terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Artistas e homens comuns

O ideal do artista é captar e representar a essência das coisas. Ideal que se manifesta no desejo de apreender a verdade, a beleza da natureza e dos homens, os mistérios do Universo. Guardadas as devidas proporções este ideal é o que mais se aproxima da busca mística do ser absoluto. O artista sonha com uma obra prima, a grande revelação, fruto de sua criatividade privilegiada. Nesta  busca incansável, sua alma é um turbilhão de ideias, de formas, cores e de sons onde a inspiração vai colher a matéria prima para exprimir no ato da criação a realidade tal como é concebida pela intuição penetrante. A perfeição perseguida pelo artista faz contra ponto com o torturante sentimento da inaptidão para transmitir a identidade estética essencial que se esconde nos fenômenos representáveis... uma vez que a verdade e a beleza absolutas não podem ser representadas. Avoluma-se, então, no espírito do artista o anseio angustiante de exprimir a unidade harmônica essencial através da pena, do pincel, do cinzel, do som, do movimento que ele aprende a usar com mestria. Imperioso se torna para cada um de acordo com o dom recebido escrever, pintar, esculpir, compor, tocar, cantar, dançar, percorrendo os caminhos indicados por sua sensibilidade privilegiada. Obviamente estamos falando dos verdadeiros talentos que trazem desde o berço aptidões excepcionais. É tal a grandiosidade do ideal artístico que, por mais perfeitas que sejam, a poesia, a tela, a escultura, a composição musical, a coreografia, não conseguem satisfazer a perfeição concebida pelo artista. E  dessa forma a beleza da obra, deslumbrante aos olhos dos demais parece pobre diante do projeto original idealizado pela sensibilidade exaltada do seu autor. “Por que não falas?” Disse Michelangelo ao seu Moisés, escultura esteticamente impecável. Esta é a angústia do artista, a de nunca poder ultrapassar os próprios limites e, todavia, sentir-se obrigado por uma força interior incontida, a tentar alcançar a meta inalcançável. Tenho para mim que a suposta arrogância do artista de reconhecido talento diante da incompreensão das pessoas acorrentadas à medíocre mesmice repetida indefinidamente não é um gesto de presunçosa superioridade, é mais  uma explosão de revolta face à própria incompetência para fazê-las compreender a originalidade escondida no mundo!
A necessidade de transcender comum a todos os homens encaminha-os inicialmente á realização no âmbito da utilidade e do prazer. Nessas experiências imediatistas o ego limitado nem se dá conta do vazio interior que o ameaça  no intervalo de suas acanhadas realizações. Mas esse vácuo subjetivo é doloroso demais para a sensibilidade do artista cujo anseio de perfeição o  mobiliza a tentar, incansavelmente, superar os limites impostos por sua própria contingência. Os artistas se plenificam existencialmente realizando o anseio criativo! Empolgados pela inventividade, concebem o novo numa vivência que os projeta às culminâncias da experiência de ser livre.  Suficientemente motivados, valendo-se da imaginação criativa e  de habilidades específicas eles produzem respostas inéditas no diálogo com o mundo e consigo mesmos. Diferentemente, os homens pobres de inspiração, que são maioria, preenchem o espaço existencial com a esperança de suprir o anelo de riqueza, saúde e poder. Esperança que se sustenta numa crença sem grandeza, expressa na prática burocrática de fórmulas culturais surradas pelo uso. As questões limites sejam no campo da lógica, da ética ou da estética não afetam de forma consciente esta maioria. O grupo numeroso ao qual nos referimos se acomoda aos  modelos culturais vigentes, preocupado com aspirações de ordem prática. Olhando os seus participantes, de um ponto de observação adequado  descobrem-se as tendências que os agrupam ao lidarem com os próprios conflitos existenciais sem  se darem conta de que estão aprisionados nos limites da condição humana, consciência livre e responsável sufocada pelo ego.  Muitos perdem a autocrítica com o sucesso tornando-se prepotentes e injustos. Os que têm uma visão trágica do mundo transformam a existência num dilema, e alguns se condenam a suportar o rigor de uma realidade indesejável. Preferem aceitar estoicamente um carma de sacrifício, a apostar corajosamente na tarefa demiúrgica de reescrever o script da própria existência. Intelectualmente mais perspicazes e emocionalmente mais flexíveis, os que enxergam o ridículo de certos equívocos existenciais, percebem os aspectos cômicos de situações aparentemente embaraçosas. E acabam rindo e fazendo rir das próprias limitações. Finalmente os que são acólitos fiéis do sistema culturalmente fixado vivem num permanente esforço de adaptação aos cânones vigentes. Neste afã se perdem da própria originalidade e, consciente ou inconscientemente, exercem o pragmatismo cínico, escapando como podem das sanções sociais. Neste viés comportamental importa-lhes mais parecer do que ser ético e virtuoso, sem reparar em que o ego é o maior obstáculo à paz e completa felicidade! Em todos os casos a angústia e a ansiedade os assediam na medida da sensibilidade de cada um diante da própria incapacidade de corresponder às exigências do ego. E assim caminham todos, inconformados com o próprio destino, alienados de sua realidade mais profunda. Seres que a Evolução  dotou, miraculosamente, com a capacidade de exercitar a consciência reflexiva, valendo-se de escolhas livres, porém malversam a autonomia de que são capazes. Homens de diferentes raças e etnias que deveriam alcançar a felicidade plena mediante a superação do próprio ego, mas perdidos no meio das suas perplexidades se exaurem em  tentativas vãs de autoafirmação, reforçando o egocentrismo. A todos, porém, está aberta a porta para a paz e a mais completa realização pessoal se se aplicarem à tarefa de pensar no que é o “eu” cuja presença se denuncia nas manifestações existenciais. Todos dizemos a todo instante: Eu quero, eu penso, eu sinto etc., mas o que é este “eu”? Ele não se confunde com, mas antecede o pensamento, o sentimento e a vontade! A resposta a essa pergunta, cerne da experiência mística, é vivenciada quando numa introspecção profunda o indivíduo ultrapassa o próprio ego... superando os limites temporais culturalmente cultivados, iluminando-se. Do ponto de vista psicodinâmico, a iluminação corresponde a um estado alterado de consciência no qual tudo se contextualiza na unidade absoluta vivenciada numa intuição reveladora. Do ponto de vista teológico a iluminação diz respeito à “comunicação da luz divina à alma humana, pelo que a inteligência  se torna capaz  de atingir um conhecimento verdadeiro.”[1] Os artistas se aproximam dessas experiências, porém, diferentemente do místico, quando lhes falta humildade, continuam reféns do próprio ego e da angústia existencial.
Everaldo Lopes.   


[1] Santo Agostinho