quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A espiritualidade reflete uma tentativa de superação pessoal

A angústia existencial é a mesma para materialistas e espiritualistas.  Confiar na sobrevivência da alma imortal não muda a ansiedade do ser consciente que se sabe biológica e existencialmente limitado. O que faz a diferença é ser empolgado pelo amor que tudo envolve e eterniza, transformando a existência numa abertura permanente para a plenitude pessoal contextualizada num todo significativo. Viver este amor que tudo transforma tem mais força e promove maior repercussão no equilíbrio psicobiológico do que ter o saber especulativo que demonstra a necessidade lógica de uma transcendência absoluta. A própria fé só é um refúgio espiritual se for um testemunho de amor. Conceber racionalmente a necessidade lógica de um dinamismo absoluto eternamente criativo para justificar a existência do cosmo e a do próprio ser consciente (ambas contingentes) satisfaz a razão, mas essa conquista intelectual sem um suporte amoroso não suprime a ansiedade diante do vir a ser existencial incerto. Se não formos empolgados pelo amor, possuir este saber é como ter um depósito em moeda estrangeira sem poder trocá-la por moeda corrente. Acabaríamos com uma fortuna nas mãos sem poder “comprar” o de que precisássemos para abrigar-nos da angústia despertada pelas fragilidades temporais.
O amor doação que necessitamos experimentar para existir em plenitude é um dom e como tal não se pode adquiri-lo, por mais disciplinado, inteligente e desejoso de possui-lo que alguém possa ser. Pode-se, todavia, manter e cultivar a receptividade para uma experiência totalizante, de cunho afetivo. Para consumar existencialmente o propósito de estabelecer uma relação de amor com a transcendência absoluta é preciso sentir uma comoção espiritual que não há como forjar senão pela mobilização das potencialidades afetivas inerentes à condição humana; estas potencialidades, porém, são insensíveis aos argumentos racionais. Ou seja: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.”[1] É preciso sentir-se emocionalmente envolvido pela presença do absoluto transcendental cuja existência encontra apoio racional em especulações metafísicas pertinentes a partir da realidade conhecida[2]. Não basta, porém, reconhecer este apoio intelectual. Para vivenciar a reciprocidade do amor universal é preciso ser tocado por sentimentos que aproximem a criatura consciente, do seu Criador. A iniciativa do convite é do Criador, mas a criatura precisa responder a este convite reconhecendo humildemente sua precariedade existencial. A reação receptiva do ser consciente pode ser inicialmente uma abertura racional, mas precisa ser traduzida em sentimento, em amor pelo Criador e por suas criaturas. Muitos de nós não ultrapassamos a etapa intelectual do saber esclarecido que aponta para uma transcendência absoluta. É preciso amar e sentir-se amado pessoalmente no vir a ser histórico pessoal a fim de que floresça a vivência do amor universal. Não se tem como comandar este desfecho, mas todos sentem que ser capaz de protagonizar o amor doação é fundamental para a realização da experiência mística. A vivência intuitiva da unidade perfeita de toda realidade visível e invisível predispõe ao encontro redentor na comunidade de consciências inscrita na unidade do Espírito absoluto. A transição do comportamento racional para o afetivo é um “salto quântico”[3], e não o resultado de um  processo[4]. Com seus recursos psíquico afetivos o ser consciente pode apenas permanecer receptivo ao chamamento do Absoluto intangível, e esperar o milagre que lhe há de proporcionar a vivência interior de uma intimidade amorosa com as criaturas, e através delas com o próprio Criador. Desta intimidade entre a criatura consciente e o Criador resultaria a vivência de plenitude absoluta. Uma analogia ajuda a descrever a paz infinita desta vivência. A comparação mais apropriada dessa experiência seria com a de sentir-se invadido por uma luz que espalhasse a mesma intensidade luminosa em todos os sentidos desfazendo as sombras e as contradições.  Iluminação que corresponderia a uma vivência de plenitude absoluta. Só este sentimento profundo confirma a entrega total resultante do amor doação (caridade[5]). Com essa experiência o ser consciente faz uma ponte subjetiva com a transcendência absoluta. Em verdade a “entrega” implícita na doação é algo que acontece, não pode ser ensinado ou aprendido. A capacidade do homem de ultrapassar-se sinaliza a predisposição do seu ser biopsíquico para viver uma entrega incondicional, transcendendo-se. Não obstante inalcançável mediante um esforço dirigido, o amor doação pode ser despertado, de repente, por uma palavra, um gesto, uma manifestação autêntica de solidariedade.
Enquanto vive a precariedade do seu vir a ser temporal, o homem se esforça para manter a serenidade que lhe é possível, na tentativa de despreocupar-se de cuidados excessivos com sua integridade física e moral. Isto implica estar disposto a enfrentar qualquer dificuldade, contando apenas com os recursos (razão, afetividade e vontade) disponibilizados ao ser consciente objetivamente cônscio dos limites inelásticos de ser no tempo. Esta disposição implica em não se deixar abater pelas derrotas sofridas ao longo do vir a ser histórico, alimentando o gosto de viver a despeito das adversidades, esperançoso de sempre dar a volta por cima sem perder o foco do objetivo existencial colimado, acreditando no próprio potencial criativo. Sem a ajuda mística do Criador este desempenho existencial redunda numa sobrecarga intolerável. O equilíbrio existencial precário só se transforma numa vivência de verdadeira paz mediante a experiência de fé num absoluto transcendental que tudo engloba e em que tudo faz sentido. No julgamento objetivo do materialista a experiência mística é ingênua. Mas, como vimos há pouco, na visão crítica do espiritualista esta “ingenuidade esclarecida” encontra respaldo em especulações metafísicas a partir da análise do mundo conhecido.  Tudo isso reflete a luta interior inerente aos desafios da elaboração de uma postura espiritual que alicerce a plenitude do ser consciente.
  Everaldo Lopes



[1] Blaise Pascal (1612 – 1662) Matemático, Físico, Filósofo.
[2] Vide em “Devaneio  especulativo I”: Se há uma ordem na construção do mundo e da vida, se toda ordem pressupõe uma intenção, se não há intenção fora da esfera da consciência, é forçoso que haja uma Consciência Universal! Portanto, a lógica especulativa nos conduz a uma realidade abstrata que a própria razão não consegue entender e descrever objetivamente. Mas isto ainda não basta. A elaboração intelectual precisa transformar-se numa forte convicção, consolidada no sentimento de comunhão profunda com a “transcendência absoluta”, patenteada numa vivência da unidade criatura / Criador.

[3] Que diz respeito a um sistema físico cujas grandezas físicas observáveis assumem valores discretos, de tal modo que a passagem de um determinado valor para outro ocorre de maneira descontínua, segundo as leis da mecânica quântica (Houaiss).

[4] Num sistema físico, a sucessão de estados intermediários na passagem entre dois estados evolutivos.

[5] No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem. (Aurélio)