Numa perspectiva evolucionária as espécies animais que desenvolvem a
capacidade de cooperar em sociedade são as que mais crescem, demonstrando que a
colaboração entre os indivíduos é um fator positivo na Evolução[1].
A comprovação disso é que apenas três por cento das espécies animais exibem
características sociais, mas elas já representam cinquenta por cento da
biomassa.[2]
A organização social é instintiva nas espécies animais irracionais que exibem potencial
para a divisão especializada de trabalho entre os membros do grupo. São
exemplos clássicos a sociedade das abelhas e das formigas. Diferentemente, entre
os homens, a organização social resulta da livre criatividade dos indivíduos,
tendo em vista o bem estar da coletividade[3].
Este foi o grande salto evolutivo inerente à emergência da consciência e do
livre arbítrio. O indivíduo consciente consolida livremente sua tendência
gregária, sedimentando e dinamizando os princípios
associativos que se caracterizam pela reciprocidade comportamental construtiva,
consciente e responsável, base psicossocial da solidariedade. Lamentavelmente
as esquematizações políticas e econômicas que presidem a vida em sociedade são
superestruturas que apenas criam regras de comportamento, mas estas por si sós
são incapazes de gerar solidariedade entre os colaboradores, embora formalmente
produzam efeitos semelhantes. A prática solidária demanda uma disposição
pessoal generosa espontânea relacionada à interiorização de uma visão de mundo
inclusiva que vai além de mera obrigação ética assumida responsavelmente. O
comportamento de caráter cooperativo,
consciente, se distingue pela intenção e
pelo altruísmo que implicam necessariamente na transcendentalidade
da própria consciência. No ato mesmo de conhecer (saber que sabe), o homem
se transcende. Fenomenologicamente seria impossível
esse saber reflexivo
se o sujeito do conhecimento
não se projetasse subjetivamente para além de si mesmo e do mundo
a fim de focalizar
ao mesmo tempo
sua realidade (como
observador) e o mundo; o que lhe permite deduzir que o conceito que tem do mundo
está em sua
mente como
representação. Esta é a essência do
fenômeno consciente reflexivo. Desta forma o homem consegue estabelecer uma
distância subjetiva entre sua realidade mais íntima e o mundo ao redor. Neste
espaço subjetivo psicossocial consciente cria-se a possibilidade de níveis mais altos de
integração, mediante escolhas livres, inteligentes e construtivas. Estas
escolhas são monitoradas pelos valores que fundamentam a colaboração, e garantem
a solidariedade humana. São valores morais ancorados num princípio racional ou numa
transcendência absoluta infalível na qual o homem acredita incondicionalmente
(tem fé). Mas o princípio racional temporal
baseado no conhecimento fenomenológico, finito, não satisfaz inteiramente a consciência que
transcende o próprio tempo.
A consciência reflexiva permanece curiosa
depois de esgotar
sua capacidade de observação da realidade objetiva. Resta, então, a alternativa
da transcendência absoluta à qual o homem só tem acesso mediante um ato de fé. Diante da evidência
do mundo, não
o reconhecendo como uma autoconstrução, o
homem levanta a tese de um Dinamismo onisciente e onipotente,
criador, um absoluto inacessível à razão humana.
No contexto evolutivo o homem reconhece a dinâmica
própria da subjetividade e se coloca no extremo avançado
da vida para administrar os recursos
disponíveis (inteligência,
intuição, sentimento,
vontade) com
o objetivo de solucionar
os problemas emergentes
no horizonte da Evolução
agora centrada na construção da comunidade humana. A
consciência reflexiva é necessária à Evolução, mas a
ciência não
é capaz de explica-la. Nasce assim um problema metafísico que
acompanhará o homem durante toda sua vida e cuja solução não é racional, porém
mística, embora a verdade de fé implícita na solução proposta possa contar com
o aval teórico de especulações metafísicas[4].
Com ou sem uma explicação racional para a capacidade reflexiva do homem,
a partir do advento da consciência livre e responsável a Evolução
mudou seu eixo, do aperfeiçoamento biológico para o da organização psicossocial
e político-econômica da sociedade. Esta transição só foi possível porque a
consciência viabiliza no homem a liberdade de escolher uma organização social
baseada na cooperação criativa, superando o determinismo biossociológico
instintivo que preside a organização social das abelhas e das formigas. A solidariedade
generosa se torna assim uma exigência da própria Evolução que depende agora das
decisões humanas. Decisões que para garantir a sustentabilidade da espécie
precisam ser solidárias. Cônscio desta responsabilidade o homem há de sentir a
grandiosidade da sua missão na Terra, e a necessidade de fazer bom uso dos seus
talentos tendo em vista a organização da comunidade humana.
Everaldo Lopes
[1] Segundo Spencer (1820-1903) e Bergson (1859-
1941), processo de desenvolvimento natural, biológico e espiritual em que toda
a natureza, com seus seres vivos ou inanimados, se aperfeiçoa progressivamente
[2] Para Edward
Wilson, de Harvard, considerado pai da Sociobiologia, o processo evolutivo é
mais bem sucedido quando os indivíduos colaboram uns com os outros em
sociedade.
[3] Lamentavelmente
não se tem conseguido que este bem-estar repercuta igualitariamente em todos os
estratos sociais.
[4] Já abordamos esta
questão nos textos intitulados Devaneios
especulativos, neste blog.