domingo, 27 de setembro de 2015

Hino à vida



A paixão pelo conhecimento tem que ver com o desejo de explicar o mistério do cosmo e da vida sobre o qual se desdobra o vir a ser existencial[1]. Daí o esforço intelectual que absorve o pensador em busca de respostas para suas indagações. E mais, quanto mais conhecimento tiver maior será sua compreensão da realidade, corroborando o acerto das escolhas que faz.  Arrebatado pela curiosidade o homem aspira a saber cada vez mais sobre a verdade conjuntural, ciente porém de que esta aspiração nunca será completamente satisfeita. O pensador percebe os seus limites racionais e Incapaz de superá-los  é levado a projetar a atenção num Absoluto[2]  criador a fim de explicar a existência do mundo e a sua própria.  Nessa perspectiva, o indivíduo cria uma realidade que não pode objetivar,  vivendo-a como crença que só se torna uma verdade existencialmente consistente quando é consumada  emocionalmente com grande convicção.
O ser consciente, reflexivo, é capaz de usar os próprios recursos racionais para manipular sua circunstância, tendo em vista a conquista de objetivos escolhidos em função de necessidades práticas, ou da afirmação de um ideal. Esta capacidade se acompanha de flexibilidade comportamental construtiva, excepcional na história da vida.  Mas o dom especial do pensamento reflexivo e da consciência inclui a percepção da finitude pessoal, o que gera conflitos racionalmente insolúveis, ponto de partida da ansiedade e angústia existenciais. Para superar esse mal-estar psíquico o homem confia em poder experimentar uma  vivência mística que o  faça sentir-se absorvido na paz de uma transcendência na qual encontre o sentido de sua própria existência. Isso implica ter fé num Absoluto que sustenta o ego  inseguro diante da consciência da finitude.  A necessidade de o homem transcender-se só se satisfaz neste Absoluto que preenche a “falta” ontológica da qual o ser consciente se ressente, confusamente percebida pela razão e afetivamente perturbadora para o eu pensante.
Indiferente às especulações metafísicas, o Poeta propõe ao homem inquieto: “Dorme teu sono, coração liberto, dorme na mão de Deus, eternamente”[3]. Entendendo que dormir na mão de Deus é conviver intimamente com Ele na plenitude de uma experiência mística. Esta convivência é vivenciada psicologicamente como a intimidade subjetiva com uma intuição reveladora da transcendência absoluta.
Na visão de mundo  espiritualista, monista, criacionista, a morte não é mais do que uma passagem para outro nível de existência. Nas cogitações metafísicas que esta visão suscita vive-se neste mundo a liberdade do espírito, incompletamente, como um estado d´alma, “o estado ideal: alma, o estado divino da matéria”[4]. Pode-se especular sobre  a transfiguração da identidade pessoal, consolidada depois da morte biológica na comunidade de todas as consciências em comunhão com o dinamismo absoluto criativo  de Deus. Mas no nível do vir a ser temporal, o homem consciente da própria finitude só se libertará da angústia existencial mediante a maturidade pessoal forjada no “Amor”[5], no sentimento de coparticipação com seus semelhantes num todo absoluto significativo que transcenda a dicotomia Consciência / Mundo. Este sentimento vivido com todas as potências da alma se exprime numa experiência amorosa que dá corpo à raiz ontológica transcendental do homem, exorcizando o medo da morte e das fantasias acompanhantes, pelo reconhecimento de que o óbito é apenas uma passagem no retorno do ser consciente ao Absoluto que o criou. Poder-se-á, então, dizer com Santo Agostinho: “A morte não é nada. / O que eu era para vocês, continuarei sendo. / Passei a viver no mundo do Criador / enquanto vocês continuam vivendo no mundo das criaturas./ Que o meu nome seja pronunciado como sempre foi, / sem ênfase de qualquer tipo, / sem qualquer traço de sombra ou tristeza. / Pense, sinta, reze por mim. / O fio não foi cortado, / somente passei para o outro lado do caminho. / E vocês que ficaram sigam em frente. / A vida continua sendo linda e bela, como sempre foi”. Com essa linguagem simples o Bispo de Hipona desmistifica a morte biológica, e celebra a beleza da vida temporal que se prolonga na plenitude da vida eterna.
Dentro de uma visão de mundo espiritualista monista criacionista a plenitude humana se constitui num ato de amor, uma entrega incondicional. Não se pode controlar voluntariamente a vivência desta entrega do sujeito consciente ao Dinamismo Absoluto eternamente criativo. A prática amorosa é dom sublime que vai além de um ato voluntário. A rendição pessoal a um absoluto transcendental implica na comunhão amorosa dos homens entre si e com o Criador, experiência existencial inexcedível de fé, vivenciada mercê de uma graça[6] particular. Portanto, o conhecimento não basta para preencher o abismo sobre o qual se constrói a existência, é preciso amar; “Sendo que amar é muito mais que  crer”[7].


Everaldo Lopes


[1] Modo de ser próprio do homem.
 [2] Diz-se da realidade plena, ilimitada, essencial, que não depende  senão de si mesma para existir
[3] Antero de Quental in Sonetos :”Na mão de Deus”
[4] Raul de Leoni – do soneto : “De um fantasma”
[5] Ato de doação incondicional do si mesmo a uma causa ou ao próprio Deus.
[6] Dom ou virtude especial concedido por Deus como meio de salvação ou   santificação.

[7] Raul de