quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O enigma da vida de cada um


Para avaliar os comportamentos pessoais é preciso entender as dificuldades inerentes à “existência”[1]. Quando percebemos a intrincada malha psicossocial da vida em grupo salta aos olhos a complexidade das relações humanas, e torna-se possível avaliar com imparcialidade as atitudes e reações dos indivíduos.
Ao tomar conhecimento pela primeira vez do próprio “vir a ser”, sem se dar conta ainda claramente de sua realidade existencial, o homem defronta-se, com a “Esfinge”[2] a desafia-lo com uma pergunta singular: “Que sentido queres dar à tua vida?” Cada um se esforça para construir-se como pessoa, nem sempre consciente de estar respondendo à esfinge. É que a resposta ao enigma da “vida consciente”[3] é irredutível a um jogo lógico de ideias claras. Deverá ser modulada pelos talentos individuais nas condições impostas pela facticidade[4], ao modo de um acordo temático criativamente elaborado entre a razão e o sentimento com o auxílio da vontade, tendo em vista um propósito definido. Nesta modulação se inscreve o sentido que o indivíduo dá à sua existência. O homem responde à pergunta exigente da esfinge assumindo responsavelmente, mediante suas posturas e ações, as decisões inerentes às escolhas que faz no seu vir a ser existencial.  
As incertezas inerentes à contingência humana geram ansiedade. Mas, por trás da angústia do devir incerto, o ser consciente tem a intuição nebulosa de uma totalidade universal organizada, um “absoluto” que unifica o mundo e a consciência. Este todo harmônico cuja complexidade é apenas entrevista reflete-se na visão de um mundo que o homem tem a responsabilidade de completar através de escolhas e ações coerentes com o eixo temático de sua existência. Nesta perspectiva define-se a função da liberdade inerente à vida consciente no contexto da Evolução do universo. Tendo em vista que a solidariedade humana é o resultado de relações interpessoais livres, pode-se dizer que a introdução da liberdade no processo evolutivo preenche um propósito implícito na Ordem do universo. Avaliando, hoje, retrospectivamente o caminho percorrido pela “Evolução” pode-se concluir que a intervenção da consciência está centrada na organização social solidária. Isto implica na transição da “inteligência instintiva” (presente na organização social das abelhas e das formigas) para a “inteligência racional”, consciente, capaz de criar livremente uma forma de convivência solidária que é condição indispensável para a sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens. Esta mudança evidencia o papel do homem no plano da Evolução, remetendo o indivíduo ao esforço permanente no sentido de consolidar o autoconhecimento, a disciplina emocional e a determinação, ingredientes da maturidade psicossocial que garantem o equilíbrio do vir a ser existencial no convívio solidário. Este esforço acompanha o exercício responsável da liberdade.
      Ninguém pode ter certeza absoluta do acerto da sua resposta à Esfinge exigente. Mas, quando a consciência está centrada na construção de uma existência significante engajada no processo evolutivo universal, o eu reflexivo vivencia a paz e o sentimento de dignidade que são indicadores do acerto das decisões assumidas no curso da vida.
     O tecido psicossocial é feito de desejos, esperanças e atos cujos protagonistas se atritam em busca da realização pessoal através de experiências intra e intersubjetivas. Nas relações sociais cada um de nós tem expectativas quanto ao tratamento que merece receber do outro. Opinião direcionada pela consideração que imaginamos merecer em vista da autoavaliação favorável que cada um faz de si mesmo. Portanto, o outro, obviamente, alimenta expectativa semelhante à minha, igualmente tributária de uma autovalorização propícia. Pode-se imaginar como é frágil a malha social cujos fios são pressupostos comprometidos na sua origem com avaliações privilegiadas baseadas na autoestima de cada um. Além disso para uma relação interpessoal equânime é indispensável o  consenso dos interlocutores quanto a que ninguém é melhor do que o outro, nem dono da verdade... que cada um define o ponto de corte dos julgamentos que faz, mediante ideias e valores produzidos por sua contingência falível, tidos momentaneamente como certos. Daí a importância que assume a tolerância mútua dos que dialogam. Então, as posturas adotadas por cada um não devem ser cultivadas como se fossem irretocáveis. Quando elas são inflexíveis refletem a tirania dos valores culturais, gerando a intolerância mãe de todos os preconceitos. Na verdade, só enriquecido pela sabedoria da maturidade o indivíduo baixa a guarda e admite que a razão pode estar com o outro. Desta maturidade depende o futuro do homem na face da Terra!
Quando a expectativa das pessoas em relação às demais não corresponde ao esperado entre elas ocorrem turbulências ameaçadoras da confiança recíproca e da paz social. É a hora de cada um reavaliar sua participação pessoal na formação da onda turbulenta para aliviar as tensões atuais, e programar as medidas preventivas de crises futuras. Há que haver predisposição dos interlocutores para a análise psicossocial compassiva das situações que induzem o comportamento de cada um, sem fugir das verdades universais que devem presidir o julgamento imparcial dos conflitos emergentes. O melhor a fazer nestes momentos de inquietação é descrever com precisão objetiva o fato concreto determinante da aflição vivenciada. Ao expô-lo à luz da razão, a distância subjetiva criada entre a instância crítica racional e a representação mental vivenciada do fato em questão enseja uma trégua emocional, permitindo redimensionar com isenção as ações a serem implementadas. É o momento de apreciar os aspectos positivos possíveis da situação, valorizando-os; de tentar compreender as razões do outro e argumentar desapaixonadamente para equacionar os termos conflitantes de uma situação frustrante. Estes procedimentos fundamentam-se no respeito à dignidade própria e à do outro, e se consolidam no difícil aprendizado da compaixão. Seguindo esta linha de conduta, aos poucos se vai aprendendo a conduzir as relações sociais com objetividade e brandura... Calar é muitas vezes o comportamento mais sábio. Não há que discutir a razão e as consequências de uma discórdia interpessoal a menos que os interlocutores tenham assimilado os pressupostos do diálogo[5]... De outra forma a discussão seria desgastante e improdutiva.  Finalmente, para tornar eficiente o desempenho do homem no âmbito da Evolução cumpre conservar a disposição de perdoar sempre, por mais difícil que pareça. Nesta perspectiva, o maior desafio é o de lidar com uma pessoa de boa índole, mas inconformada com as próprias limitações intelectuais, culturais, sociais e econômicas, ofuscada pelo desejo de ser reconhecida e valorizada num patamar superior ao de sua envergadura pessoal. É difícil, mas indispensável, trata-la com serenidade quando num esforço comovente esta pessoa procura superar-se, sem a necessária disciplina intelectual e emocional, valendo-se de um discurso improvisado afoito e tendencioso, ou arriscando-se em projetos que não tem condições de realizar... e ainda chama a isso de coragem! Na verdade falta-lhe a humildade necessária para aceitar-se como é sem perder a perspectiva de possíveis conquistas pessoais. Obviamente, faltando-lhe a prudência crítica esta pessoa foge da realidade e, perdida no esforço desordenado de sustentar uma autoimagem idealizada, diz e faz coisas que não pode comprovar nem justificar. Nestes lances, sem o necessário controle emocional, não percebe que desrespeita a inteligência e a dignidade dos demais com os quais convive. Agressões que os circunstantes só podem superar relevando-as, compassivamente.
           Depreende-se desta análise sumária que as relações sociais  sensatas exigem, necessariamente, autoconhecimento, disciplina emocional e o reconhecimento humilde das dificuldades inerentes ao desempenho da condição humana. A partir do momento em que cada um se reconhece exposto aos mesmos impasses diante da exigência de uma existência virtuosa, todos compreendem melhor uns aos outros e se tornam mais aptos a exercitar a empatia e o perdão. Entendemos afinal que a pergunta da “esfinge” não é um desafio intelectual, mas um apelo disfarçado ao empenho existencial na luta de cada um contra as armadilhas da libido descontrolada, do orgulho imoderado, da vaidade, da ambição e do medo, que permeiam o vir a ser incerto do “ser consciente”.         
Everaldo Lopes                                          


[1] Modo de ser próprio do homem; consciente e responsável.
[2] Na Grécia antiga, monstro fabuloso com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de águia e unhas de harpia, que propunha enigmas aos viandantes e devorava quem não conseguisse decifrá-los
[3] Existência
[4] Caráter próprio da condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já comprometido com uma situação não escolhida. Dic.Aurélio.
[5] Autoconhecimento, disciplina emocional e respeito à dignidade do outro.