domingo, 13 de outubro de 2013

A originalidade do modo de ser próprio do homem



O desenvolvimento humano coincide com a possibilidade de cada um expressar sua originalidade. Isso implica em escolhas e decisões criativas que são pessoais. Nos primórdios da humanidade a capacidade inventiva foi muito útil para satisfazer as necessidades fundamentais de sobrevivência, entre outras, a de defesa contra os riscos constantes à própria integridade física. Na vida selvagem a fragilidade humana diante de outros mamíferos poderosos despertou no Homo Sapiens a necessidade de ultrapassar o instinto gregário. Evoluiu, então, para formas elaboradas cada vez mais complexas de organização coletiva. Paralelamente, transcendendo as forças instintuais o homem desenvolveu, na convivência social, uma sensibilidade moral apoiada na responsabilidade pessoal dos indivíduos organizados em grupos. Esta responsabilidade evoluiria para o sentimento de solidariedade que aos poucos, historicamente, ainda está se consolidando. Então, na esteira da hominização criaram-se comportamentos políticos e econômicos complicados para atender os problemas emergentes cujas soluções precisam ser éticas e solidárias, para garantir-lhes a sustentabilidade. A inventividade construtiva do homem se distingue pela adoção das diretrizes morais necessárias à manutenção das conquistas realizadas. Normas associadas a valores éticos assumidos responsavelmente. Motivo porque, no cenário político-econômico e social a corrupção não resulta em obras sustentáveis.
Além da premência de satisfazer as necessidades primárias, no homem o esforço criativo atende à necessidade intelectual do pensador curioso de ampliar sua cosmovisão. No processo criativo é fundamental que o homem perceba perspectivas inéditas do real, reveladoras de detalhes antes ignorados. Podemos dizer que o novo está contido no antigo, obnubilado pela visão rotineira da realidade. A percepção perspicaz e audaz do observador curioso enseja uma nova compreensão do homem e de suas relações com o mundo. O valor cultural da novidade está na sua riqueza hermenêutica como ferramenta para o aprofundamento do saber teórico e prático já conquistado.
Teoricamente, para satisfazer a dimensão moral do homem todo esforço inovador deverá convergir para o bem comum. Nesse processo, descobrir no “antigo” uma nuance inédita é um primeiro passo. Contextualizar esta nuance num todo significativo, ampliando os contornos compreensíveis da realidade é o segundo passo do processo criativo. Dessa forma amplia-se a visão de mundo descortinada pelo indivíduo, alargando ainda mais suas possibilidades criativas. Imaginar a novidade e estrutura-la numa nova ordem significativa que inclua e magnifique a anterior melhorando as condições existenciais é a curtição do ser consciente inteligente e criativo. Através do exercício do poder criativo, necessariamente livre, se configura a originalidade do ser humano. A condução ética do poder criativo do homem incide no esforço de impedir que a novidade desestabilize os valores universais (verdade, justiça, solidariedade) fundamentos da realização da humanidade plena. Esta disposição instalada no cerne da própria Evolução garante-lhe a continuidade através do homem. O comportamento aético distorce o roteiro da Evolução quando esta é redirecionada do plano puramente biológico, para o psicossocial.
Entre a curiosidade ingênua da criança que vê o mundo pela primeira vez, e a certeza adulta de jamais conhecer tudo sobre o Universo, o homem desenvolve esforço heroico no sentido de fazer um rascunho inteligível da realidade visível. Quanto mais profundo for esse conhecimento, mais o homem se dará conta do problema metafísico inerente à curiosidade de compreender a misteriosa unidade da matéria e do espírito. Racionalmente, a ideia abstrata do “Espírito absoluto eternamente criativo” surge nas especulações filosóficas como uma necessidade lógica a partir da impossibilidade de explicar a matéria por ela mesma. Nesse ponto, assumimos, pessoalmente, a tese criacionista monista espiritualista na qual o Espírito (absoluto, eterno) preside o mundo e se revela ostensivamente nas funções psíquicas superiores do homem (consciência reflexiva, pensamento intuitivo) para as quais não se encontra uma explicação biológica. A dificuldade de entender objetivamente a unidade matéria / espírito abre espaço subjetivo no sujeito cognoscente para a polarização entre o que é necessariamente extenso e temporal apreensível através dos sentidos humanos, e o absoluto inerente a uma mundividência plena, significativa, apenas intuída que abrange um pressuposto “espiritual” inextenso e intemporal. Dada a restrição da sua capacidade de observação direta das profundezas insondáveis da realidade o homem faz uso da capacidade filosofante; para atender ao anseio de plenitude, alimenta a disposição de conhecer mais mediante especulações que complementem a apreensão, pelos sentidos, da realidade objetiva. Dessa forma o homem mantém vivo o entusiasmo em busca de novas conquistas existenciais. Percebe que mesmo distante da realização do ideal impossível de uma compreensão objetiva da unidade das dimensões espiritual e física da realidade, as experiências acumuladas nas andanças especulativas guardam a nostalgia de um elo espiritual que não se pode objetivar e não se descreve na especulação racional pura, mas ganha força de verdade numa vivência mística. Assim o homem constrói sua existência, reconhecendo, mais do que isso, subscrevendo valores que demarcam seu vir-a-ser consciente livre e responsável. Suas especulações metafísicas tangenciam a intuição do todo significativo absoluto no qual está contextualizado, e do qual se sente nostálgico mesmo sem compreendê-Lo. A tese espiritualista monista que assumimos está amarrada a estas especulações. Nela está embutido um absoluto, absurdo irredutível às leis da razão que é objeto de fé, e não comporta explicação. Seres racionais que somos, aceitamos mais naturalmente o que podemos alcançar com os sentidos e resistimos em acolher como verdade indiscutível o que escapa do limite da percepção sensorial. Todavia há muita coisa na relação do homem consigo mesmo e com sua circunstância psicossocial e ambiental que não se enquadra nos limites da percepção sensorial. A incorporação existencial desta parcela da realidade que escapa do controle objetivo racional demandará um ato de fé. Todavia a assimilação das verdades de fé não é inteiramente alheia à razão. Como vimos, anteriormente, a partir de verdades racionais podemos elaborar especulações que apontam para as verdades ditas de fé[1], embora, obviamente, não lhes sirvam de comprovação objetiva. A partir desta constatação torna-se inteligível a célebre definição de Miguel de Unamuno. “Ter fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê.” Dessa forma ter fé não se restringe a um ato passivo, é um processo de envolvimento psíquico intelectual, emocional e volitivo, necessário à experiência de integração do indivíduo num todo significativo. O ato de  fé acaba sendo portanto um ato criativo que marca a originalidade do homem.    
 Everaldo Lopes


[1] Vide os textos Devaneio especulativos I,II,III, editados neste blog.