domingo, 23 de agosto de 2015

Viver e existir



Na sua marcha inexorável o tempo consome, até a morte, instante a instante, a vida que ganhamos ao nascer. Obviamente, essa consumpção acontece a todo ser vivo. Resulta de fenômenos naturais. Nada há de novo nessas afirmações. Há um detalhe, porém, que também não é novidade mas merece destaque especial: o homem é o único animal que se dá conta da própria vida e de sua finitude. Isso tem implicações. Entre outras, por ser autoconsciente o homem é capaz de avaliar antecipadamente as consequências sobre a saúde do corpo e da alma, decorrentes do seu modo de viver.  Assim ele se torna em certa medida responsável pela manutenção do próprio equilíbrio biológico. Adotando hábitos alimentares sadios, evitando o sedentarismo, dormindo regularmente etc. pode influir beneficamente na conquista de sua saúde física e psíquica. Obviamente, estas medidas salutares não anulam a ação do tempo. O tempo continua soberano, promovendo o envelhecimento que culmina, sempre, com a morte.
Há uma diferença essencial entre viver e existir.  A vida em si é um processo biológico sujeito às leis da Natureza, enquanto a existência é uma construção cultural feita de escolhas pessoais inspiradas no sentimento, analisadas pela razão e executadas por determinação da vontade que ora atende à razão, ora ao sentimento, ou acaba subscrevendo um acordo negociado entre estas potências da alma humana. Então podemos dizer que em grande parte o vir a ser existencial está em nossas mãos.
As situações que envolvem a vida de cada um exigem decisões responsáveis. É razoável que diante dos problemas familiais, sociais e econômicos que assediam o sujeito consciente, em momentos de lucidez ele se detenha para questionar: como estou gerenciando minha existência? Tenho feito o de que realmente gosto, ou apenas sigo um script cultural? Neste caso assumo comportamentos culturalmente induzidos que não me  proporcionam felicidade?... E descubro que para ser responsavelmente livre sou obrigado a policiar o meu comportamento e muitas vezes tomar decisões que me custam algum sacrifício. Isso é necessário porque o que acontece em cada momento além de nos afetar individualmente tem reflexos sociais que podem prejudicar a harmonia do grupo. Habitualmente pautamos a conduta por valores éticos já consagrados. Todavia, em situações limítrofes faltam parâmetros confiáveis para aferir o equilíbrio das respostas aos estímulos que nos assediam. E nestes casos, não raro, ou transgredimos a ordem estabelecida ou nos reprimimos demasiadamente. Então, embora não queiramos podemos criar com nossa conduta situações desconfortáveis para nós mesmos ou para os outros, promovendo comoções sociais ao nosso redor. Contudo, na falta de uma pauta comportamental pré-estabelecida, temos sempre a possibilidade de encontrar o caminho da coerência no exercício da razão, do sentimento e da vontade, respeitando o outro e a nós mesmos, o que sempre repercute positivamente no bem estar coletivo. A disposição de agir equilibrando nobremente o que estamos fazendo e o que sentimos ser moralmente correto é fundamental para a conquista da paz e autoconfiança de que precisamos para existir construtivamente. Mas a busca em que nos empenhamos para alcançar paz e segurança só se completa definitivamente quando prolongamos, pela fé, o esforço ético-racional deixando-nos empolgar por um valor absoluto  transcendental. Embora sabendo-nos incompletos e vulneráveis a ocorrências imprevisíveis, precisamos assumir o comando da nossa própria existência o que implica em riscos cuja expectativa gera insegurança. Para enfrenta-los (os riscos) recorremos em primeira mão ao conhecimento e à competência complementados pela vontade de proceder corretamente. Mesmo assim não ficamos inteiramente a salvo da possibilidade de deslizes comportamentais. E as pessoas sensíveis se ressentem de suas condutas destoantes das próprias convicções éticas.
A precariedade humana nos expõe à necessidade de amparo moral nos momentos de angústia existencial. Os que têm fé confiam na providência[1]. Aos homens de pouca fé resta confiar na especulação metafísica que sugere uma consciência universal inteligente e eternamente coerente. É ela que garante a ordenação da complexidade crescente da matéria caótica dos primeiros segundos após o “big-bang”, até a vida consciente[2]. Na mística existencial a consciência universal é o próprio Deus que garante a paz do sujeito consciente mediante sua integração na unidade perfeita de tudo que existe. Em ambos os casos o homem alcança a paz interior, sintonizando seu ser mais íntimo com um todo absoluto significativo. Mas esta sintonia só será efetiva quando emocionalmente consumada. Só então o homem sente que o caminho existencial (imanência) se confunde com o ponto de chegada proposto pela fé como uma transcendência absoluta... e sente a paz existencial que a razão sozinha não pode promover.  Este é o mistério da fé.
Dúvidas, incertezas que ensombrecem a paz do vir a ser consciente sempre existirão. Caso a caso, cada um deverá fazer a escolha fundamental entre seguir à risca o que está culturalmente estabelecido, ou vencer a inércia cultural e criar soluções originais no sentido de cumprir a missão da vida consciente no processo evolutivo, ou seja, a de construir uma humanidade solidária. Isso implica em enfrentar a realidade priorizando a responsabilidade de agir eficientemente no sentido da defesa do bem comum, ainda que seja necessário pagar pesado ônus. Essa postura confiante é a mais adequada para a superação da vivência de incerteza que ameaça a integridade subjetiva do homem como protagonista responsável da História. Quando a ameaça é insuportável sobrevém aflição e amargura. Nesses casos, suaviza o sofrimento existencial sabê-lo tão fugaz quanto os momentos de prazer que a vida pode proporcionar. Em última instância, os homens que trilham o caminho místico acreditam em que a realidade mais íntima do ser consciente se projetará além do tempo numa harmonia perfeita na qual encontrará sua plena realização. Essa perfeição já se entremostra na experiência subjetiva do ser consciente, racional e volitivo, mediante a intuição da unidade do todo universal. Este todo é necessariamente um absoluto que é único e perfeito. O referencial dessa totalidade significativa, assumido pela fé, é representado por uma transcendência infinita, totalmente confiável (Deus). Sem esta âncora o projeto existencial fica vinculado a atribuições volúveis, verdades contingentes incapazes de definir com autoridade o papel que cabe ao homem como protagonista da história e da Evolução. Sem um referencial absoluto o homem se perde num relativismo ético perturbador. Uma pauta ética baseada estritamente na razão temporal está sempre sujeita a revisões corretivas. É transitória e não satisfaz a necessidade humana de segurança total. A inquietação resultante deprime o indivíduo que aspira à transcendência absoluta. Na prática, a superação de uma depressão moral, antes que ela se transforme em doença orgânica, implica em o indivíduo erguer a cabeça, deixar de ter pena de si mesmo e buscar alternativas, reavaliando as posturas assumidas.
Até na terceira idade, quando o automatismo biológico começa a falhar, oportunizando a queda da autoestima e reforçando a ameaça de depressão, é possível ter motivação para viver. Para tanto é preciso manter atividade social que contribua para o bem estar das pessoas, exercitar uma ocupação prazerosa e, finalmente, alimentar sonhos e projetos. Esta proposta de uma vida proativa é intrínseca ao exercício coerente da consciência, mas demanda criatividade e determinação. Implica em “apostar todas as fichas” na mobilização dos recursos morais e talentos pessoais, tendo em vista construir um vir a ser capaz de objetivar condições favoráveis para o bem comum. Isso exige um esforço consciente para assumir de forma ativa e confiante atitudes e ações coerentes com um programa social focado na solidariedade.

Everaldo Lopes




[1] A suprema sabedoria com que Deus conduz todas as coisas.
[2] Esta ordem pressupõe uma intenção e consequentemente uma consciência, pois não há intenção sem consciência. No caso teríamos de admitir uma Consciência universal.