O
desenvolvimento humano coincide com a possibilidade de cada um expressar sua
originalidade. Isso implica em escolhas e decisões criativas que são pessoais. Nos
primórdios da humanidade a capacidade inventiva foi muito útil para satisfazer
as necessidades fundamentais de sobrevivência, entre outras, a de defesa contra
os riscos constantes à própria integridade física. Na vida selvagem a
fragilidade humana diante de outros mamíferos poderosos despertou no Homo
Sapiens a necessidade de ultrapassar o instinto gregário. Evoluiu, então, para
formas elaboradas cada vez mais complexas de organização coletiva. Paralelamente,
transcendendo as forças instintuais o homem desenvolveu, na convivência social,
uma sensibilidade moral apoiada na responsabilidade pessoal dos indivíduos
organizados em grupos. Esta responsabilidade evoluiria para o sentimento de
solidariedade que aos poucos, historicamente, ainda está se consolidando. Então,
na esteira da hominização criaram-se comportamentos políticos e econômicos complicados
para atender os problemas emergentes cujas soluções precisam ser éticas e
solidárias, para garantir-lhes a sustentabilidade. A inventividade construtiva do
homem se distingue pela adoção das diretrizes morais necessárias à manutenção das
conquistas realizadas. Normas associadas a valores éticos assumidos
responsavelmente. Motivo porque, no cenário político-econômico e social a
corrupção não resulta em obras sustentáveis.
Além
da premência de satisfazer as necessidades primárias, no homem o esforço
criativo atende à necessidade intelectual do pensador curioso de ampliar sua
cosmovisão. No processo criativo é fundamental que o homem perceba perspectivas
inéditas do real, reveladoras de detalhes antes ignorados. Podemos dizer que o
novo está contido no antigo, obnubilado pela visão rotineira da realidade. A
percepção perspicaz e audaz do observador curioso enseja uma nova compreensão do
homem e de suas relações com o mundo. O valor cultural da novidade está na sua
riqueza hermenêutica como ferramenta para o aprofundamento do saber teórico e
prático já conquistado.
Teoricamente,
para satisfazer a dimensão moral do homem todo esforço inovador deverá convergir
para o bem comum. Nesse processo, descobrir no “antigo” uma nuance inédita é um
primeiro passo. Contextualizar esta nuance num todo significativo, ampliando os
contornos compreensíveis da realidade é o segundo passo do processo criativo. Dessa
forma amplia-se a visão de mundo descortinada pelo indivíduo, alargando ainda
mais suas possibilidades criativas. Imaginar a novidade e estrutura-la numa
nova ordem significativa que inclua e magnifique a anterior melhorando as
condições existenciais é a curtição do ser consciente inteligente e criativo. Através
do exercício do poder criativo, necessariamente livre, se configura a
originalidade do ser humano. A condução ética do poder criativo do homem incide
no esforço de impedir que a novidade desestabilize os valores universais
(verdade, justiça, solidariedade) fundamentos da realização da humanidade
plena. Esta disposição instalada no cerne da própria Evolução garante-lhe a
continuidade através do homem. O comportamento aético distorce o roteiro da Evolução
quando esta é redirecionada do plano puramente biológico, para o psicossocial.
Entre
a curiosidade ingênua da criança que vê o mundo pela primeira vez, e a certeza
adulta de jamais conhecer tudo sobre o Universo, o homem desenvolve esforço
heroico no sentido de fazer um rascunho inteligível da realidade visível. Quanto
mais profundo for esse conhecimento, mais o homem se dará conta do problema
metafísico inerente à curiosidade de compreender a misteriosa unidade da
matéria e do espírito. Racionalmente, a ideia abstrata do “Espírito absoluto
eternamente criativo” surge nas especulações filosóficas como uma necessidade lógica
a partir da impossibilidade de explicar a matéria por ela mesma. Nesse ponto, assumimos,
pessoalmente, a tese criacionista monista espiritualista na qual o Espírito (absoluto,
eterno) preside o mundo e se revela ostensivamente nas funções psíquicas
superiores do homem (consciência reflexiva, pensamento intuitivo) para as quais
não se encontra uma explicação biológica. A dificuldade de entender
objetivamente a unidade matéria / espírito abre espaço subjetivo no sujeito
cognoscente para a polarização entre o que é necessariamente extenso e temporal
apreensível através dos sentidos humanos, e o absoluto inerente a uma
mundividência plena, significativa, apenas intuída que abrange um pressuposto “espiritual”
inextenso e intemporal. Dada a restrição da sua capacidade de observação direta
das profundezas insondáveis da realidade o homem faz uso da capacidade
filosofante; para atender ao anseio de plenitude, alimenta a disposição de
conhecer mais mediante especulações que complementem a apreensão, pelos
sentidos, da realidade objetiva. Dessa forma o homem mantém vivo o entusiasmo
em busca de novas conquistas existenciais. Percebe que mesmo distante da
realização do ideal impossível de uma compreensão objetiva da unidade das
dimensões espiritual e física da realidade, as experiências acumuladas nas
andanças especulativas guardam a nostalgia de um elo espiritual que não se pode
objetivar e não se descreve na especulação racional pura, mas ganha força de
verdade numa vivência mística. Assim o homem constrói sua existência,
reconhecendo, mais do que isso, subscrevendo valores que demarcam seu vir-a-ser
consciente livre e responsável. Suas especulações metafísicas tangenciam a
intuição do todo significativo absoluto no qual está contextualizado, e do qual
se sente nostálgico mesmo sem compreendê-Lo. A tese espiritualista monista que
assumimos está amarrada a estas especulações. Nela está embutido um absoluto,
absurdo irredutível às leis da razão que é objeto de fé, e não comporta
explicação. Seres racionais que somos, aceitamos mais naturalmente o que
podemos alcançar com os sentidos e resistimos em acolher como verdade
indiscutível o que escapa do limite da percepção sensorial. Todavia há muita
coisa na relação do homem consigo mesmo e com sua circunstância psicossocial e
ambiental que não se enquadra nos limites da percepção sensorial. A
incorporação existencial desta parcela da realidade que escapa do controle
objetivo racional demandará um ato de fé. Todavia a assimilação das verdades de
fé não é inteiramente alheia à razão. Como vimos, anteriormente, a partir de
verdades racionais podemos elaborar especulações que apontam para as verdades
ditas de fé[1],
embora, obviamente, não lhes sirvam de comprovação objetiva. A partir desta
constatação torna-se inteligível a célebre definição de Miguel de Unamuno. “Ter
fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê.” Dessa forma ter fé não
se restringe a um ato passivo, é um processo de envolvimento psíquico
intelectual, emocional e volitivo, necessário à experiência de integração do
indivíduo num todo significativo. O ato de
fé acaba sendo portanto um ato criativo que marca a originalidade do
homem.
Everaldo Lopes