sexta-feira, 15 de abril de 2016

Solidariedade, fundamento da comunidade humana



A auto identificação do “eu” é o centro psicológico de referência do sujeito consciente. Disso resulta uma tendência egocêntrica na relação social estabelecida por cada “eu” com outro “eu” que represente um “tu”  para o primeiro. É necessário que todos estejam permanentemente atentos para que o egocentrismo inerente ao modo de ser da consciência autorreferente não se transforme em egoísmo nos encontros interindividuais.
A formação conceitual do “eu” exige a coexistência de um “tu”  sem o qual o “eu”  não se definiria; o “eu” e o “tu” se delimitam reciprocamente. Essa correlação epistemológica denuncia que o processo de individuação caminha paralelamente a um esforço de socialização representado pelo reconhecimento do outro (tu).
No contexto social a mutualidade cooperativa entre os homens é absolutamente necessária  para a sobrevivência da espécie. A forma perfeita dessa interação das pessoas entre si implica na prestação de cuidados recíprocos sem visar qualquer recompensa. A prática exemplar desta conduta exige muita disciplina de cada um no exercício da consciência livre e responsável. Disso depende a evolução do homem, que se fará através de comportamentos elaborados, solidários,  deliberadamente assumidos, fundamentais para a organização social comunitária.
O exercício da solidariedade entre os homens é o salto maior e mais complexo da história de toda evolução. Esse caminhar evolutivo exige reciprocidade entre os agentes sociais. A falta de solidariedade por parte de alguém se torna uma agressão aos que lhe são próximos. Mesmo assim, tendo em vista a estabilidade social, a resposta madura a este comportamento reprovável será tentar influir positivamente no comportamento do outro, posicionando-se em relação a ele como alguém que decide manter-se a uma distância cautelosa e vigilante, sem dar-lhe  as costas. É óbvia a dificuldade de contornar sem aborrecimentos uma relação assimétrica desse tipo. A situação exige constante esforço de superação do mal estar  suscitado pelo comportamento de quem não age solidariamente nas suas relações sociais. O caminho da harmonia social é a prática solidaria, mas é necessário para tanto que os protagonistas das relações interindividuais estejam  em harmonia consigo mesmos para garantir um comportamento imparcial. Esta harmonia resulta do confronto equilibrado das forças psíquicas contraditórias, construtivas e destrutivas, que se debatem na subjetividade de cada um. Nas suas relações sociais o homem faz cultura e cresce, elaborando formas responsáveis de atender ao interesse do outro.
É provável que no processo dinâmico evolutivo do Homo Sapiens os comportamentos solidários se tenham sedimentado através dos tempos em arquétipos[1] que guardam no inconsciente coletivo a memória de experiências exitosas[2]  havidas no passado remoto, nas quais a sobrevivência da humanidade dependeu da colaboração de todos.  
O objetivo da vida é viver, e o da vida consciente (existência) é estabelecer padrões de convivência social compatíveis com o máximo desenvolvimento do indivíduo como participante da comunidade humana. É razoável admitir que os valores culturais implícitos nessa orientação tiram sua força do poder associativo dos arquétípos solidários. As imagens simbólicas de experiências grupais pregressas exitosas escondidas no inconsciente coletivo enriquecem a  criatividade humana, consolidando os valores positivos em torno dos quais gravita a existência produtiva. Este algoritmo  evolutivo visto em retrospecto pelo homem atual sugere a existência de um núcleo arquetípico de solidariedade cujo objetivo comunitário transcende o indivíduo.
 Portanto, a possibilidade de ser solidário não é apanágio de uns poucos privilegiados, dela participam todos os homens. Resta disciplinar-nos, vencendo os obstáculos egoísticos às tendências associativas inatas, aprimorando-nos na prática do comportamento solidário.  Erich Fromm nos fala da “liberdade de”, e da “liberdade para”, evidenciando a complementariedade  destes dois momentos do ser consciente.  No que diz respeito à predisposição de ser solidário, por exemplo, o primeiro se confunde com a capacidade de o indivíduo libertar-se do egoísmo; o segundo corresponde à determinação de praticar eficientemente uma habilidade potencial conata – a solidariedade.
Peculiarmente, a “âncora psíquica” da solidariedade é centrada no ego; mas nas iniciativas solidárias o amor próprio de cada indivíduo se enriquece com o respeito e dedicação ao próximo.  Nesse processo de socialização o que importa é exercitar a predisposição solidária, eminentemente criativa. A pedagogia da solidariedade não se resume a elaborar um rol de preceitos antiviolência, mas consiste numa escalada de compreensão e valorização, por parte de cada um, da predisposição associativa solidária do homem, ainda que isso custe algum esforço pessoal para a mobilização de virtudes comunitárias potenciais.
Concluindo, estou convencido de que o homem carrega um núcleo arquetípico de solidariedade que constitui a reserva construtiva mais diferenciada da espécie humana, agindo como um dinamismo criativo na intimidade psicodinâmica da existência de cada um. Isso explicaria os acontecimentos inesperados no curso das crises sociais que ameaçam a evolução do homem.  Esta influência arquetípica seria a causa  imponderável  que tantas vezes tem mudado o rumo da História sem que uma ação objetiva específica propositalmente empreendida tenha tido uma influência direta. Instantes em que, não obstante as dificuldades aparentemente insuperáveis, a prática da colaboração e da partilha  prevalecem, inesperadamente, de forma criativa, consolidando a comunidade humana universal.                                      
Everaldo Lopes 


[1] Segundo C. G. Jung [v. junguiano] , imagens psíquicas do inconsciente coletivo (q. v.), que são patrimônio comum a toda a humanidade:

[2] A caça de animais selvagens, a cata de frutos e a pesca suficientes para alimentar toda uma coletividade nômade, antes dominar a agricultura, a domesticação de animais etc.