O discurso democrático inspira-se
no ideal de uma sociedade justa e igualitária. Seguramente, esta é a proposta
política que mais se aproxima da convivência comunitária. Todavia a comunidade supera
qualquer organização política porque esta precisa impor regras para assegurar a
ordem social, enquanto na comunidade a excelência das relações humanas decorre
do amor esclarecido que une as pessoas solidárias em torno de objetivos humanitários.
É chocante e desolador constatar na
prática histórica o contraste entre a proposta democrática verbalizada e a falta
de cidadania representada pelo egoísmo de políticos postulantes a cargos
eletivos, e pelo fisiologismo dos eleitores. A explicação básica desta
distorção recai na resistência do exclusivismo individualista humano às
exigências do vínculo solidário. Mas não exclui uma crise de sensibilidade
moral das pessoas aos valores éticos inerentes à solidariedade. Tendemos a
aderir aos empreendimentos que satisfazem as ambições individuais imediatas, e
nos descuidamos em investir nas nossas potencialidades morais mediante ações
que a todos contemplem indistintamente. Todos desejamos
sentir a alegria de satisfazer carências pessoais, ambicionamos experimentar
algo prazeroso, mas a satisfação indisciplinada (aética) desses desejos e
ambições, em longo prazo, se torna letal para o bem estar coletivo sem
desigualdades. Isso evidencia que para o indivíduo viver em sociedade precisa
impor-se limites, disciplinando as demandas egoicas; o que tem um preço cobrado
antecipadamente sob a forma do aprendizado que objetiva o autoconhecimento, a disciplina
emocional, a tolerância e a prática da justiça social. Nessa perspectiva, a
harmonia social é sempre o resultado de uma realização coletiva que supõe esforço
convergente de cada um dos membros do grupo no sentido de salvaguardar o bem
comum. A fraternidade baseada na adesão
à verdade e na prática da Justiça é o cerne da
caminhada humanitarista.
O pensamento ilumina os caminhos que conduzem a estes valores (verdade e
justiça), mas é o sentimento de realização psicossocial coerente que dá
conteúdo à existência (modo de ser peculiar do homem), conferindo um sentido à
vida. Sentimento que se evidencia no exercício da solidariedade. Não há como
induzir ativamente as pessoas a se tornarem solidárias. Podemos apenas dar o
exemplo. Cada um precisa, portanto, por determinação pessoal resgatar em si
mesmo as potencialidades comunitárias soterradas pelo exclusivismo egoico, tarefa
que exige disciplina e persistência durante toda uma vida. Nesta linha de
conduta, a sabedoria se manifesta no vir a ser existencial pela coparticipação da
razão, da imaginação criativa, do compromisso de ser solidário e da vontade esclarecida,
no momento das escolhas e decisões pessoais que de uma forma ou de outra afetem
os demais membros do grupo. Pelo menos é preciso estar imbuído
da convicção de que nunca se alcançará a realização pessoal, negando o respeito
ao “outro”.
Certamente, pensando na permanente necessidade de
lembrar ao homem sua responsabilidade na cruzada comunitária, o Papa Paulo VI criou em 1967 o Dia da Fraternidade
Universal, comemorado a 1º de Janeiro. A intenção ecumênica do Sumo Pontífice
foi consagrar um dia no ano ao culto da
vocação comunitária da humanidade, independente de credo, etnia, posição social
ou econômica.
Lamentavelmente, a competição é a forma de
relacionamento mais difundida. A solidariedade e a cooperação não são os
paradigmas prevalentes na nossa cultura capitalista, agora, globalizada. O
desafio maior à difusão da prática solidária e cooperativa é a dificuldade
pedagógica de educar o caráter das pessoas para o exercício da verdade e da
justiça num relacionamento social fraterno de toda coletividade. Ensinamento e
aprendizado que se tornam mais difíceis pelo desnível social e econômico entre
as pessoas, resultante de séculos de comportamentos equivocados que agruparam os
indivíduos em classes sociais desiguais, na sociedade “organizada”. Estamos
convencidos de que para o melhor ou para o pior, o ponto mais vulnerável na
dinâmica das relações entre os homens, e destes com a Natureza é a
sensibilidade moral dos indivíduos. E esta depende de fatores que não são
inteiramente administráveis, intervenientes no processo de humanização através
de experiências marcantes no desenvolvimento de cada indivíduo. É ingênuo
tentar construir uma comunidade perfeita, seguindo rigorosamente um programa
preestabelecido. A unidade comunitária, na prática, se atualiza, instante a
instante, em decorrência da soma de ações pessoais, criativas, livres, isoladas
no tempo e no espaço, que deverão integrar-se evolutivamente num grande
movimento de humanização no horizonte de uma visão holística da realidade. Tudo
dependerá em última instância da decisão comportamental solidária, livre, coerente
e inteligente de cada um.
Hoje se propala amplamente a ameaça de um desastre ecológico. E o risco implícito
de ficar inviabilizada a vida no Planeta exige ações preventivas eficazes. Tudo
tem a ver com a responsabilidade existencial de cada indivíduo. Para virar o
jogo da História nas próximas gerações é necessário promover, agora, ações sociais
educativas e saneadoras que beneficiem milhões de crianças e adolescentes no
mundo inteiro, educando-as para a prática da colaboração e da partilha. O trabalho
mais eficaz na construção da comunidade humana deve incidir na infância e
adolescência, preparando-as para a convivência solidária. Entre adultos depois
que os indivíduos já adquiriram maus hábitos de convivência o ensinamento é mais
difícil e menos produtivo. A dimensão
deste empreendimento demonstra, contundentemente, a impotência do indivíduo
isolado para promover a confraternização universal. Ele contribui com sua
parte, mas ressente-se de limitações invencíveis para induzir a coletividade ao
ideal comunitário. Para construirmos a comunidade humana faz-se necessária uma
resposta grupal[1] ao desafio que nos faz
a própria Evolução. Só se pode esperar
algum progresso nesse sentido contando com o esforço cooperativo de todos, através
de relações intersubjetivas coerentes, justas, verdadeiras e inteligentes. Para
que a espécie Homo sapiens sapiens não
se torne uma “variante genética inviável”[2]
é indispensável que exercitemos, todos, a solidariedade comunitária, mediante a
prática da cooperação e da partilha equitativa. Por isso, nunca é demais
insistir na necessidade de agir solidariamente.
Celebremos, pois, a confiança na possibilidade da confraternização universal,
confirmando o compromisso pessoal de disciplinar o egoísmo atávico adverso à
solidariedade e à cooperação, nas nossas ações sociais, econômicas e políticas.
Esta celebração deverá refletir-se na prática do ideal democrático apregoado, ou
o exercício da democracia não passará de um faz de conta hipócrita. É preciso
estar atento para que a resiliência do nosso comportamento espontaneamente
egoísta, ambicioso, não nos faça esquecer rapidamente as interdições que nos
impomos para alcançar o ideal humanitário, e acabemos validando a hipocrisia, na
prática democrática, como uma forma aceitável de lidar com a responsabilidade
de ser com os outros no mundo. Sem a disposição firme de todos os membros da
coletividade humana de agir consciente e responsavelmente, o discurso
democrático se reduz a uma loquacidade astuciosa, ingênua ou hipócrita que transforma
a prática democrática num fingimento ridículo.
Everaldo
Lopes