domingo, 17 de novembro de 2013

Introspecção reveladora



Saber-se finito implica numa preocupação permanente para o homem embora, por  um mecanismo de defesa compreensível, a maior parte do tempo esse conhecimento permaneça  oculto pelo manto do esquecimento. O objetivo é fugir da angústia existencial que acompanha a consciência da finitude. Este texto pretende abordar a questão expondo-a objetivamente, sem dramaticidade, apontando as alternativas existenciais inerentes à realidade da condição humana.
Para o ser consciente reflexivo é insensata a pretensão de ficar indiferente à morte biológica como fim definitivo; o homem não aceita, naturalmente, a própria destruição. Daí ser o medo de morrer o maior dentre os temores que afligem o ser humano. Mas precisamos aprender a lidar com este medo para conviver com ele sem perder o gosto pela vida, ou cair em depressão. Torna-se, portanto, relevante a questão de como o ser consciente reflexivo trabalhará a contradição entre o desejo de viver e a certeza do fim inexorável. Estamos convencidos de que, baseado na objetividade puramente fenomênica o homem jamais alcançará amenizar sua angústia existencial. O racionalismo radical limita no agnóstico a elaboração resolutiva dos sentimentos despertados pela consciência incômoda de ter vindo ao mundo sem pedir, e dele ter de sair sem querer, todavia veremos que é possível pelo menos suavizar o desconforto resultante, assumindo a dimensão espiritual do homem.
Desde as primeiras manifestações na história da sua evolução o homem deixou indícios de comportamentos que testemunham a crença na sobrevivência do seu “ser” mais íntimo à morte biológica.   A visão materialista da realidade pode arguir de loucura a afirmação dessa transcendência. Porém, uma vez que não se pode negá-la racionalmente[1], é mais inteligente admitir a ideia da essência espiritual do homem. Por sua imaterialidade o espírito não pode ser abordado cientificamente. A sua presença só é acessível à experiência humana mediante um ato de fé, ou seja, a crença numa realidade que não se pode provar objetivamente. Uma vez consumada, a fé na dimensão espiritual do homem se opõe à vivência do espectro de uma resolução pessimista do vir a ser humano. Isto não muda a realidade temporal do ser consciente, mas amplia as perspectivas existenciais. Esta postura é, no mínimo, mais salutar do que descartar sem provas de sua inexistência um absoluto transcendental. Todavia o ato de fé exige certo grau de ingenuidade; não exatamente a espontânea que caracteriza a inocência infantil, mas sim aquela em que, por opção, o adulto reconhece o valor da imaginação e da criatividade na solução dos problemas existenciais. Conferindo o status de realidade a uma criação subjetiva, o ser consciente constrói um porto seguro para suas incertezas. Lamentavelmente, muitos nos negamos a bancar esta ingenuidade adulta, aliás, nem tão ingênua assim, face ao suporte de especulações metafísicas pertinentes[2]. Assim como, embora a psicodinâmica da fé autêntica escape a uma análise racional, o sentimento de plenitude existencial inerente à crença num Absoluto acolhedor que resume toda perfeição demonstra ser real o objeto de fé implícito na experiência mística. À falta da expectativa de realização existencial plena, muitos de nós em algum momento somos assaltados por instantes depressivos que bloqueiam a aspiração à completa felicidade. Todavia, a consciência e a responsabilidade definitórias da condição humana nos exigem construir uma existência que valha a pena ser vivida. Em verdade, para viver em plenitude é preciso estar empolgado por uma paixão que enriqueça com um sentido construtivo nossa permanência neste mundo efêmero. As paixões sensuais que se sobrepõem à lucidez e à razão são auto limitadas e não têm repercussão existencial duradoura. Elas têm um começo e um fim previsíveis, e sofrem o impacto do envelhecimento. Mas não há limite de idade para as paixões espirituais que buscam a perfeição nos valores essenciais. Estas são duradouras e sempre renovadas. Impõe-se, portanto a necessidade de cultiva-las para não deixar que se aprofunde com a idade um sentimento pobre de fim de festa. Afinal, a solução do problema humano não se resolve num equacionamento racional, filosófico, materialista, mas numa experiência mística que envolve os dois epicentros da parábola existencial, a razão e a fé[3] fertilizadas pela imaginação criadora. Portanto não podemos descartar o objeto de fé simplesmente porque a razão não o alcança, todavia, sendo a fé inadministrável não podemos por um simples ato de vontade conferir realidade existencial a um artigo de fé tal como o TU[4]  absoluto indispensável à experiência mística. Daí dizer-se que a fé é uma graça[5]; não alcançaremos professá-la sem ajuda de imponderáveis que não controlamos. Daí o valor inestimável para o vir a ser existencial, da esperança de uma intervenção divina na intimidade subjetiva do ser humano, que para os incrédulos demanda uma crença ingênua inerente ao pensamento mágico. Contudo, a própria razão denota ser tolo ficar na contramão dos indícios implícitos na realidade conhecida a que temos acesso, que apontam para um absoluto inacessível à razão[6]. Absoluto criador que o orgulho racional recusa aceitar no âmbito estreito do agnosticismo empírico, postura negativa que não traz vantagem para a paz interior do homem. De uma forma ou de outra é preciso caminhar ao encontro da velhice e da morte, com ou sem fé, mas com dignidade (por auto respeito).
Estava eu para encerrar estes comentários quando me caiu nas mãos um opúsculo intitulado Meditação Cristã, contendo três conferências sobre a meditação contemplativa, na linha oriental, e um posfácio acerca de Dom John Main[7], autor das Conferências. A leitura deste pequeno livro remeteu-me à experiência mística sugerida anteriormente neste texto como evento inadministrável, agora com uma ressalva, a de podermos nos tornar suscetíveis à sua emergência mediante uma meditação contemplativa (oração).  Neste opúsculo encontrei ideias, exemplos, testemunhos que proporcionam elementos para um vislumbre das possibilidades imensas que se escondem na subjetividade humana, lá onde se misturam pensamentos lógicos, sentimentos, intuições e desejos. Adverti-me de que se nos dispusermos a explorar essas possibilidades descobriremos recursos psíquico-afetivos insuspeitos. A experiência oriental milenar demonstra que a simplicidade da recitação de um mantra (prática da oração contemplativa) abre uma brecha na não administrabilidade do enlevo místico. Na meditação profunda se dá uma experiência subjetiva na qual o sentido do sagrado que perpassa o cosmo é percebido como vivência convincente do que não se pode verbalizar. Não se trata de entendê-lo ou explica-lo, mas de vivê-lo numa intuição da harmonia que se esconde nas contradições inerentes à percepção da realidade fenomênica tal como ela se nos apresenta cientificamente.  Neste plano está próximo da compreensão da realidade última aquele que reconhece humildemente a própria ignorância diante dos mistérios do Universo e da vida. Entretanto, mais perto ainda da verdade suprema estará quem for capaz de ultrapassar a barreira da lógica racional à compreensão das contradições da existência, intuindo a unidade de tudo numa vivência marcada pela fé.
É equivocada a ideia de ser a obediência a preceitos éticos o caminho de ouro da perfectibilidade humana; esta obediência jamais levará às primícias de uma experiência de integração na unidade do absoluto transcendental no qual se realiza a plenitude existencial. Para ser transformante, a relação das criaturas com seu criador deverá ser ontológica e não ética. É na vida (ação, dinamismo) que as coisas acontecem pra valer, e não no cultivo de paradigmas teóricos assumidos intelectualmente como propostas éticas. O “Seja feita a Tua vontade” do Mestre dos mestres em hora de muito sofrimento não se concretiza na obediência a preceitos, mas no mergulho confiante, gratuito, na perfeição a que aspira o homem. A assimilação pacífica do absurdo racional (pela fé) abre espaço para a experiência mística na qual se completa a realização existencial. Historicamente é notória a aposta de Pascal no absurdo lógico de um Absoluto transcendental. Mediante esta opção salva-se a integridade existencial.
A vocação da humanidade é manifestar através de um servomecanismo altamente complexo (Sistema Nervoso Central) lavrado na matéria viva a dimensão transcendental cifrada no Universo. Nesta manifestação a paixão dos sentidos se volatiliza, transmutando-se num arrebatamento espiritual que projeta o “si mesmo”[8] para além da dimensão espaço temporal, desfazendo a distinção entre a consciência e o mundo.

 Everaldo Lopes.


[1] Do ponto de vista estritamente racional é impossível afirmar ou negar com certeza a existência de um absoluto transcendental.
[2] Vide neste blog os textos intitulados “Devaneios especulativos”.
[3] “E um dia, oceano em calma, a humanidade inteira há de fazer, numa só aspiração reunida, da razão e da fé os dois olhos da alma, da verdade e da crença os dois polos do mundo.”(Guerra Junqueiro)
[4] Um Alter Ego transcendental (Deus).
[5] dom que Deus concede aos homens e que os torna capazes de alcançar a salvação

[6] Afinal, como explicar a origem do cosmo uma vez que ele não se  explica por si mesmo, nem a ordem universal sugestiva das leis que comandam o infinitamente grande, o infinitamente pequeno e o infinitamente complexo?
[7] Monge beneditino Irlandês nascido em Londres (1926 a 1982).
[8] Self, o núcleo pessoal de cada um.