quinta-feira, 20 de julho de 2017

A inconformidade com a finitude - nossa fragilidade



O poeta inspirado pela beleza da Natureza ou da mulher amada escreve um soneto apaixonado, sente a ventura da criatividade e desfruta a paz da harmonia interior, num momento privilegiado da existência. O mesmo poeta, num outro instante de lucidez existencial, descobre-se, sobrenadando o vazio do seu vir a ser quando não está amando nem criando. Certamente, a paixão episódica e o arroubo criativo isolado não se confundem com o amor sem fronteiras que integra o ser consciente no contexto do todo perfeito da unidade divina. E a experiência deste amor é fundamental para resgatar o homem de sua inconformidade com a própria finitude.
            A limitação temporal é sempre objeto de preocupação do homem; pois a consciência de a qualquer momento ser tragado pelo não ser é a expressão de uma realidade incontornável. O sofrimento moral correspondente é para muitos um incômodo que tolda a alegria de viver. Por isso a aceitação emocional deste desfecho será sempre um desafio para o ser consciente. O medo de morrer está na raiz do próprio instinto de conservação, manifestação normal em todo ser vivo, que se agrava dramaticamente no homem por sua capacidade de imaginar, com antecedência, o próprio fim. Teoricamente só o presente é real, mas, não raro nos surpreendemos ocupados com boas ou más lembranças do passado e preocupados com as incertezas que nos aguardam no futuro, realidades virtuais que deslocam a atenção sobre o presente real.
A inconformidade com a finitude é uma “loucura” peculiar da condição humana. Porque no homem a autoconsciência do ser biológico o expõe inevitavelmente à vivência de sua temporalidade constitutiva e, consequentemente, à previsão do envelhecimento e da própria morte.   Na dialética existencial vive-se morrendo, de tal modo que processualmente vida e morte estão sempre entrelaçadas, ou seja, é preciso morrer este minuto que passa agora, para poder vivê-lo. Todavia, sempre pensamos a morte em termos absolutos como o fim definitivo da vida. Daí a ansiedade da espera sem data prevista do desfecho fatal.
É insensato tentar escapar da provisoriedade da vida biológica e, no entanto, é notório o medo de morrer considerado por muitos estudiosos como o maior de todos os medos que afligem o homem. Por isso, na vida íntima de cada um, torna-se evidente a necessidade de encontrar uma forma de superar a angústia do ser humano de saber-se mortal. Analisando a questão em todos os seus aspectos, na tentativa de amenizar a angústia existencial a proposta mais razoável será contextualizar a existência numa dimensão mística, projetando-a para além do tempo.
O medo inerente ao sentimento de finitude é exacerbado pela saudade da vida, tão mais forte quanto maior o número de décadas vividas. É confortante para o homem, pois, a força aquietadora da esperança de transcender a vida biológica, vivência que encontra um amparo efetivo na crença em uma realização transtemporal da essência espiritual do eu histórico. Esta expectativa remete necessariamente a uma experiência mística contextualizada na fé em um absoluto transcendental que tudo envolve na sua perfeição. 
Assim, a existência[1] implica numa contradição vivida subjetivamente entre o desejo de viver e o medo de morrer. Oposição cuja única forma de contornar sem estresse é a doação pessoal do ser consciente a um absoluto transcendental que o inclua. O que corresponde a uma experiência mística embalada por fé ingênua (sem questionamentos). Embora possamos afirmar a existência de Deus mediante especulação filosófica a partir do conhecimento profundo do Universo e do processo evolutivo, a relação que podemos estabelecer com o Criador é puramente intuitiva e emocional. Dessa experiência a razão participa apenas remotamente; uma vez que o fundamento da fé unificadora da consciência com o mundo é essencialmente místico. Para que a fé produza seu efeito redentor não há que buscar razões para crer. Quem crê realmente em Deus afirma: creio porque creio, e me entrego cegamente à vontade absoluta do supremo Criador plenamente confiante no imenso amor que me faz existir como beneficiário de Sua infinita misericórdia. Daí ser fundamental uma crença ingênua para viver em plenitude a experiência mística, animado pela certeza de experimentar a eternidade na presença majestosa de Deus.
Racionalmente Deus não pode ser confundido com uma realidade objetiva, mas à luz de uma especulação metafísica O reconhecemos necessária[2] e misteriosamente presente no universo palpável e em nossa própria realidade pessoal na qual se dá a conhecer, obscuramente, pela manifestação das funções psíquicas superiores[3], só possível depois da supercomplexificação da matéria no Sistema Nervoso Central no homem.
            As pessoas sofrem mais ao confrontar seu limite temporal, quando são pessimistas, não aprenderam a amar, não praticam a generosidade, ou não se sentem amadas. É compreensível que, em luta contra seus medos e incertezas elas se perguntem: - Como reverter esta situação? A resposta é óbvia: Optando pelo otimismo na prática existencial; aprendendo a respeitar e cuidar do outro, dando assim um passo largo em direção ao amor; praticando a generosidade que começa quando fazemos empatia com o outro e descobrimos em nós mesmos as suas fraquezas, assumindo que somos capazes de amar ou, pelo menos, respeitar o outro. Evidentemente, todos esses movimentos interiores só produzem os efeitos esperados quando vividos emocionalmente e não apenas como uma formalidade.
O amor a uma causa ou a um ideal significativo é o grande antídoto para o medo da morte. E não há causa mais elevada do que a da autoafirmação de cada um de nós, como pessoa, sob a égide da verdade e da justiça, no esforço de buscar, constantemente, o bem honesto. Tarefa heroica que exige autoconhecimento, humildade, disciplina emocional, objetividade, e, tal é sua grandeza, que não dispensa a ajuda da misericórdia divina. Sem a contrapartida de uma personalidade criativa ancorada na perfeição absoluta de Deus, o golpe desfechado pelo sentimento de que tudo é provisório nesta vida tem um poder devastador. Ouso dizer que sem uma visão mística da própria existência, será impossível a realização cabal do ideal humano de serenidade, e se tornará muito deprimente o confronto de cada um com a condição de simples mortal. Fora de um contexto místico, a convivência com os nossos limites resultará sempre na vivência de um todo inacabado, geratriz de expectativa inquieta; e no nível puramente racional a vitória sobre o mal-estar induzido pelo sentimento da finitude será sempre uma “vitória de Pirro”, em que o vencedor amarga enormes perdas com o próprio sucesso.
            A autoafirmação pessoal começa com o reconhecimento de que somos perecíveis, mas temos uma missão a cumprir neste mundo; de que somos contraditórios, mas é-nos possível elaborar, com simplicidade, as antinomias da existência; finalmente, de que somos capazes de acolher com respeito o irmão, sem cultivar mágoas ou ressentimentos.
            Ao meditar sobre essas questões, advirto-me de que no desvario infantilmente crédulo da nossa perspectiva existencial, surpreendemo-nos buscando segurança em fantasias românticas, ancorados em arrimos discutíveis que desejáramos transformar em fortalezas inexpugnáveis. Esgotando nossa expectativa em metas temporais agiríamos como quem se imaginasse seguro porque dispõe de poupança expressiva. Na verdade esta pessoa não está a salvo de nada além da carência financeira imediata. Situação equivalente à do homem que cuida com esmero da alimentação sadia e do seu condicionamento físico para assegurar-se a salvo das doenças que acometem os glutões e os sedentários. A proteção conferida pelos cuidados preventivos realmente existe, mas é limitada, porque há fatores genéticos cujo determinismo o exercício físico e a dieta retardam, mas não anulam totalmente. Todos os cuidados são recomendáveis, mas na avaliação dos resultados não se pode confundir a menor probabilidade de ocorrência de um mal, com a segurança de estar definitivamente livre dele. É bom sentirmo-nos confiantes, com a reserva vital que nos garante um bom condicionamento físico. Porém, mais sábio do que fiar-se em defesas vulneráveis é vivenciar que a maior segurança consiste na aceitação da insegurança total, confiante, porém, no amparo de uma força superior, e num destino transtemporal. Isto equivale a investir num arrimo interior que excede nossa capacidade de entendimento, o sustento íntimo necessário para continuar de pé quando tudo ao redor está ruindo. E amparado neste arrimo interior, ao aceitar com serenidade a insegurança total nada mais sobra para ameaçar a integridade pessoal.
            A consciência reflexiva depende, operacionalmente, do mecanismo de controle automático biopsíquico desenvolvido no homem através da supercomplexificação da matéria na construção do Sistema Nervoso Central. Neste processo singular, na história da vida, há um pseudo-hiato entre a infraestrutura biológica e a superestrutura cultural do pensamento logicamente articulado, do sentimento disciplinado e da vontade determinante. Considerando o todo consciência mundo, esse hiato virtual representa a dobra[4] entre a bioquímica neuronal cerebral e o pensamento, entre o biológico e o espiritual, entre a ciência fenomênica imanente e a metafísica do ser que se transcende pela consciência. É neste pseudo hiato que se insere a experiência mística embasada na fé, desde a prática contemplativa ao êxtase vivenciado por São João da Cruz[5]. Este é o momento em que o espírito onipresente, mas imperceptível, se entremostra da maneira mais ostensiva. Exatamente por isso a complexidade humana não se exaure no fenômeno biopsicológico e exige o arremate místico para consumar-se. No pseudo-hiato entre o biológico e o espiritual se evidencia o Deus inconsciente de que fala Victor Frankel, onipresente, vivenciado no subjetivismo do ser consciente como um Alter Ego que, recursivamente, acaba espelhando o próprio ego individual. É aí que o Absoluto se revela à nossa contingência e conversa conosco na mais total intimidade, embora escutemos apenas a nossa própria voz e vejamos tão só a nós mesmos. É aí que se dá a conhecer o mistério tremendo da parceria entre a imanência e a transcendência, entre o homem e Deus.
            Se a solução do problema humano não é racional, filosófica, porém mística, a oração será o instrumento adequado para proteger o homem contra a devastação da angústia existencial e do medo da morte. Despindo-me do racionalismo frio, retomo a postura ingênua para evocar numa Oração (conversa com Deus) as condições para o momento existencial perfeito.
                                                           Oração

Deus, permite-me a graça de vivenciar a unidade consciência / mundo na intersecção das dimensões imanente e transcendente do meu eu mais profundo. Que sob o mistério da reciprocidade na relação criatura / Criador, encontre em Ti a força necessária para cumprir a missão que me reservaste neste mundo, e a esperança de alcançar a paz interior, acolhendo com respeito meu irmão, sem cultivar mágoas ou ressentimentos, reconhecendo, voluntariamente, na comunhão fraterna a paternidade amorosa de Deus.   
 Everaldo Lopes


[1] Modo de ser peculiar do homem.
[2] O Criador não pode afastar-se de sua criatura porque esta não tem a força da subsistência e sem Ele deixaria de existir.
[3] Consciência reflexiva, pensamento, sentimento e vontade.
[4] Conceito epistemológico definido por Deleuse; a passagem contínua e imperceptível entre duas realidades.  
[5] Grande místico católico.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Tropeços do processo evolutivo



A mídia divulga com frequência desastres ecológicos e sociais, os últimos geralmente atrelados à corrupção e ao crime contra a vida. Esses acidentes comprometem, respectivamente, o equilíbrio dos biomas no nosso planeta e a convivência entre os homens. Estiagens prolongadas, alternando com chuvas torrenciais e inundações, furacões, tsunamis representam turbulências da própria natureza; não as podemos evitar. Por outro lado, o desmando administrativo, a cupidez, o uso da violência e a irresponsabilidade humana na condução da coisa pública envolvem a escolha de cada um, e, portanto, são controláveis.
Escandalosamente,  a fome ainda ameaça, hoje, a sobrevivência de bilhões de indivíduos no mundo  inteiro. Presenciamos, recentemente, a emigração desordenada de milhões de seres humanos que fogem de seus países de origem, tangidos pela fome,  guerras fratricidas e extrema pobreza.  Não é à toa que a ONU acaba de declarar que estamos ameaçados neste começo de século por uma “calamidade” que compromete a dignidade e o bem estar da humanidade. Salvo os cataclismos naturais, alguns dos quais também ligados à ação poluente do homem, tudo corre por conta da falta de planejamento e má gestão do bem comum que um sistema econômico perverso, perversamente administrado, concentra cada vez mais nas mãos de poucos. Por outro lado, o desrespeito ao outro, traduzido em condutas levianas, está na raiz da violência urbana, dos acidentes rodoviários, ferroviários e aeroviários promovendo mais mortes do que a soma das provocadas pelos desastres da natureza e por doenças graves.
Paralelemente observa-se a incompetência do Estado político para gerir a coisa pública, o que se traduz na incapacidade de  promover a justa distribuição do bem comum entre todos os cidadãos; obviamente, esta situação se agrava em razão de expressivo contingente da sociedade não ser capaz de exercer a cidadania plena. A alarmante  falta de ética dos administradores das empresas pública e privada é uma extensão  (muito mais grave por suas consequências) da corrupção praticada pela população em geral. Nesse contexto, a prática corrupta escandalosa dos executivos e parlamentares prolonga a desfaçatez da  população, como um todo. Entre outros expedientes condenáveis, é  notória a utilização de recibos falsos para burlar a Receita Federal, ou a tentativa de subornar o guarda de trânsito, ou o recurso a  atestado médico gracioso para justificar a falta ao trabalho... considere-se também como um deslize ético reprovável a imposição aos trabalhadores da tirania do salário mínimo mesmo quando o beneficiário (patrão) do trabalho prestado reconhece o bom desempenho do trabalhador e pode remunerar  melhor sua atividade. Essa corrupção a varejo está tão difundida que o comportamento ético (por definição, obrigatório) dá manchete, pois já é tido por muitos como um ato heroico. É necessário lembrar que “para mudar o mundo cada um precisa exigir de si mesmo a mudança que deseja ver no mundo”.
Os organismos internacionais, também não se têm demonstrado suficientemente fortes para sanar  as divergências que pautam a desarmonia mundial afetando a paz entre as nações. Numa visão mesmo superficial do nosso mundo conturbado, em que a vida e a natureza estão permanentemente ameaçadas, espanta-nos dar-nos conta de que tudo isso está acontecendo depois de cinquenta mil anos do aparecimento do primeiro Homo sapiens na face da Terra, tempo bastante para o amadurecimento das práticas sociais solidárias não fora o individualismo e a ambição prevalentes no comportamento dos homens.  Vivemos ainda sob a ameaça permanente à sobrevivência da espécie, e, no entanto, tudo depende, hoje, de decisões conscientes e responsáveis. Estamos nos destruindo por falta de solidariedade, ou seja, da prática irrestrita da cooperação e da partilha entre os homens, comportamento que é a marca definitiva da humanização.
A observação de como caminha a humanidade, hoje, dá lugar a temores apocalípticos. Mas, acompanhando a linha evolutiva desde o Homo erectus, passando pelo H. faber, H. habilis  até o estágio atual do H.sapiens sapiens é fácil imaginar que nas etapas anteriores de sua evolução, antes da comunicação verbal e dispondo apenas da tecnologia paleolítica para resolver os problemas emergentes, o homem passou por situações muito mais difíceis tendo em vista garantir a sobrevivência da espécie. É  bem verdade que os problemas sociais, políticos e econômicos eram muito mais simples no passado distante. Pode-se mesmo dizer que no início da humanidade tudo girava em torno da luta pelo alimento e por um abrigo.  Catando frutos, pescando e caçando, abrigando-se em cavernas o homem concentrava todo seu esforço no sentido de     sobreviver, e essa preocupação era bastante absorvente para ocupá-lo por inteiro.
Confrontando a cultura do H. habilis com a do H. sapiens sapiens constata-se uma admirável diferença entre essas duas fases da Evolução. Na primeira a humanidade dispunha de praticamente nenhum recurso tecnológico, mas contava com a solidariedade imposta pelo desejo de sobrevivência que unia os homens na caça e na coleta de frutos silvestres; na segunda desenvolveu-se tecnologia refinada sem o crescimento paralelo da sabedoria necessária para gerir as fabulosas conquistas da ciência e da técnica, em benefício de todos. Em ambos os casos o comportamento ideal desejável sempre girou em torno da solidariedade comunitária. O que lamentavelmente não tem acontecido de forma extensiva.  Ao contrário constatamos que a falsa impressão de segurança produzida pelas facilidades que a tecnologia oferece induziu a impressão enganosa de independência pessoal, reforçando o predomínio do individualismo sobre a solidariedade comunitária. Ao comprar no supermercado uma caixa de fósforos, mal nos damos conta de que estamos usufruindo do trabalho de dezenas de pessoas que atuaram na produção da matéria prima, na fabricação, no transporte e comercialização do produto. Dependemos do esforço de muitos para desfrutar do conforto de acender um simples palito de fósforo. Mas a falta de visibilidade do trabalho embutido no produto industrializado induz a falsa impressão de autossuficiência e independência; essa ilusão leva ao individualismo exacerbado e torna mais difícil organizar uma sociedade voltada para a distribuição equânime do bem comum. Resultado, somos capazes de  produzir alimento suficiente para suprir a necessidade alimentar da humanidade inteira, todavia em muitos lugares no mundo, agora, há milhões de pessoas morrendo de fome.
Por sua imensa capacidade de adaptar-se a todos os climas e, ao mesmo tempo, por não estar submetida aos processos naturais de controle da natalidade, a espécie humana multiplicou-se de forma surpreendente. Os demais animais só procriam em determinados momentos impostos pela natureza o que redunda num processo natural de controle dos nascimentos. Mas, entre os homens só a paternidade consciente e responsável é  capaz de manter a multiplicação da espécie em níveis aceitáveis, tendo em vista o bem-estar de todos. Cabe ao próprio homem estabelecer o marco regulatório da procriação na sua espécie. E esta conquista depende de elevado grau de humanização e socialização com ênfase na solidariedade. Da mesma maneira, a nutrição e conforto da humanidade estão intimamente relacionados com a organização planetária  da produção de alimentos e de bens de consumo, que deve ser prolongada por uma política de distribuição equânime de tudo que é  produzido, por todos os homens. Tudo isso envolve problemas políticos, econômicos e sociais cuja solução depende do grau de consciência comunitária das sociedades humanas. Refinamento comportamental que demanda o esforço da participação de todos no humanismo inscrito no ideal cristão do “amai-vos uns aos outros”. Comportamento que para muitos pode parecer romântico, mas, verdadeiramente, é a  única saída para a sobrevivência da humanidade.
Arrisco dizer sem medo de errar que temos, hoje, mais condição material de resolver os problemas que afligem a humanidade, do que tiveram os nossos antepassados. Atualmente, a solução dos problemas humanos depende da escolha e decisão pessoais de viver de acordo  com o espírito comunitário; ou seja, de praticar, criteriosa e respeitosamente, a distribuição entre os homens dos recursos materiais de que dispomos, para que todos vivamos confortavelmente. Lamentávelmente, mesmo havendo crescido tanto  tecnologicamente, não desenvolvemos, ainda, de modo extensivo, a prática solidária da cooperação e da partilha. Ao contrário, o egoísmo está afastando o homem da orientação comunitária na organização social, a única escolha compatível com a sobrevivência da humanidade.
 Everaldo Lopes

sábado, 15 de abril de 2017

O tempo e a existência



Habitualmente vivemos o tempo como se ele fora algo independente de nossa realidade pessoal. Por isso o tempo nos dá a impressão de ser uma alteridade capaz de interagir conosco favorável ou desfavoravelmente, impondo-nos situações boas ou más, respectivamente. Mas o tempo, reconhecido como condição do nosso vir a ser existencial,  é apenas uma  dimensão de nós mesmos e como tal dele podemos dispor livremente. Nossas decisões é que moldam o que acontece agora e acontecerá nas horas e dias que estão por vir. O tempo não tem independência e muito menos autonomia para mudar o rumo das nossas vidas. As mudanças decorrem de nossas ações e omissões no curso da existência que construímos dia após dia. Só assim, encarnando o próprio  tempo conseguimos  viver em plenitude as experiências específicas dos momentos de alegria, tristeza, criatividade ou abulia, vivenciando-as com sabedoria e bom senso. Não cabe, pois, dizer  que a alegria dura pouco ou que a tristeza é duradoura, porque uma e outra não são entidades autônomas; elas são consequências do nosso modo de conduzir a própria existência, conscientemente, como seres temporais que somos, com nossas virtudes e defeitos. A alegria e a tristeza se atualizam através da realidade psicossocial pela qual  somos todos responsáveis; portanto, o tempo é uma dimensão indispensável porém não determinante do que fazemos. Todavia, vivendo as nossas decisões, eternizamos o momento das experiências vividas uma vez que o vetor temporal é unidirecional, apontando sempre para o futuro. O tempo não volta atrás. Por isso o passado é radical; algo acontecido há alguns segundos é tão passado quanto o é o domínio dos dinossauros sobre a Terra (ocorrido há 230 milhões de anos). Diante da imutabilidade do que passou sobressai a importância de saber lidar com as lembranças boas ou más; sobretudo para evitar a influência das  más (lembranças) no dinamismo do presente. Contra o mau uso destas lembranças  opõe-se a convicção de que somos seres imperfeitos, porém perfectíveis. Nesse contexto, ser misericordioso consigo mesmo não é negar o mal praticado, mas conviver com a lembrança desagradável da má ação, reconhecendo a própria participação condenável, sem esquecer, porém, de que é capaz de aperfeiçoar-se; para não correr o risco de envolver-se com a repulsa ao mal praticado no passado ao ponto de “jogar fora a criança com a água do banho”; ou seja livrar-se da lembrança desagradável, empobrecendo a capacidade criativa do próprio vir a ser perfectível. As boas recordações são sempre estimulantes e potencializam a criatividade. As más, obviamente, deprimem e não produzem estímulos criativos e positivos; mas  serão úteis se estivermos alerta para analisar o comportamento lembrado num contexto novo, valendo-nos da experiência anterior para reelaborar a conduta atual nas circunstâncias presentes.
Como depositário de entidades abstratas, das quais apenas se percebem as consequências, a tendência do homem que não analisa o próprio vir a ser é o empoderamento da lembrança de sua má ação que ganha o poder de sugar sua atenção (do homem que não se analisa), fortalecendo e eternizando o impacto negativo produzido (por sua má ação), o que deforma a visão  que tem de si mesmo e do mundo.
Analogamente, apegado aos padrões da juventude, o homem pode encarar a anosidade comparando-a aos parâmetros estéticos da mocidade; então, a máscara da velhice torna-se um ícone disforme cujas características predispõem a expectativas desanimadoras, empobrecendo a vivência do agora.   O idoso precisa reelaborar sua autoavaliação estética a cada década para não perder o “time” de sua existência; ele é tão mais autônomo e esperançoso, quanto mais integrado na realidade que inclui a própria idade, e menos submisso à influência dos parâmetros estéticos de décadas anteriores.
Suponho que os antecessores do H. Sapiens viviam cada momento muito mais integralmente. Suas lembranças de conquistas coletivas[1] solidárias na salvaguarda da sobrevivência enriqueciam a sabedoria inconsciente de comportamentos voltados para a defesa da própria vida. Não havia tempo para trelas subjetivas fantasiosas. O desenvolvimento do mundo subjetivo coincidiu com a revolução agrícola e a domesticação de animais que antes eram caçados sob a tensão das necessidades alimentares. O domínio da lavoura e a criação de reses (para o consumo humano) libertaram o homem do trabalho exaustivo, permanente, de catador de frutos e caçador, do que dependia até então para sobreviver; depois destas conquistas o homem passou a ter mais tempo para as atividades subjetivas. Só então foi possível a revolução cognitiva que permitiu ao H. Sapiens falar de coisas que só existem na sua imaginação. Começaram então a pesar no vir a ser humano as contradições[2] da existência.  Dessa forma o H sapiens passou a conferir status de realidade a fantasias deificadoras ou demoníacas capazes de influir no seu próprio vir a ser. A capacidade de viver realidades ficcionais facilitou, também, a cooperação de centenas e milhares de seres humanos em torno de ideias muitas delas impulsionadoras do processo civilizatório.
Durante séculos predominou uma concepção teocêntrica da humanidade, ensejando cogitações metafísicas sobre o homem, sua origem, missão histórica e transcendental. Seguiu-se uma visão antropocêntrica da história humana mediante a valorização da participação do homem na construção da própria existência, a partir da compreensão de  que o tempo é uma dimensão do seu próprio ser no mundo. Isso implica, a nosso ver, numa perspectiva espiritualista representada pela intervenção divina (princípio criador)[3] que assegura a manutenção da existência através do dinamismo interno do próprio homem.

Everaldo Lopes



[1] Os primeiros homens viviam em grupos solidários para garantir a própria sobrevivência.
[2] Desejar ser eterno e saber-se finito; desejar tudo conhecer e reconhecer que terá sempre um saber limitado; desejar poder tudo e perceber as próprias limitações.
[3] Da mesma forma que o cosmo não se criou a si mesmo, nenhuma criatura, inclusive o homem, tem o poder de subsistir por conta própria.

terça-feira, 7 de março de 2017

Superação



Deparo uma foto na qual apareço entre alguns dos meus filhos e netos, numa festa familiar. Constato que cercado pela  juventude dos meus descendentes, amparado  pelo afeto  generoso dos entes queridos pareço mirrado, insignificante. Mas percebo-me ainda saudável e lúcido, uma bênção na minha idade já avançada. Agradeço, então, a Deus as reservas físicas e intelectuais que não me abandonaram ainda. Essa reflexão remete à tarefa nada fácil da humilde aceitação do envelhecimento sem perder a alegria de viver. Só há duas opções: viver amargurado com as marcas inevitáveis que o tempo vai imprimindo no perfil físico, ou encarar com bom humor  e criatividade o futuro incerto, apostando na possibilidade de enriquecê-lo de forma inteligente e esperançosa. Obviamente, é mais sensato fazer a segunda opção com ânimo combativo. Encorajado pela esperança, aceito o desafio, e predisponho-me a vivenciar a unidade da matéria e do espírito que me são constitutivos. Assim conto com assimilar intelectual e emocionalmente a mais perfeita intimidade entre ambos, convencido da vitória final do espírito, pela projeção da realidade psicossocial que experimento em minha vida temporal, transfigurada numa perfeição absoluta transtemporal. Dessa forma é possível apaziguar os temores habituais e viver as realidades cósmica e humana, integrando-as numa dimensão que transcende o tempo, convencido de, como homem, abrigar uma  alma imortal, perfectível. Essa contemplação coerente com especulações[1] transcendentais constitui a expressão cabal de uma espiritualidade que não se ressente das mudanças temporais. Nessa perspectiva vai se estruturando a superação dos temores e inquietações existenciais. Na verdade,  a vida e o equilíbrio psíquico alcançado como seres conscientes nos parecem verdadeiros milagres que refletem o espírito, princípio de tudo.
Há mais mistérios na sobrevivência de um organismo biológico do que pode supor nossa ciência circunscrita  a medições espaciais e temporais. O essencial, o que mantém  a integridade biológica funcional de  uma simples ameba não é analisável, escapa ao conhecimento objetivo, esconde a transcendentalidade do impulso criador absoluto. Os cientistas podem ser capazes de construir uma molécula original semelhante ao DNA, mas para fazê-la reproduzir-se (ter vida) e transmitir suas características individuais terão que usar um organismo vivo capaz de absorver o genoma artificial. Dessa forma, homens de ciência elaboram protocolos de experiências que se propõem criar vida no laboratório; todavia, ainda que fossem bem sucedidos, não teriam conseguido realizar este objetivo nos seus tubos de ensaio. Portanto, a incapacidade de a ciência produzir a vida em laboratório nos confere o direito de mergulhar mais fundo na contemplação de um absoluto criador intangível.
 Vivencio um profundo sentimento de admiração e reverência ao pensar que cada segundo de nossas vidas  depende do equilíbrio de alguns sextilhões de reações químicas integradas umas às outras num todo harmônico, renovando-se  continuamente  para que possamos existir. Seria impossível sequer imaginar o controle externo absoluto das relações funcionais entre as reações bioquímicas e os sistemas biológicos que garantem a vida, seja a de uma ameba seja a do homem. No complexo algoritmo de um organismo vivo há interações próximas e remotas tão caprichosas entre as reações físico-químicas inerentes aos vários órgãos dos sistemas aos quais pertencem, e dos próprios sistemas entre si,  que se torna impossível nesse nível elaborar um mapa da vida. Na origem de  tudo isso o sagrado anda de braços dados com o mistério que só se entremostra furtivamente no exercício da consciência reflexiva.
Na complexidade da estrutura molecular do universo estelar ocorrem transformações fantásticas; conversões da integração de partículas materiais insignificantes em organizações vitais com propriedades inteiramente diferentes da matéria bruta. Não obstante, é impossível distinguir onde termina a matéria e começa a vida. Tudo isso acontece, aparentemente, sem razão, mas, certamente, sob o comando da vontade absoluta de uma consciência universal; de outra forma seria necessário admitir o acaso que funcionaria na organização da matéria e da vida exatamente como um absoluto criador, como tal, também objeto de fé.
Mesmo incapazes de desenhar o mapa da vida, podemos entender que pequenas interferências num algoritmo de sobrevivência biológica tão complexo podem produzir efeitos  capazes de corrigir distúrbios iminentes destrutivos do organismo  vivo ou agravá-los. Que argumentos há para contradizer o poder sutil de intervenções ao nível bioquímico, capazes de interferir na dinâmica fisiológica responsável pela vida? Como negar que esta interferência seja capaz de influir  no conjunto das reações biológicas que garantem ou ameaçam a homeóstase[2] dos organismos vivos? No prolongamento dessas especulações, o poder da fé  na oração, e de influências benéficas decorrentes de fenômenos como a “ressonância límbica”[3] entre as pessoas tornam possibilidades reais o que parecia impossível. E uma postura rigidamente racional materialista deixa de fora muitas práticas sadias que enriqueceriam a vida consciente, livrando-nos de medos perturbadores.
Lamentavelmente não há uma didática convincente para ensinar a ter fé. Como o amor, a fé é um dom. Compete-nos apenas abrir a alma para a experiência da crença incondicional no espírito incriado para que este dom possa manifestar-se.
A consciência reflexiva também não se explica à luz da biologia neuronal. A complexidade do Sistema Nervoso Central que torna possível a manifestação das funções psíquicas superiores não  basta para justificar a natureza íntima destas funções; o homem, movido pela curiosidade é obrigado, então, a valer-se das verdades de fé  capazes de preencher com suposta entidade  imaterial (o espírito) as lacunas que resistem à análise cartesiana do processo psicobiológico da consciência reflexiva, do pensamento racional, da afetividade e da vontade.  A ciência não explica o ser consciente; para justifica-lo, o pensador utiliza-se, então, de uma plataforma especulativa da qual empreenderá o salto  transcendental   mediante introspecção iluminante apoiada pela  fé num absoluto criador.
No processo de percepção da consciência reflexiva introduz-se a intuição de verdades eternas que só a fé transforma  em realidades existenciais insofismáveis. Não podemos localizar na subjetividade do ser humano o ponto mágico dessas transformações, mas é evidente que só através da intimidade subjetiva espírito-matéria, pela fé,  nos conectamos com o próprio Criador do universo. Só num enlevo místico vislumbramos o toque deste Criador nas nossas vidas, conduzindo-nos docemente para o arremate de uma perfeição que se confunde com  a luminosidade do sagrado, fonte de tudo. A entrega a esta contemplação suaviza o temor incômodo de ser irremediavelmente suprimido da existência; e nos permite vislumbrar a possibilidade de uma transfiguração pessoal pela qual nos tornemos  participantes da eternidade.
Depois das ponderações feitas até aqui, razoáveis como possibilidades imagináveis, sinto que na minha subjetividade reforçam-se os laços inextrincáveis entre o espírito e a matéria que de fato são inseparáveis (a matéria não existe sem o espírito), e percebo que a angústia da finitude que me amofina se torna menos incômoda. Mas a consumação desse processo exige atitude de entrega confiante do ser consciente a um absoluto criador, experiência cujo caráter místico requer  a prática incondicional da fé, virtude que com a esperança e o amor (caridade[4]) dão sentido à existência. Essa realização é o arremate da verdadeira superação das contradições da existência[5].
Everaldo Lopes.


[1] Especulação - Investigação teórica, de natureza exploratória, sem apoio de evidência sólida
[2] Tendência à estabilidade do meio interno do organismo.

[3] Ressonância Límbica é uma capacidade dos mamíferos de entrar em sintonia com as  manifestações internas dos outros. É a capacidade de sentir e até mesmo entender o que o outro sente, é um fenômeno que podemos dizer físico, anatômico, psicológico e espiritual.
[4] No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de Deus. (Aurélio).
[5] Desejar ser eterno e sentir-se biologicamente limitado; desejar tudo conhecer e saber que terá sempre um conhecimento limitado; desejar realizar-se em plenitude e saber  que sua própria condição é de  ser criatura imperfeita, embora perfectível.