quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Confraternização



O discurso democrático inspira-se no ideal de uma sociedade justa e igualitária. Seguramente, esta é a proposta política que mais se aproxima da convivência comunitária. Todavia a comunidade supera qualquer organização política porque esta precisa impor regras para assegurar a ordem social, enquanto na comunidade a excelência das relações humanas decorre do amor esclarecido que une as pessoas solidárias em torno de objetivos humanitários.
É chocante e desolador constatar na prática histórica o contraste entre a proposta democrática verbalizada e a falta de cidadania representada pelo egoísmo de políticos postulantes a cargos eletivos, e pelo fisiologismo dos eleitores. A explicação básica desta distorção recai na resistência do exclusivismo individualista humano às exigências do vínculo solidário. Mas não exclui uma crise de sensibilidade moral das pessoas aos valores éticos inerentes à solidariedade. Tendemos a aderir aos empreendimentos que satisfazem as ambições individuais imediatas, e nos descuidamos em investir nas nossas potencialidades morais mediante ações que a todos contemplem indistintamente. Todos desejamos sentir a alegria de satisfazer carências pessoais, ambicionamos experimentar algo prazeroso, mas a satisfação indisciplinada (aética) desses desejos e ambições, em longo prazo, se torna letal para o bem estar coletivo sem desigualdades. Isso evidencia que para o indivíduo viver em sociedade precisa impor-se limites, disciplinando as demandas egoicas; o que tem um preço cobrado antecipadamente sob a forma do aprendizado que objetiva o autoconhecimento, a disciplina emocional, a tolerância e a prática da justiça social. Nessa perspectiva, a harmonia social é sempre o resultado de uma realização coletiva que supõe esforço convergente de cada um dos membros do grupo no sentido de salvaguardar o bem comum. A fraternidade baseada na adesão à verdade e na prática da Justiça é o cerne da caminhada humanitarista. O pensamento ilumina os caminhos que conduzem a estes valores (verdade e justiça), mas é o sentimento de realização psicossocial coerente que dá conteúdo à existência (modo de ser peculiar do homem), conferindo um sentido à vida. Sentimento que se evidencia no exercício da solidariedade. Não há como induzir ativamente as pessoas a se tornarem solidárias. Podemos apenas dar o exemplo. Cada um precisa, portanto, por determinação pessoal resgatar em si mesmo as potencialidades comunitárias soterradas pelo exclusivismo egoico, tarefa que exige disciplina e persistência durante toda uma vida. Nesta linha de conduta, a sabedoria se manifesta no vir a ser existencial pela coparticipação da razão, da imaginação criativa, do compromisso de ser solidário e da vontade esclarecida, no momento das escolhas e decisões pessoais que de uma forma ou de outra afetem os demais membros do grupo. Pelo menos é preciso estar imbuído da convicção de que nunca se alcançará a realização pessoal, negando o respeito ao “outro”.
Certamente, pensando na permanente necessidade de lembrar ao homem sua responsabilidade na cruzada comunitária, o Papa Paulo VI criou em 1967 o Dia da Fraternidade Universal, comemorado a 1º de Janeiro. A intenção ecumênica do Sumo Pontífice foi consagrar um dia  no ano ao culto da vocação comunitária da humanidade, independente de credo, etnia, posição social ou econômica.
Lamentavelmente, a competição é a forma de relacionamento mais difundida. A solidariedade e a cooperação não são os paradigmas prevalentes na nossa cultura capitalista, agora, globalizada. O desafio maior à difusão da prática solidária e cooperativa é a dificuldade pedagógica de educar o caráter das pessoas para o exercício da verdade e da justiça num relacionamento social fraterno de toda coletividade. Ensinamento e aprendizado que se tornam mais difíceis pelo desnível social e econômico entre as pessoas, resultante de séculos de comportamentos equivocados que agruparam os indivíduos em classes sociais desiguais, na sociedade “organizada”. Estamos convencidos de que para o melhor ou para o pior, o ponto mais vulnerável na dinâmica das relações entre os homens, e destes com a Natureza é a sensibilidade moral dos indivíduos. E esta depende de fatores que não são inteiramente administráveis, intervenientes no processo de humanização através de experiências marcantes no desenvolvimento de cada indivíduo. É ingênuo tentar construir uma comunidade perfeita, seguindo rigorosamente um programa preestabelecido. A unidade comunitária, na prática, se atualiza, instante a instante, em decorrência da soma de ações pessoais, criativas, livres, isoladas no tempo e no espaço, que deverão integrar-se evolutivamente num grande movimento de humanização no horizonte de uma visão holística da realidade. Tudo dependerá em última instância da decisão comportamental solidária, livre, coerente e inteligente de cada um.
Hoje se propala amplamente a ameaça de um desastre ecológico. E o risco implícito de ficar inviabilizada a vida no Planeta exige ações preventivas eficazes. Tudo tem a ver com a responsabilidade existencial de cada indivíduo. Para virar o jogo da História nas próximas gerações é necessário promover, agora, ações sociais educativas e saneadoras que beneficiem milhões de crianças e adolescentes no mundo inteiro, educando-as para a prática da colaboração e da partilha. O trabalho mais eficaz na construção da comunidade humana deve incidir na infância e adolescência, preparando-as para a convivência solidária. Entre adultos depois que os indivíduos já adquiriram maus hábitos de convivência o ensinamento é mais difícil e menos produtivo.  A dimensão deste empreendimento demonstra, contundentemente, a impotência do indivíduo isolado para promover a confraternização universal. Ele contribui com sua parte, mas ressente-se de limitações invencíveis para induzir a coletividade ao ideal comunitário. Para construirmos a comunidade humana faz-se necessária uma resposta grupal[1] ao desafio que nos faz a própria Evolução.  Só se pode esperar algum progresso nesse sentido contando com o esforço cooperativo de todos, através de relações intersubjetivas coerentes, justas, verdadeiras e inteligentes. Para que a espécie Homo sapiens sapiens  não se torne uma “variante genética inviável”[2] é indispensável que exercitemos, todos, a solidariedade comunitária, mediante a prática da cooperação e da partilha equitativa. Por isso, nunca é demais insistir na necessidade de agir solidariamente.
Celebremos, pois, a confiança na possibilidade da confraternização universal, confirmando o compromisso pessoal de disciplinar o egoísmo atávico adverso à solidariedade e à cooperação, nas nossas ações sociais, econômicas e políticas. Esta celebração deverá refletir-se na prática do ideal democrático apregoado, ou o exercício da democracia não passará de um faz de conta hipócrita. É preciso estar atento para que a resiliência do nosso comportamento espontaneamente egoísta, ambicioso, não nos faça esquecer rapidamente as interdições que nos impomos para alcançar o ideal humanitário, e acabemos validando a hipocrisia, na prática democrática, como uma forma aceitável de lidar com a responsabilidade de ser com os outros no mundo. Sem a disposição firme de todos os membros da coletividade humana de agir consciente e responsavelmente, o discurso democrático se reduz a uma loquacidade astuciosa, ingênua ou hipócrita que transforma a prática democrática num fingimento ridículo.
                                   Everaldo Lopes
                                                            


[1] Caracterizada por: visão de mundo monista espiritualista, decisão política humanista integral, cultivo permanente da solidariedade universal.
[2] Temor anunciado por Noan Schomsky (Nascido em 07/12/1028) Linguista e Filósofo, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT)