sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Dinâmica da "existência" no contexto evolutivo


No determinismo evolutivo da Natureza, nascimento e morte perfazem uma seqüência inevitável na história da vida. Diga-se, aliás, necessária para o equilíbrio da biosfera[1]. Em verdade, ao nascerem, os organismos vivos se lançam inevitavelmente, passo a passo, nos caminhos do envelhecimento e da morte. Vivem e morrem, cumprindo ciclos biológicos entrelaçados na apoteose da vida que se renova a cada instante. Alguns sucumbem à ferocidade da luta selvagem pela sobrevivência, sob a lei do mais forte. Proporcionalmente a outras fatalidades, poucos morrem vitimados por desastres cataclísmicos. Embora frequente, a violência urbana inclusive os acidentes no trânsito, só eventualmente ceifa vidas preciosas. Mas nenhum ser vivo escapará da exaustão biológica que, ao longo do tempo, o leva necessariamente à  morte.
A vida é um namoro permanente com a morte. Nos organismos vivos se consumam cada segundo sextilhões de reações químicas... elas garantem as funções mantenedoras da vida. Sustentar a instabilidade destas reações num nível funcional é a única forma de conservar a vida. E esse equilíbrio instável está continuamente ameaçado. A vida resulta de uma organização biológica que se esgota com o tempo. Nas sucessivas transformações bioquímicas que lhe são inerentes perde-se, sempre, um resíduo de energia, irrecuperável.[2] Finalmente, mergulhando na imobilidade entrópica[3], através da morte, o ser vivo se reduz à completa desorganização das partículas materiais que lhe deram origem.
Uma visão penetrante revelaria a dança espetacular do Universo. As partículas e ondas energéticas estruturando-se, escalonadamente, em átomos, moléculas, e substâncias formadoras dos tecidos cujas células especializadas no desempenho de funções específicas compõem órgãos... estes agrupam-se em aparelhos e sistemas biológicos... enfim, organismos vivos que, após a morte, voltam a ser partículas e ondas energéticas. Em seguida, através de ciclos sucessivos, vencendo as mesmas etapas, estas partículas e ondas energéticas tornam a reproduzir organismos vivos que finalmente morrem... e retornam a imobilidade mineral[4], para  dar início a um novo ciclo. Enquanto puro movimento, esta dança é bela na sua variedade de passos, e o ser biológico se compraz momentaneamente com o seu ritmo. Beleza em que vida e morte compõem uma sinfonia polifônica cuja harmonia estética se basta a si mesma... O Universo na pura imanência do ser, do movimento, da beleza de cores e formas variadas, sob a embriaguez edênica da Natureza ingênua que não questiona. Nesse contexto irrompe a consciência que interroga o tempo, e busca na lógica da Evolução do Universo um sentido para a própria vida.
Com o despertar da consciência reflexiva, a Natureza até então imersa num sono telúrico apresenta-se a si mesma. E nesta reflexão consciente já não lhe basta dançar... é mister conhecer o significado do ritmo alucinante do Universo, tendo em vista identificar-lhe uma finalidade expressiva. Assim, a inteligência individual se superpõe à da espécie, nas escolhas e decisões conscientes que lastreiam a existência e modelam as relações humanas.  Esta mudança se relaciona ao nascimento da subjetividade consciente, instância em que por sobre os determinismos biológicos automáticos se abre espaço para a prática do livre arbítrio. Com esta abertura, o advento da consciência enseja uma mudança de orientação do processo evolutivo do Universo que, a partir de então, não está voltado, apenas, para o aprimoramento físico do homem, mas, também, e principalmente, para sua organização social a partir de decisões políticas, conscientes. Nesta perspectiva pode-se descrever um algoritmo implícito na dinâmica da existência[5]... A consciência cria condições para a liberdade de escolha... A escolha implica em opção, à luz de critérios definidos, de uma dentre as muitas alternativas... A opção é conduzida pela decisão de agir coerentemente com os valores assumidos... Decisão que demanda a vontade expressa de atualizar a escolha, contribuindo para a auto-afirmação do ser consciente dignificado pela coragem de vir-a-ser o que se propõe...  Proposta que encerra um projeto congruente com princípios éticos universais (valores). Em resumo, o sujeito consciente atualiza por sua conta e risco a possibilidade escolhida, em adesão à verdade assumida como um absoluto que encerra o sentido da própria existência... e assim passa a ser co-autor insubstituível do processo evolucionário. Tendo em vista o ideal comunitário sinalizado pela dimensão social da Evolução, compete-lhe elaborar e implantar formas solidárias de convivência que garantam a sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens.
Ao introduzir-se no Universo, o reino da subjetividade segmenta a realidade distinguindo nela o sujeito e o objeto da consciência. Instala-se assim a contradição no mundo, e o desafio ao sujeito da consciência de promover uma síntese que salve a unidade na qual se integrem o sujeito consciente reflexivo, necessariamente transcendental, e seu objeto, o mundo contingente, imanente. Não há como separar na consciência individual, a transcendência e a imanência (servomecanismo neuropsíquico) que a manifesta, sem destruir a unidade do ser humano. E é essa unidade “pessoal” que a existência realiza em respondendo ao desafio feito ao homem, de ser ao mesmo tempo significado e significante de si mesmo... um problema epistemológico insolúvel racionalmente.
A dança do Universo cuja coreografia fantástica se resolve esteticamente na própria imanência é, agora, no nível reflexivo, objeto de avaliação da consciência que lhe cobra um sentido, uma finalidade que a justifique.
Ao desvelar-se a si mesma através da consciência reflexiva, a Natureza se dá conta de sua própria imanência, e sofre com o homem a finitude do ciclo biológico. A participação do homem no concerto universal implica, necessariamente, em transcender a separação aparente consciência-mundo. Transcendência que a consciência reflexiva sinaliza ao tornar o homem presente a si mesmo. A Ciência não tem uma explicação satisfatória para essa “presentificação” que implica na identificação, misteriosa entre os termos do contraste fenomênico consciência / mundo... Na impossibilidade de entender racionalmente esta “alquimia” o homem fica preso a uma dualidade epistemológica que não lhe satisfaz à aspiração de unidade ontológica[7]...  E, para fugir do dilema, assimila esta unidade ontológica indescritível ao termo objetivo da dicotomia consciência / mundo... submetendo o mundo à análise lógica dos seus elementos constitutivos dele apropria-se intelectualmente de forma assintótica[8] mas funcional. Assim, a “realidade” apreendida se torna objeto de operações racionais que permitem um equacionamento aproximativo da realidade essencial inatingível. E desta forma o homem operacionaliza as relações práticas entre a consciência e o mundo. Mas, a consciência continua inexplicável. Submerso no mundo fenomênico, o homem não encontra resposta para muitos dos seus questionamentos. Em busca do substrato ontológico da sua própria existência, mergulha em especulações metafísicas e no culto às verdades de fé, na tentativa de unir a imanência e a transcendência, o consciente e o inconsciente mediante representação simbólica sustentada pela fé. É nesse sentido que Unamuno[9]  propõe: “Ter fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê”. Dando asas a esta virtude, o homem, ser temporal, cobiça a eternidade inerente à imortalidade de sua própria essência ontológica racionalmente indefinível. E busca resolver esta antinomia assumindo uma atitude religiosa que corresponde a implicações existenciais profundas...
A existência é o cadinho onde se elabora a unidade do ser consciente pela interação criativa das virtualidades intelectual, intuitiva, afetiva e volitiva. No vir a ser existencial, muitos se detêm em experiências fugazes consistentes em emoções e sentimentos sedutoramente absorventes. Isso implica em “buscar” o absoluto no instante fugidio... Equívoco suicida para a plenitude existencial!  Outros, ainda, não conseguindo perceber ou reconhecer as próprias contradições internas, vivem ausentes de si mesmos, sem o saberem. Cegos para a própria intimidade existencial, frente ao dilaceramento da existência entre a imanência e a transcendência reproduzem modelos culturais simplistas, vivendo-os, ingenuamente como procedimentos capazes de resolver suas antinomias existenciais na formalidade de um ritual... quando é a experiência mística vivencial simbolizada que anula a dicotomia existencial. Viver para eles não é mais uma experiência radical, porém uma rotina, sem originalidade, sem autenticidade.
Na verdade, o homem precisa de algo mais do que de um alimento para o corpo, ou de modelos rotineiros. Ele necessita encontrar um alento espiritual, existencialmente criativo, para não sucumbir à angústia resultante do conflito das antinomias (ou paradoxos existenciais) que escondem os limites indefiníveis da consciência reflexiva. Logicamente, para ser eficaz, este alimento espiritual deve estar na própria contingência do ser humano, conclusão que implica numa contradição epistemológica racionalmente incontornável... ou seja, Deus “cifrado” no mundo, como linguagem criativa imanente e transcendente. Em face desta antinomia, sem o respaldo da “fé”, fundamental para uma experiência mística (vivencial), eclode uma inquietação no ser consciente... Examinando-a, os existencialistas de diferentes correntes do pensamento lhe dão nomes diferentes... Para uns seria o desespero, para outros a esperança, outros ainda a tomam como a ansiedade da condenação de ser livre, enquanto os místicos se empenham numa luta heróica pela ultrapassagem de todas as contradições mediante uma experiência íntima radical. Todas essas posturas refletem formas particulares de responder ao desafio da construção do próprio homem a partir da “falta” de um substrato ontológico no qual se fundamente a “existência”. Esta mesma existência que acaba sendo a resposta pessoal, livre, responsável, de cada indivíduo dotado de consciência reflexiva, à questão ontológica fundamental. Através da existência, portanto, cada um de nós imprime sua marca histórica na Evolução do Universo.


[1]  Conjunto de todos os ecossistemas da Terra; biociclo, ecosfera. 
[2] Segunda lei da termodinâmica que explica o aumento da entropia (desordem) num sistema fechado.
[3]  Relativa à medida da quantidade de desordem dum sistema
[4] Ninguém melhor do que Drumond falou desta força criativa que foge dos limites da razão, mas está inscrita em ... “tudo que define o ser terrestre / ou se prolonga até nos animais / e chega às plantas para se embeber /  no sono rancoroso dos minérios, / dá volta ao mundo e torna a se engolfar /  na estranha ordem geométrica de tudo.” Em “A máquina do mundo.”
[5] Exercício da consciência livre e responsável.
[7] Referente ao “ser em si”.
[8] Tangenciando ao infinito sua realidade ontológica.
[9] Miguel de Unamuno  (29 de Setembro de 1864 – 31 de Dezembro de 1936) um poeta e filósofo espanhol.