O ideal do artista é captar e
representar a essência das coisas. Ideal que se manifesta no desejo de apreender
a verdade, a beleza da natureza e dos homens, os mistérios do Universo. Guardadas
as devidas proporções este ideal é o que mais se aproxima da busca mística do
ser absoluto. O artista sonha com uma obra prima, a grande revelação, fruto de
sua criatividade privilegiada. Nesta busca
incansável, sua alma é um turbilhão de ideias, de formas, cores e de sons onde
a inspiração vai colher a matéria prima para exprimir no ato da criação a realidade
tal como é concebida pela intuição penetrante. A perfeição perseguida pelo
artista faz contra ponto com o torturante sentimento da inaptidão para
transmitir a identidade estética essencial que se esconde nos fenômenos representáveis...
uma vez que a verdade e a beleza absolutas não podem ser representadas. Avoluma-se,
então, no espírito do artista o anseio angustiante de exprimir a unidade harmônica
essencial através da pena, do pincel, do cinzel, do som, do movimento que ele aprende
a usar com mestria. Imperioso se torna para cada um de acordo com o dom
recebido escrever, pintar, esculpir, compor, tocar, cantar, dançar, percorrendo
os caminhos indicados por sua sensibilidade privilegiada. Obviamente estamos
falando dos verdadeiros talentos que trazem desde o berço aptidões
excepcionais. É tal a grandiosidade do ideal artístico que, por mais perfeitas
que sejam, a poesia, a tela, a escultura, a composição musical, a coreografia,
não conseguem satisfazer a perfeição concebida pelo artista. E dessa forma a beleza da obra, deslumbrante aos
olhos dos demais parece pobre diante do projeto original idealizado pela sensibilidade
exaltada do seu autor. “Por que não falas?” Disse Michelangelo ao seu Moisés,
escultura esteticamente impecável. Esta é a angústia do artista, a de nunca
poder ultrapassar os próprios limites e, todavia, sentir-se obrigado por uma
força interior incontida, a tentar alcançar a meta inalcançável. Tenho para mim
que a suposta arrogância do artista de reconhecido talento diante da
incompreensão das pessoas acorrentadas à medíocre mesmice repetida indefinidamente
não é um gesto de presunçosa superioridade, é mais uma explosão de revolta face à própria
incompetência para fazê-las compreender a originalidade escondida no mundo!
A necessidade de transcender comum a
todos os homens encaminha-os inicialmente á realização no âmbito da utilidade e
do prazer. Nessas experiências imediatistas o ego limitado nem se dá conta do
vazio interior que o ameaça no intervalo
de suas acanhadas realizações. Mas esse vácuo subjetivo é doloroso demais para
a sensibilidade do artista cujo anseio de perfeição o mobiliza a tentar, incansavelmente, superar os
limites impostos por sua própria contingência. Os artistas se plenificam
existencialmente realizando o anseio criativo! Empolgados pela inventividade, concebem
o novo numa vivência que os projeta às culminâncias da experiência de ser livre.
Suficientemente motivados, valendo-se da
imaginação criativa e de habilidades
específicas eles produzem respostas inéditas no diálogo com o mundo e consigo
mesmos. Diferentemente, os homens pobres de inspiração, que são maioria,
preenchem o espaço existencial com a esperança de suprir o anelo de riqueza,
saúde e poder. Esperança que se sustenta numa crença sem grandeza, expressa na
prática burocrática de fórmulas culturais surradas pelo uso. As questões limites
sejam no campo da lógica, da ética ou da estética não afetam de forma
consciente esta maioria. O grupo numeroso ao qual nos referimos se acomoda aos modelos culturais vigentes, preocupado com aspirações
de ordem prática. Olhando os seus participantes, de um ponto de observação adequado
descobrem-se as tendências que os agrupam
ao lidarem com os próprios conflitos existenciais sem se darem conta de que estão aprisionados nos
limites da condição humana, consciência livre e responsável sufocada pelo ego. Muitos perdem a autocrítica com o sucesso tornando-se
prepotentes e injustos. Os que têm uma visão trágica do mundo transformam a
existência num dilema, e alguns se condenam a suportar o rigor de uma realidade
indesejável. Preferem aceitar estoicamente um carma de sacrifício, a apostar
corajosamente na tarefa demiúrgica de reescrever o script da própria existência.
Intelectualmente mais perspicazes e emocionalmente mais flexíveis, os que enxergam
o ridículo de certos equívocos existenciais, percebem os aspectos cômicos de
situações aparentemente embaraçosas. E acabam rindo e fazendo rir das próprias
limitações. Finalmente os que são acólitos fiéis do sistema culturalmente
fixado vivem num permanente esforço de adaptação aos cânones vigentes. Neste
afã se perdem da própria originalidade e, consciente ou inconscientemente,
exercem o pragmatismo cínico, escapando como podem das sanções sociais. Neste
viés comportamental importa-lhes mais parecer do que ser ético e virtuoso, sem
reparar em que o ego é o maior obstáculo à paz e completa felicidade! Em todos
os casos a angústia e a ansiedade os assediam na medida da sensibilidade de
cada um diante da própria incapacidade de corresponder às exigências do ego. E assim
caminham todos, inconformados com o próprio destino, alienados de sua realidade
mais profunda. Seres que a Evolução
dotou, miraculosamente, com a capacidade de exercitar a consciência reflexiva,
valendo-se de escolhas livres, porém malversam a autonomia de que são capazes. Homens
de diferentes raças e etnias que deveriam alcançar a felicidade plena mediante a
superação do próprio ego, mas perdidos no meio das suas perplexidades se
exaurem em tentativas vãs de autoafirmação,
reforçando o egocentrismo. A todos, porém, está aberta a porta para a paz e a
mais completa realização pessoal se se aplicarem à tarefa de pensar no que é o
“eu” cuja presença se denuncia nas manifestações existenciais. Todos dizemos a
todo instante: Eu quero, eu penso, eu sinto etc., mas o que é este “eu”? Ele
não se confunde com, mas antecede o pensamento, o sentimento e a vontade! A
resposta a essa pergunta, cerne da experiência mística, é vivenciada quando numa
introspecção profunda o indivíduo ultrapassa o próprio ego... superando os
limites temporais culturalmente cultivados, iluminando-se. Do ponto de vista
psicodinâmico, a iluminação corresponde a um estado alterado de consciência no
qual tudo se contextualiza na unidade absoluta vivenciada numa intuição
reveladora. Do ponto de vista teológico a iluminação diz respeito à “comunicação
da luz divina à alma humana, pelo que a inteligência se torna capaz de atingir um conhecimento verdadeiro.”[1] Os
artistas se aproximam dessas experiências, porém, diferentemente do místico, quando
lhes falta humildade, continuam reféns do próprio ego e da angústia
existencial.
Everaldo
Lopes.