terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O homem e a Evolução



É um desafio invencível desvendar o elo entre as manifestações psíquicas superiores[1] e a estrutura biológica do homem. Como acontece a transição entre os fenômenos neuronais de natureza material (bioquímica) e o pensamento, imaterial?  Permanece inacessível à razão a intimidade do processo psíquico que culminou com o exercício da consciência reflexiva e do livre arbítrio, os marcos mais avançados da evolução no mundo conhecido. Essas conquistas mudaram o rumo da Evolução. Elas tornaram possível ao homem fazer escolhas e tomar decisões conscientes que ultrapassam as possibilidades evolutivas limitadas aos determinismos físico químicos  e aos feedbacks biológicos.  Dessa forma, o homem perdeu a condição de um ser natural; sua existência é uma construção cultural representada pelo “...  conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos, em sociedade”[2]. O processo evolutivo desviou-se do aprimoramento individual para a excelência da organização social.
A Evolução alcançou a máxima complexidade biológica no homem; agora, para garantir a sobrevivência da espécie deverá encaminhar-se no sentido social, desenvolvendo a capacidade humana de organização solidária  em uma comunidade universal.
O exercício do livre arbítrio exige responsabilidade nas escolhas pessoais, mediante a utilização de critérios totalmente confiáveis.  Ora, os critérios estéticos e éticos não preenchem este requisito porque não têm a garantia de uma autoridade absoluta. Depois de viver o nível ético de existência o homem sente necessidade de ultrapassá-lo, arrimando sua decisão num valor absoluto transcendental mediante experiência de fé em um todo perfeito cuja harmonia encerra a verdade suprema. Kierkegaard definiu essa situação como o nível religioso da existência.  Ante essa realidade, evidencia-se que o fenômeno humano tem um fundamento místico. Nesse contexto,  a afirmação de Jesus: “Eu sou  o caminho a verdade e a vida”[3] ganha sua dimensão própria  decisiva no processo evolutivo.  Ao fazer essa declaração, Jesus ultrapassa sua imanência biológica para confirmar definitivamente o perfil sobrenatural do homem, sabendo que não haveria outra forma  de fazê-lo senão, assumindo, ele mesmo, como homem, o caráter divino. E tomou para si a responsabilidade de anunciar-se o modelo  existencial exemplar, arrematando em caráter definitivo o perfil do ser humano e o critério supremo para suas escolhas. Para autenticar sua proposta Jesus consagrou-a, testemunhando-a de forma terminante, ao deixar-se crucificar até a morte. Desde então o apelo do seu exemplo divide os homens entre os que creem nele e os que não lhe creditam confiança total. Na verdade somos todos divinos; o Criador permanece necessariamente na sua criatura, pois esta é incapaz de subsistir por  conta própria. Assim, Deus está presente em todo homem. A diferença é que no contexto bíblico a fé na divindade de Jesus é reforçada pela confirmação durante toda vida do Nazareno das profecias que constam do Antigo Testamento sobre sua pessoa. Presságios feitos com tanta antecedência uma vez confirmados ganham foros de verdade com  repercussões místicas inevitáveis. Assumir ou não o modelo cristão do homem continua sendo uma questão de fé na palavra de Jesus.
 O reconhecimento da complexificação crescente da matéria primitiva, caótica, que caminhou no sentido da organização dos corpos compostos, da vida e da própria consciência reflexiva permite alinhar especulações sugestivas da necessidade lógica de um ordenador supremo inscrito na própria Criação como um dinamismo absoluto eternamente criativo. Mas esse voo intelectual não é suficiente para aquietar as dúvidas existenciais. Só a vivência de fé numa vinculação pessoal harmoniosa com um todo absoluto transcendental pode conferir ao homem a segurança a que ele aspira diante da consciência da própria finitude. O ato de fé confirma a “Presença ignorada de Deus”[4] no inconsciente pessoal mediante abraço emocional consciente que cinge uma realidade interior transcendental irredutível ao conhecimento objetivo.
No seguimento das especulações sobre a “complexificação crescente da matéria”[5] podemos dizer que o homem não é um animal que se espiritualiza, mas a manifestação do espírito pré-existente que organizou a matéria até a complexidade do ser humano.  Todavia, por mais inteligente que o homem fosse não poderia dizer a última palavra sobre si mesmo e o mundo. No seu acontecer histórico a razão humana se restringe à temporalidade, mas a realidade que abrange o princípio e o fim de tudo que existe é transcendental.
A leitura fiel, compreensiva, da linguagem cifrada pelo absoluto  na sua criatura revelaria o mistério do ser. Mas esta leitura não se exaure à luz dos recursos puramente racionais; exige a fé que amarra o homem à transcendência infinita, num transe místico,  sem  sacrificar sua unidade pessoal enquanto participa da temporalidade. Nesta linha de pensamento na afirmação de Jesus, já citada, no Evangelho de João está implícita a consciência de que se algum homem jamais assumisse histórica e dogmaticamente a dignidade do próprio Criador para definir o perfil do verdadeiro homem, certamente não teríamos como  fazê-lo, uma vez que deste não há um protótipo na Natureza.  O recém nascido vem ao mundo com os atributos que lhe permitem desenvolver a condição humana, a consciência crítica, o livre arbítrio e a responsabilidade; com esses atributos, cada um constrói sua humanidade.
A Filosofia jamais alcança o conhecimento da essência do mundo e do homem. A razão humana não consegue dissipar os contrastes da realidade visível que esconde a essência unitária do homem representada pela síntese universal perfeita do cosmo e da consciência. Todavia, encarnando o exemplo de Jesus reproduzimos na nossa própria existência o perfil do verdadeiro homem.  Obviamente, a vivência dessa experiência só se torna existencialmente efetiva numa entrega incondicional do sujeito consciente ao absoluto criador através de  autêntico ato de fé.   É preciso ir além do real palpável para viver o fenômeno humano em plenitude.
A consciência reflexiva demanda uma distância virtual (descontinuidade subjetiva) entre o objeto e o sujeito do conhecimento.  Essa falha da continuidade processual inerente ao exercício da consciência  reflexiva choca-se com a linearidade fenomênica biológica do Sistema Nervoso Central através do qual se manifesta o pensamento reflexivo. Todavia a distância virtual entre o sujeito e o objeto do conhecimento é fundamental para  o exercício da liberdade  que preside as escolhas pessoais compatíveis com a passagem para níveis mais altos de integração do homem na ordem evolutiva. Esta distância virtual) permite ao sujeito do conhecimento uma observação detida da realidade percebida, para aprimorá-la. A consciência transcende, pois, os fenômenos biológicos complexos do Sistema Nervoso Central, constituindo-se num salto de qualidade irredutível a uma explicação fenomênica convencional. O exercício da consciência e do livre arbítrio confere ao homem a capacidade de influir no rumo da Evolução, e dessa forma colaborar para a construção de uma sociedade solidária indispensável à continuidade da própria Evolução.  
Everaldo Lopes


[1] Consciência reflexiva, inteligência racional, vontade  e criatividade.
[2] Aurélio
[3] João 14;6
[4] Título de um livro publicado por Victor Frankl
[5] Tese defendida por Teilhard de Chardin em “O fenômeno himano”.