terça-feira, 4 de junho de 2013

A solidariedade e a Evolução



Numa perspectiva evolucionária as espécies animais que desenvolvem a capacidade de cooperar em sociedade são as que mais crescem, demonstrando que a colaboração entre os indivíduos é um fator positivo na Evolução[1]. A comprovação disso é que apenas três por cento das espécies animais exibem características sociais, mas elas já representam cinquenta por cento da biomassa.[2] A organização social é instintiva nas espécies animais irracionais que exibem potencial para a divisão especializada de trabalho entre os membros do grupo. São exemplos clássicos a sociedade das abelhas e das formigas. Diferentemente, entre os homens, a organização social resulta da livre criatividade dos indivíduos, tendo em vista o bem estar da coletividade[3]. Este foi o grande salto evolutivo inerente à emergência da consciência e do livre arbítrio. O indivíduo consciente consolida livremente sua tendência gregária, sedimentando e dinamizando os princípios associativos que se caracterizam pela reciprocidade comportamental construtiva, consciente e responsável, base psicossocial da solidariedade. Lamentavelmente as esquematizações políticas e econômicas que presidem a vida em sociedade são superestruturas que apenas criam regras de comportamento, mas estas por si sós são incapazes de gerar solidariedade entre os colaboradores, embora formalmente produzam efeitos semelhantes. A prática solidária demanda uma disposição pessoal generosa espontânea relacionada à interiorização de uma visão de mundo inclusiva que vai além de mera obrigação ética assumida responsavelmente. O comportamento de caráter cooperativo, consciente, se distingue pela intenção e pelo altruísmo que implicam necessariamente na transcendentalidade da própria consciência. No ato mesmo de conhecer (saber que sabe), o homem se transcende. Fenomenologicamente seria impossível esse saber reflexivo se o sujeito do conhecimento não se projetasse subjetivamente para além de si mesmo e do mundo a fim de focalizar ao mesmo tempo sua realidade (como observador) e o mundo; o que lhe permite deduzir que o conceito que tem do mundo está em sua mente como representação. Esta é a essência do fenômeno consciente reflexivo. Desta forma o homem consegue estabelecer uma distância subjetiva entre sua realidade mais íntima e o mundo ao redor. Neste espaço subjetivo psicossocial consciente cria-se  a possibilidade de níveis mais altos de integração, mediante escolhas livres, inteligentes e construtivas. Estas escolhas são monitoradas pelos valores que fundamentam a colaboração, e garantem a solidariedade humana. São valores morais ancorados num princípio racional ou numa transcendência absoluta infalível na qual o homem acredita incondicionalmente (tem fé). Mas o princípio racional temporal baseado no conhecimento fenomenológico, finito, não satisfaz inteiramente a consciência que transcende o próprio tempo. A consciência reflexiva permanece curiosa depois de esgotar sua capacidade de observação da realidade objetiva. Resta, então, a alternativa da transcendência absoluta à qual o homem só tem acesso mediante um ato de fé.  Diante da evidência do mundo, não o reconhecendo como uma autoconstrução, o homem levanta a tese de um Dinamismo onisciente e onipotente, criador, um absoluto inacessível à razão humana.
No contexto evolutivo o homem reconhece a dinâmica própria da subjetividade e se coloca no extremo avançado da vida para administrar os recursos disponíveis (inteligência, intuição, sentimento, vontade) com o objetivo de solucionar os problemas emergentes no horizonte da Evolução agora centrada na construção da comunidade humana. A consciência reflexiva é necessária à Evolução, mas a ciência não é capaz de explica-la.  Nasce assim um problema metafísico que acompanhará o homem durante toda sua vida e cuja solução não é racional, porém mística, embora a verdade de fé implícita na solução proposta possa contar com o aval teórico de especulações metafísicas[4].
Com ou sem uma explicação racional para a capacidade reflexiva do homem, a partir do advento da consciência livre e responsável a  Evolução mudou seu eixo, do aperfeiçoamento biológico para o da organização psicossocial e político-econômica da sociedade. Esta transição só foi possível porque a consciência viabiliza no homem a liberdade de escolher uma organização social baseada na cooperação criativa, superando o determinismo biossociológico instintivo que preside a organização social das abelhas e das formigas. A solidariedade generosa se torna assim uma exigência da própria Evolução que depende agora das decisões humanas. Decisões que para garantir a sustentabilidade da espécie precisam ser solidárias. Cônscio desta responsabilidade o homem há de sentir a grandiosidade da sua missão na Terra, e a necessidade de fazer bom uso dos seus talentos tendo em vista a organização da comunidade humana.
Everaldo Lopes  


[1] Segundo Spencer (1820-1903) e Bergson (1859- 1941), processo de desenvolvimento natural, biológico e espiritual em que toda a natureza, com seus seres vivos ou inanimados, se aperfeiçoa progressivamente

[2] Para Edward Wilson, de Harvard, considerado pai da Sociobiologia, o processo evolutivo é mais bem sucedido quando os indivíduos colaboram uns com os outros em sociedade.
[3] Lamentavelmente não se tem conseguido que este bem-estar repercuta igualitariamente em todos os estratos sociais.
[4] Já abordamos esta questão  nos textos intitulados Devaneios especulativos, neste blog.