absoluta de Deus, o golpe
desfechado pelo sentimento de que tudo é provisório nesta vida tem um poder
devastador. Ouso dizer que
sem uma visão
mística da própria
existência, será impossível a realização
cabal do ideal
humano de serenidade, e se tornará muito
deprimente o confronto de cada um com a
condição de simples mortal. Fora de um contexto místico, a convivência com os nossos limites
resultará sempre na vivência de um todo inacabado, geratriz de expectativa
inquieta; e no nível puramente racional a vitória sobre
o mal-estar induzido pelo sentimento da finitude
será sempre uma “vitória
de Pirro”, em que
o vencedor amarga enormes perdas com o próprio sucesso.
A autoafirmação pessoal
começa com
o reconhecimento de que
somos perecíveis, mas temos uma missão a
cumprir neste mundo;
de que somos contraditórios, mas é-nos possível elaborar,
com simplicidade,
as antinomias da existência;
finalmente, de que
somos capazes de acolher com
respeito o irmão,
sem cultivar mágoas ou
ressentimentos.
Ao meditar sobre essas questões, advirto-me
de que no desvario
infantilmente crédulo da nossa perspectiva existencial, surpreendemo-nos buscando segurança em fantasias românticas,
ancorados em arrimos
discutíveis que
desejáramos transformar em
fortalezas inexpugnáveis.
Esgotando nossa expectativa em metas temporais agiríamos como
quem se imaginasse seguro porque
dispõe de poupança expressiva.
Na verdade esta pessoa não está a salvo de nada além da carência financeira
imediata. Situação equivalente à do homem
que cuida com
esmero da alimentação sadia e do seu
condicionamento físico para assegurar-se a salvo
das doenças que
acometem os glutões e os sedentários. A proteção conferida pelos cuidados
preventivos realmente existe, mas é limitada, porque há fatores
genéticos cujo
determinismo o exercício
físico e a dieta retardam, mas não anulam totalmente. Todos
os cuidados são
recomendáveis, mas na avaliação dos resultados não se pode confundir
a menor probabilidade
de ocorrência de um
mal, com
a segurança de estar definitivamente livre
dele. É bom sentirmo-nos confiantes, com a reserva vital que nos garante um bom condicionamento físico.
Porém, mais sábio do que fiar-se em defesas vulneráveis é vivenciar que a maior segurança consiste na
aceitação da insegurança
total, confiante, porém, no amparo de uma força superior, e num destino
transtemporal. Isto equivale a investir num arrimo interior que excede nossa
capacidade de entendimento, o sustento íntimo necessário para continuar de pé
quando tudo ao redor está ruindo. E amparado neste arrimo interior, ao aceitar
com serenidade a insegurança total nada mais sobra para ameaçar a integridade
pessoal.
A consciência reflexiva depende, operacionalmente,
do mecanismo de controle automático biopsíquico desenvolvido no homem através
da supercomplexificação da matéria na construção do Sistema Nervoso Central.
Neste processo singular, na história da vida, há um
pseudo-hiato entre a infraestrutura
biológica e a superestrutura cultural do pensamento
logicamente articulado, do sentimento disciplinado e da vontade determinante. Considerando
o todo consciência mundo, esse hiato
virtual representa a dobra[4]
entre a bioquímica neuronal
cerebral e o pensamento, entre o biológico e o espiritual,
entre a ciência
fenomênica imanente e a metafísica do
ser que se transcende pela consciência. É neste pseudo hiato que se insere a experiência
mística embasada na fé, desde a prática contemplativa ao êxtase
vivenciado por São
João da Cruz[5].
Este é o momento
em que
o espírito onipresente, mas imperceptível, se entremostra da maneira
mais ostensiva.
Exatamente por
isso a complexidade humana não se exaure no fenômeno
biopsicológico e exige o arremate
místico para consumar-se. No pseudo-hiato entre o
biológico e o espiritual se evidencia o Deus
inconsciente de que fala
Victor Frankel, onipresente, vivenciado no subjetivismo do ser consciente como
um Alter Ego que, recursivamente, acaba espelhando o próprio ego individual. É aí que o Absoluto se revela à nossa
contingência e conversa
conosco na mais total intimidade, embora escutemos apenas
a nossa própria voz e vejamos tão só a
nós mesmos. É aí que
se dá a conhecer o mistério
tremendo da parceria
entre a imanência e a transcendência, entre
o homem e Deus.
Se a solução do problema humano não
é racional, filosófica, porém mística, a oração será o instrumento adequado
para proteger o homem contra a devastação da angústia existencial e do medo da
morte. Despindo-me do racionalismo frio, retomo a postura ingênua para evocar numa
Oração (conversa com Deus) as condições para o momento existencial perfeito.
Oração
Deus, permite-me a graça de vivenciar a unidade consciência / mundo
na intersecção das dimensões imanente e transcendente
do meu eu
mais profundo.
Que sob o mistério da reciprocidade
na relação criatura / Criador, encontre
em Ti a força necessária
para cumprir a missão que me reservaste neste mundo,
e a esperança de alcançar a paz
interior, acolhendo com
respeito meu
irmão, sem cultivar
mágoas ou
ressentimentos, reconhecendo, voluntariamente, na comunhão fraterna a
paternidade amorosa de Deus.
Everaldo Lopes
[1]
Modo de ser peculiar do homem.
[2]
O Criador não pode afastar-se de sua criatura porque esta não tem a força da subsistência
e sem Ele deixaria de existir.
[3]
Consciência reflexiva, pensamento, sentimento e vontade.
[4]
Conceito epistemológico definido por
Deleuse; a passagem contínua e imperceptível entre duas realidades.
[5]
Grande místico católico.