Saber-se
finito implica numa preocupação permanente para o homem embora, por um mecanismo de defesa compreensível, a maior
parte do tempo esse conhecimento permaneça oculto pelo manto do esquecimento. O objetivo
é fugir da angústia existencial que acompanha a consciência da finitude. Este
texto pretende abordar a questão expondo-a objetivamente, sem dramaticidade, apontando
as alternativas existenciais inerentes à realidade da condição humana.
Para o ser consciente
reflexivo é insensata a pretensão de ficar indiferente à morte biológica como
fim definitivo; o homem não aceita, naturalmente, a própria destruição. Daí ser
o medo de morrer o maior dentre os temores que afligem o ser humano. Mas
precisamos aprender a lidar com este medo para conviver com ele sem perder o
gosto pela vida, ou cair em depressão. Torna-se, portanto, relevante a questão
de como o ser consciente reflexivo trabalhará a contradição entre o desejo de
viver e a certeza do fim inexorável. Estamos convencidos de que, baseado na objetividade puramente
fenomênica o homem jamais alcançará amenizar sua angústia existencial. O
racionalismo radical limita no agnóstico a elaboração resolutiva dos
sentimentos despertados pela consciência incômoda de ter vindo ao mundo sem pedir,
e dele ter de sair sem querer, todavia veremos que é possível pelo menos suavizar
o desconforto resultante, assumindo a dimensão espiritual do homem.
Desde as primeiras
manifestações na história da sua evolução o homem deixou indícios de comportamentos
que testemunham a crença na sobrevivência do seu “ser” mais íntimo à morte
biológica. A visão materialista da realidade pode arguir de
loucura a afirmação dessa transcendência. Porém, uma vez que não se pode negá-la
racionalmente[1],
é mais inteligente admitir a ideia da essência espiritual do homem. Por sua
imaterialidade o espírito não pode ser abordado cientificamente. A sua presença
só é acessível à experiência humana mediante um ato de fé, ou seja, a crença
numa realidade que não se pode provar objetivamente. Uma vez consumada, a fé na
dimensão espiritual do homem se opõe à vivência do espectro de uma resolução
pessimista do vir a ser humano. Isto não muda
a realidade temporal do ser consciente, mas
amplia as perspectivas existenciais. Esta postura é, no mínimo, mais salutar do que
descartar sem provas de sua inexistência um absoluto transcendental. Todavia o ato de fé exige certo
grau de ingenuidade; não exatamente a
espontânea que caracteriza a inocência infantil, mas sim aquela em que,
por opção,
o adulto reconhece o valor da imaginação
e da criatividade na solução dos problemas existenciais. Conferindo o status de
realidade a uma criação subjetiva, o ser consciente constrói um porto seguro
para suas incertezas. Lamentavelmente, muitos
nos negamos a bancar
esta ingenuidade adulta, aliás, nem tão ingênua assim, face ao suporte de
especulações metafísicas pertinentes[2]. Assim
como, embora a psicodinâmica da fé autêntica escape a uma análise racional, o
sentimento de plenitude existencial inerente à crença num Absoluto acolhedor
que resume toda perfeição demonstra ser real o objeto de fé implícito na
experiência mística. À falta da expectativa de realização existencial plena, muitos
de nós em algum momento somos assaltados por instantes depressivos que bloqueiam
a aspiração à completa felicidade. Todavia, a consciência e a responsabilidade definitórias
da condição humana nos exigem construir uma existência que valha a pena ser
vivida. Em verdade, para viver em plenitude é preciso
estar empolgado por uma paixão que enriqueça com um sentido construtivo nossa permanência
neste mundo efêmero. As paixões sensuais
que se sobrepõem à lucidez e à razão são auto limitadas e não têm repercussão
existencial duradoura. Elas têm um começo e um fim previsíveis, e sofrem o impacto
do envelhecimento. Mas não há limite de idade para as paixões espirituais que
buscam a perfeição nos valores essenciais. Estas são duradouras e sempre
renovadas. Impõe-se, portanto a necessidade de cultiva-las para não deixar que
se aprofunde com a idade um sentimento pobre de fim de festa. Afinal, a solução do problema humano não se
resolve num equacionamento racional,
filosófico, materialista, mas numa experiência mística
que envolve os dois
epicentros da parábola
existencial, a razão e a fé[3] fertilizadas
pela imaginação
criadora. Portanto não podemos descartar o objeto de fé simplesmente porque a
razão não o alcança, todavia, sendo a fé inadministrável não podemos por um
simples ato de vontade conferir realidade existencial a um artigo de fé tal como
o TU[4] absoluto indispensável à experiência mística. Daí
dizer-se que a fé é uma graça[5]; não
alcançaremos professá-la sem ajuda de imponderáveis que
não controlamos. Daí o valor inestimável
para o vir a ser existencial, da esperança de uma intervenção divina na
intimidade subjetiva do ser humano, que para os incrédulos demanda uma crença
ingênua inerente ao pensamento mágico. Contudo, a própria
razão denota ser tolo ficar na contramão
dos indícios implícitos
na realidade conhecida a que temos
acesso, que apontam para um absoluto inacessível
à razão[6]. Absoluto
criador que o orgulho
racional recusa aceitar
no âmbito estreito
do agnosticismo empírico, postura
negativa que não traz vantagem para a paz interior do homem. De uma forma ou de
outra é preciso caminhar ao encontro da
velhice e da morte, com
ou sem
fé, mas com
dignidade (por
auto respeito).
Estava eu para encerrar
estes comentários
quando me
caiu nas mãos um
opúsculo intitulado Meditação Cristã, contendo três conferências
sobre a meditação
contemplativa, na linha oriental,
e um posfácio
acerca de Dom
John Main[7], autor das Conferências.
A leitura deste pequeno
livro remeteu-me à experiência
mística sugerida anteriormente neste
texto como evento
inadministrável, agora com uma ressalva, a de podermos nos tornar suscetíveis
à sua emergência
mediante uma meditação contemplativa (oração). Neste opúsculo encontrei ideias, exemplos,
testemunhos que proporcionam elementos para um vislumbre
das possibilidades imensas que se
escondem na subjetividade humana, lá onde se misturam pensamentos lógicos,
sentimentos, intuições e desejos. Adverti-me de que
se nos dispusermos a explorar
essas possibilidades descobriremos recursos psíquico-afetivos insuspeitos. A experiência oriental milenar demonstra
que a simplicidade da recitação de um mantra (prática
da oração contemplativa) abre uma brecha na não administrabilidade do enlevo místico. Na
meditação profunda se dá uma experiência subjetiva na qual
o sentido do sagrado
que perpassa o cosmo é percebido como vivência convincente do que
não se pode verbalizar.
Não se trata
de entendê-lo ou explica-lo, mas de vivê-lo
numa intuição da harmonia que se esconde
nas contradições inerentes à percepção da realidade fenomênica
tal como ela se nos apresenta cientificamente. Neste plano
está próximo da compreensão
da realidade última aquele que reconhece humildemente a própria ignorância diante
dos mistérios do Universo e da vida. Entretanto,
mais perto
ainda da verdade
suprema estará quem
for capaz de ultrapassar
a barreira da lógica
racional à compreensão das contradições
da existência, intuindo a unidade de
tudo numa vivência marcada pela fé.
É equivocada a ideia de
ser a obediência a preceitos éticos o caminho de ouro da
perfectibilidade humana; esta obediência jamais levará às primícias de uma
experiência de integração na unidade do absoluto transcendental no qual se
realiza a plenitude existencial. Para ser transformante, a relação
das criaturas com seu criador deverá ser
ontológica e não
ética. É na vida (ação, dinamismo) que
as coisas acontecem pra valer, e não no cultivo
de paradigmas teóricos assumidos
intelectualmente como propostas éticas. O “Seja feita
a Tua vontade” do Mestre dos mestres em hora de muito sofrimento não se concretiza na obediência a preceitos, mas no mergulho confiante, gratuito, na perfeição
a que aspira o homem. A assimilação
pacífica do absurdo racional (pela fé) abre espaço para a experiência
mística na qual se completa a realização existencial. Historicamente é notória
a aposta de Pascal no absurdo lógico de um Absoluto transcendental. Mediante
esta opção salva-se a integridade
existencial.
A vocação
da humanidade é manifestar através
de um servomecanismo altamente complexo (Sistema Nervoso Central) lavrado
na matéria viva
a dimensão transcendental cifrada no Universo. Nesta manifestação a paixão dos
sentidos se volatiliza, transmutando-se num arrebatamento espiritual que
projeta o “si mesmo”[8] para
além da dimensão espaço temporal, desfazendo a distinção entre a consciência e
o mundo.
Everaldo Lopes.
[1]
Do ponto de vista estritamente racional é impossível afirmar ou negar com
certeza a existência de um absoluto transcendental.
[2]
Vide neste blog os textos intitulados “Devaneios especulativos”.
[3]
“E um dia, oceano em calma, a humanidade inteira há de fazer, numa só aspiração
reunida, da razão e da fé os dois olhos da alma, da verdade e da crença os dois
polos do mundo.”(Guerra Junqueiro)
[4]
Um Alter Ego transcendental (Deus).
[5] dom que Deus concede aos
homens e que os torna capazes de alcançar a salvação
[6]
Afinal, como explicar a origem do cosmo uma vez que ele não se explica por si mesmo, nem a ordem universal sugestiva das leis
que comandam o infinitamente
grande, o infinitamente
pequeno e o infinitamente
complexo?
[7]
Monge beneditino Irlandês nascido em Londres (1926 a 1982).
[8]
Self, o núcleo pessoal de cada um.