sábado, 11 de fevereiro de 2017

Fundamento do eu



A evolução dos seres vivos percorreu caminhos tortuosos até a emergência no homem da capacidade de pensar e refletir sobre a existência pessoal. Depois de um longo percurso, a organização complexa do sistema nervoso central ensejou o exercício coordenado da consciência, do sentimento e da vontade. Estas funções psíquicas superiores permitiram ao homem escolher e orientar sua ação segundo os valores consagrados, culturalmente, pela sociedade em que está inserido. O livre arbítrio surgiu então no horizonte da evolução tornando-se o homem responsável por suas escolhas. Dessa forma, o ser humano se caracteriza por uma vertente biológica e outra cultural. A biológica culmina com a formação de estruturas complexas do sistema nervoso central, e a cultural, elaborada por cada um prolonga a sabedoria natural do corpo e culmina com a capacidade de julgar para decidir responsavelmente de acordo com um código comportamental assumido. Podendo erigir uma sociedade justa e igualitária,  o homem deverá influir na conservação do equilíbrio biológico e social, disciplinando seus hábitos alimentares e pautando a melhor forma de organizar livremente a coletividade humana . Finalmente, o diálogo entre os potenciais biológico e cultural do indivíduo abre espaço para variações de sua conduta, configurando a necessidade de estabelecer e tornar efetivos critérios decisórios representados por direitos e deveres individuais e sociais que assumem a dignidade de valores.
A realidade cultural é de natureza extremamente complexa ao envolver fatores psicobiológicos pessoais, sociais, e ambientais que interagem mutuamente. A dinâmica cultural fundamentada no livre arbítrio deverá  promover a harmonia da unidade perfeita do indivíduo integrado num todo significativo. A compreensão das  conexões biopsíquicas e culturais  ultrapassa os limites da lógica linear limitada a causas e efeitos singulares imediatos. Esta compreensão só se evidencia à luz da lógica da complexidade que abrange em perspectiva a interação exemplar entre todos os elementos da realidade humano-social, e revela a perfeição da unidade psicossocial, na qual tudo tem a ver com tudo.
            A integração das vertentes biológica e cultural do homem se constrói, exemplarmente, mediante o processo de socialização consciente e livre do indivíduo inspirado no ideal comunitário cujo fundamento é a solidariedade humana. O comportamento resultante desta integração envolve conhecimento, respeito, humildade, estima, responsabilidade e indulgência essenciais à construção e manutenção da comunidade dos homens.
            Quando nos detemos diante da análise da constituição do homem  chama atenção a necessidade de um apoio transcendental para a consciência da própria identidade individual. O fundamento do “eu” verdadeiro não são as funções biológicas estruturadas do sistema nervoso central nem tão pouco o conteúdo subjetivo pessoal. Não corresponde a uma síntese de ideias sobre a realidade íntima (subjetiva) de cada um. Esses conteúdos variam ao longo do crescimento desde a infância até a adultidade, no entanto a vivência do “eu” profundo que centraliza a consciência original de cada um é a mesma, não muda com o tempo. Este fundamento do eu,  portanto,  está para além do tempo e do espaço, transcende tudo que é permeável à análise racional. A natureza universal e totalizante (dedutiva e indutiva) deste fundamento lhe permite separar o eu e o tu (o  outro), mas também os reúne numa unidade transcendental (o nós) e os torna solidários mediante a coparticipação constitutiva de ambos (eu e tu), inspirada na busca da integração perfeita em um absoluto que tudo abrange.  
O eu só existe diante de um tu. Constitutivamente, como dissemos antes, o “eu” não pode ser reduzido a uma realidade biológica ou cultural, tem originalmente um viés social, transcende a psique pura; e é  vivenciado por cada um como um princípio subsistente em si mesmo, manifesto “na consciência silenciosa e sem forma dentro da qual  inúmeras impressões aparecem e desaparecem sem deixar rastro.” [1] Existencialmente, este princípio ancora a razão, o sentimento e a vontade e se manifesta sabiamente pleno na interseção destas dimensões humanas, à sombra de  uma visão de mundo que para ser válida precisa ser holística[2], isto é, deve acolher as partes do todo integrando-as numa totalidade significativa. Nessa caminhada, a dificuldade de vivenciar o suporte pessoal do “eu” na diversidade complexa do todo absoluto deixa o homem sem chão do ponto de vista psíquico afetivo. Faz-lhe falta definir o indefinível, um princípio transcendental que apenas pode ser vivenciado, sobre o qual o indivíduo apoia sua realidade subjetiva assumindo-a como o próprio “eu”. Ou seja, por trás da vivência egoica de um conteúdo subjetivo existe um potencial inesgotável de reconhecimento da unidade de tudo que existe, vivenciado como uma aspiração incontornável à integração holística do próprio eu na realidade toda, o homem e o universo. Esse potencial é o fundamento do eu mais profundo. Na ausência deste fundamento, o indivíduo flutua sem um ancoradouro onde possa amarrar suas crenças, mal amparado apenas por especulações metafísicas que não bastam para garantir ao ser consciente a vivência do seu lugar num todo absoluto, perfeito. Sem esta vivência, o indivíduo sofre a ansiedade e a angústia de apoiar-se no nada. E para anular a inquietação acompanhante urge que cada um abrace, com a força de uma crença, sua vocação de perfeição unitária reflexo da realidade interior mais profunda. Neste espaço subjetivo o homem trabalha os dados da sua realidade interior e circunstancial, em busca da vivência da perfeição unitária absoluta que só se realiza na prática mística. A vivência da integração na unidade de um absoluto transcendental significativo confere ao indivíduo a certeza de vir a ser harmoniosamente criativo com os outros no mundo, mediante participação holística em que cada um mantém relação imediata com todos os demais membros da comunidade sob a inspiração de participar de uma totalidade acabada significativa.
            Enquanto não vivencia o fundamento transcendental do “eu”, o sujeito consciente fica perdido dentro de si mesmo, perturbado pela insegurança, tornando-se presa fácil da depressão. Descentrado, corre o risco de buscar aturdir-se em atividades frenéticas nas quais espera afogar a ansiedade e angústia decorrentes da insegurança total. Nesse clima de incertezas encontram-se  muitos jovens e adultos que, desarvorados, procuram nas drogas e na violência mitigar a dor existencial do sem sentido aparente da vida desgarrada de uma unidade absoluta criadora.


[1] Mooji (Guru indiano)
[2] Tendência, que se supõe seja própria do Universo, a sintetizar unidades em totalidades organizadas. Teoria segundo a qual o homem é um todo indivisível, e que não pode ser explicado pelos seus distintos componentes (físico, psicológico ou psíquico), considerados separadamente; holística.