É um desafio invencível desvendar
o elo entre as manifestações psíquicas superiores[1] e a estrutura
biológica do homem. Como acontece a transição entre os fenômenos neuronais de
natureza material (bioquímica) e o pensamento, imaterial? Permanece inacessível à razão a intimidade do
processo psíquico que culminou com o exercício da consciência reflexiva e do
livre arbítrio, os marcos mais avançados da evolução no mundo conhecido. Essas
conquistas mudaram o rumo da Evolução. Elas tornaram possível ao homem fazer
escolhas e tomar decisões conscientes que ultrapassam as possibilidades
evolutivas limitadas aos determinismos físico químicos e aos feedbacks biológicos. Dessa forma, o homem perdeu a condição de um
ser natural; sua existência é uma construção cultural representada pelo “... conjunto de características humanas que não
são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e
cooperação entre indivíduos, em sociedade”[2].
O processo evolutivo desviou-se do aprimoramento individual para a excelência
da organização social.
A Evolução alcançou a
máxima complexidade biológica no homem; agora, para garantir a sobrevivência da
espécie deverá encaminhar-se no sentido social, desenvolvendo a capacidade
humana de organização solidária em uma
comunidade universal.
O exercício do livre
arbítrio exige responsabilidade nas escolhas pessoais, mediante a utilização de
critérios totalmente confiáveis. Ora, os
critérios estéticos e éticos não preenchem este requisito porque não têm a
garantia de uma autoridade absoluta. Depois de viver o nível ético de
existência o homem sente necessidade de ultrapassá-lo, arrimando sua decisão num
valor absoluto transcendental mediante experiência de fé em um todo perfeito
cuja harmonia encerra a verdade suprema. Kierkegaard definiu essa situação como
o nível religioso da existência. Ante
essa realidade, evidencia-se que o fenômeno humano tem um fundamento místico. Nesse
contexto, a afirmação de Jesus: “Eu sou o caminho a verdade e a vida”[3] ganha sua dimensão
própria decisiva no processo evolutivo. Ao fazer essa declaração, Jesus ultrapassa sua
imanência biológica para confirmar definitivamente o perfil sobrenatural do
homem, sabendo que não haveria outra forma
de fazê-lo senão, assumindo, ele mesmo, como homem, o caráter divino. E
tomou para si a responsabilidade de anunciar-se o modelo existencial exemplar, arrematando em caráter
definitivo o perfil do ser humano e o critério supremo para suas escolhas. Para
autenticar sua proposta Jesus consagrou-a, testemunhando-a de forma terminante,
ao deixar-se crucificar até a morte. Desde então o apelo do seu exemplo divide
os homens entre os que creem nele e os que não lhe creditam confiança total. Na
verdade somos todos divinos; o Criador permanece necessariamente na sua
criatura, pois esta é incapaz de subsistir por conta própria. Assim, Deus está presente em
todo homem. A diferença é que no contexto bíblico a fé na divindade de Jesus é
reforçada pela confirmação durante toda vida do Nazareno das profecias que
constam do Antigo Testamento sobre sua pessoa. Presságios feitos com tanta
antecedência uma vez confirmados ganham foros de verdade com repercussões místicas inevitáveis. Assumir ou
não o modelo cristão do homem continua sendo uma questão de fé na palavra de
Jesus.
O reconhecimento da complexificação crescente
da matéria primitiva, caótica, que caminhou no sentido da organização dos
corpos compostos, da vida e da própria consciência reflexiva permite alinhar
especulações sugestivas da necessidade lógica de um ordenador supremo inscrito
na própria Criação como um dinamismo absoluto eternamente criativo. Mas esse
voo intelectual não é suficiente para aquietar as dúvidas existenciais. Só a
vivência de fé numa vinculação pessoal harmoniosa com um todo absoluto
transcendental pode conferir ao homem a segurança a que ele aspira diante da
consciência da própria finitude. O ato de fé confirma a “Presença ignorada de
Deus”[4] no inconsciente pessoal
mediante abraço emocional consciente que cinge uma realidade interior
transcendental irredutível ao conhecimento objetivo.
No seguimento das
especulações sobre a “complexificação crescente da matéria”[5] podemos dizer que o
homem não é um animal que se espiritualiza, mas a manifestação do espírito
pré-existente que organizou a matéria até a complexidade do ser humano. Todavia, por mais inteligente que o homem fosse
não poderia dizer a última palavra sobre si mesmo e o mundo. No seu acontecer
histórico a razão humana se restringe à temporalidade, mas a realidade que
abrange o princípio e o fim de tudo que existe é transcendental.
A leitura fiel, compreensiva,
da linguagem cifrada pelo absoluto na sua criatura revelaria o mistério
do ser. Mas esta leitura não se exaure à luz dos recursos puramente racionais; exige
a fé que amarra o homem à transcendência infinita, num transe místico, sem sacrificar
sua unidade pessoal enquanto participa da temporalidade. Nesta linha de
pensamento na afirmação de Jesus, já citada, no Evangelho de João está
implícita a consciência de que se algum homem jamais assumisse histórica e
dogmaticamente a dignidade do próprio Criador para definir o perfil do
verdadeiro homem, certamente não teríamos como fazê-lo, uma vez que deste não há um protótipo
na Natureza. O recém nascido vem ao
mundo com os atributos que lhe permitem desenvolver a condição humana, a
consciência crítica, o livre arbítrio e a responsabilidade; com esses
atributos, cada um constrói sua humanidade.
A Filosofia jamais
alcança o conhecimento da essência do mundo e do homem. A razão humana não
consegue dissipar os contrastes da realidade visível que esconde a essência
unitária do homem representada pela síntese universal perfeita do cosmo e da
consciência. Todavia, encarnando o exemplo de Jesus reproduzimos na nossa
própria existência o perfil do verdadeiro homem. Obviamente, a vivência dessa experiência só
se torna existencialmente efetiva numa entrega incondicional do sujeito
consciente ao absoluto criador através de autêntico ato de fé. É preciso ir além do real palpável para viver
o fenômeno humano em plenitude.
A consciência reflexiva demanda
uma distância virtual (descontinuidade subjetiva) entre o objeto e o sujeito do
conhecimento. Essa falha da continuidade
processual inerente ao exercício da consciência reflexiva choca-se com a linearidade fenomênica
biológica do Sistema Nervoso Central através do qual se manifesta o pensamento reflexivo.
Todavia a distância virtual entre o sujeito e o objeto do conhecimento é fundamental
para o exercício da liberdade que preside as escolhas pessoais compatíveis
com a passagem para níveis mais altos de integração do homem na ordem evolutiva.
Esta distância virtual) permite ao sujeito do conhecimento uma observação
detida da realidade percebida, para aprimorá-la. A consciência transcende,
pois, os fenômenos biológicos complexos do Sistema Nervoso Central, constituindo-se
num salto de qualidade irredutível a uma explicação fenomênica convencional. O
exercício da consciência e do livre arbítrio confere ao homem a capacidade de influir
no rumo da Evolução, e dessa forma colaborar para a construção de uma sociedade
solidária indispensável à continuidade da própria Evolução.
Everaldo Lopes