segunda-feira, 26 de março de 2012

Estratégias de sobrevivência


Das respostas automáticas ao exercício da solidariedade.
 Na natureza virgem, os animais herbívoros comem plantas, estes servem de alimento para os carnívoros, e os onívoros alimentam-se de plantas e de outros animais menores. No fim, quando todos eles morrerem seus átomos hão de misturar-se no húmus que fertiliza o solo para fazer medrar as sementes e alimentar os brotos renovando a flora.  Assim se perpetua a vida, valendo-se da velha e conhecida cadeia alimentar.
Todos os animais possuem a inteligência do instinto, e os tropismos denunciam a reciprocidade entre as plantas e o meio em que vegetam. As reações instintivas e os tropismos são formas de relacionamento entre os seres vivos e a Natureza, baseadas em respostas automáticas. Com o advento da consciência reflexiva, evidencia-se no homem a capacidade de pensar, raciocinar, de criar, de escolher, e de tomar decisões pessoais na interação com sua circunstância. O pensamento racional, a criatividade, a reflexão representam modos específicos da ação recíproca entre o homem (consciência) e o mundo. Nesta interação, juntamente com  a consciência reflexiva introduz-se o livre arbítrio, ensejando comportamento mais complexo e maleável do que os reflexos instintivos e os tropismos. Como participante da cadeia alimentar o homem é livre para escolher o que comer e quando.  Entre os homens e a Natureza cria-se, assim, uma interface cultural que humaniza o Mundo estabelecendo normas que disciplinam as forças instintuais e priorizam o respeito à vida. O refinamento cultural mediante o qual o homem aprimora suas virtudes específicas é um processo longo inerente a adaptações psicossociais complexas... Estamos a caminho, e o homem ainda age muitas vezes como um predador... Mas sobre este resquício atávico há de construir a humanidade. É notória a crueldade praticada nos criatórios industrializados, e nos matadouros de rezes, aves e peixes. Impõe-se ao homem desenvolver uma conduta respeitosa em relação ao abate destes animais. Cabe-lhe a obrigação de sistematizar procedimentos indolores para minorar o sofrimento no abate necessário. Parece exagero?! Não! Admitir que o respeito aos animais seja um exagero apenas comprovaria que somos insensíveis às dores da Natureza, induzidas por nossa agressividade gratuita. Hoje existe legislação específica para proteção dos seres vivos e da Natureza. Mas não basta a obediência à letra da lei, a hominização implica no comprometimento sustentado e responsável do indivíduo com a proteção à Natureza e a exaltação da vida... um sentimento que humaniza o mundo. É razoável admitir que a insensibilidade à dor e ao sofrimento dos nossos semelhantes seja um prolongamento do desrespeito que praticamos rotineiramente contra a Natureza e a vida... leviandade que acaba conduzindo à desvalorização do próprio ser humano. A indiferença e a crueldade praticadas quando o homem se coloca no topo da cadeia alimentar com poder de vida e de morte sobre as plantas e os animais inferiores acabam extrapolando para as relações humanas.
 Nas nossas existências, e no próprio contexto universal, tudo tem a ver com tudo. Sem entrar em maiores detalhes especulativos, podemos afirmar que se esta unidade estrutural não é ostensiva, é porque não percebemos todos os componentes e todos os links que amarram a estrutura da realidade universal. Por isso não vinculamos uns aos outros fatos aparentemente separados pelo tempo e pelo espaço. Portanto, ao desnaturalizar a cadeia alimentar o homem precisa expandir e refinar cada vez mais a interface cultural, para não romper o equilíbrio do ecossistema planetário e da própria humanização. O desrespeito à vida tomada como um valor em si produz deformações psicodinâmicas e sociais, respectivamente, nos processos de humanização e de socialização que ocorrem paralelamente. Esses desmandos têm um efeito bumerangue que reverte, maleficamente, sobre a própria humanidade. Comprova-o a crescente escalada do crime registrada nos repetidos anúncios de violência com que a mídia satura sua audiência. Assassinatos passionais, latrocínio, estupro, maus tratos contra a mulher, crianças e idosos, além dos crimes de colarinho branco que, afinal, redundam em violência... Sobressai ainda o consórcio de organizações criminosas com os poderes político e econômico, que acaba sendo desnaturante da própria estrutura social. Todos esses delitos são reflexos ostensivos do mau uso que o homem tem feito de sua liberdade, são consequências de escolhas viciadas feitas no passado, por falta de solidariedade...
Se analisarmos as possibilidades de sustentação da sociedade com plena realização da condição humana[1] evidenciaremos que os paradigmas a serem cultivados recaem, necessariamente, sobre a cooperação e a partilha. Mas, na contra mão desta orientação, a prática difundida, hoje em dia, da competição aética e do acúmulo de bens materiais está levando a humanidade e o Planeta a uma derrocada. Os Economistas, sobretudo os Humanistas cristãos não se cansam de fazer este alerta dramático, mas é preciso repeti-lo à exaustão objetivando cooptar os homens de boa vontade para assumirem a empreitada heroica de salvação da Humanidade.
A cooperação e a partilha são procedimentos eminentemente comunitários que fazem parte da prática solidária. Esta prática preenche a responsabilidade do homem no encaminhamento da evolução da vida antes comandada pelos determinismos que presidem as reações instintivas e os tropismos, e agora demarcada pelo exercício da liberdade criativa... Nesta nova etapa da Evolução se inserem as ações solidárias, conscientes, livres e responsáveis. Este passo gigantesco na história da Evolução propicia a exteriorização de disposições subjetivas virtuosas que se sobrepõem às tendências naturais... Nestes termos a solidariedade suaviza os conflitos sociais e une os homens, fortalecendo-os contra as antinomias da existência e resguardando o futuro da espécie. É com esta compreensão que estamos autorizados a afirmar coerentemente que, se no mundo selvagem o algoritmo da cadeia alimentar representa uma estratégia de sobrevivência, no mundo humano psicossocial e espiritual a garantia de sobrevivência repousa no exercício amplo e irrestrito da solidariedade. A esta conclusão já chegara Jesus, o Mestre dos mestres, há mais de dois mil anos, ao pregar o amor ao próximo. Quando Ele dizia “Amai-vos uns aos outros” estava alertando os homens para uma nova ordem, o algoritmo da solidariedade, garantia de sobrevivência da humanidade. É simples assim... Mas, é longa e tumultuada a caminhada para assimilar a nova ordem! É indispensável ter fé[2] no futuro do homem, para que não se rompa a corrente da Evolução.                   
Everaldo Lopes


[1] Potencialidade para o exercício da consciência e da responsabilidade
[2]“ Ter fé, não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê.” (M. de Unamuno)