Nos dois textos antecedentes discorremos sobre a frustração do ideal democrático
e a cidadania ameaçada. Em ambos evidenciam-se comportamentos pessoais e
institucionais que deformam o exercício da democracia. Mas o elemento dinâmico desta
deformação é sempre o indivíduo, mediante atitudes e ações prejudiciais à
convivência social harmoniosa e respeitosa. É inquestionável que a sabedoria
das escolhas individuais depende do nível de coerência de cada um ao
operacionalizar a razão, a afetividade e a vontade à luz da consciência reflexiva e dos valores éticos inspirados
na Verdade e na Justiça. Essa performance pessoal espelha o exercício virtuoso dos
atributos da condição humana[1]
no convívio social. A integridade moral dos cidadãos é que assegura o caráter ético dos
desdobramentos econômicos e políticos das relações sociais.
Idealmente, a construção da comunidade humana fundamenta-se no envolvimento
interpessoal centrado no respeito mútuo, solidário, entre todos os homens. Essa
unanimidade não é a norma, porém em virtude da perfectibilidade humana a solidariedade
vai se difundindo mediante o apelo do princípio ético universal implícito no
exercício responsável da consciência reflexiva.
A democracia é a doutrina política mais compatível com a realização
plena da comunidade humana. A prática democrática torna possível a convivência harmoniosa
livre e solidária de todos os cidadãos, respeitada a facticidade[2]
de cada um. Essas considerações levam
naturalmente à conclusão de que a prática política democrática exige do candidato à função
pública o compromisso de respeitar a Verdade e a Justiça ao exercer o poder que
lhe é conferido pelo povo. E a credibilidade do candidato é delimitada pela
autenticidade e competência de sua proposta de crescimento econômico compatível
com o desenvolvimento humano. Lamentavelmente a profissionalização do político e o fisiologismo partidário deturpam a
prática do ideal democrático, envergonhando o eleitor e desdenhando da sua capacidade
crítica.
É fundamental para a construção de uma democracia participativa a harmonia
interior dos cidadãos na prática solidária do respeito ao outro que por sua vez
é consequência do autorrespeito dos indivíduos interagentes. Esse fundamento
depende mais do esforço pessoal na elaboração de comportamentos fiéis aos
valores éticos universais do que da
forma oficial de governo. São as pessoas que assumem a doutrina política, e não o contrário. Numa democracia o
estado de direito assegura a disciplina das manifestações individuais e oferece
condições para o comportamento solidário. Mas é pela conduta livre exemplar dos
indivíduos que se constrói uma verdadeira democracia.
É oportuno lembrar que a crítica aos comportamentos individualistas
ambiciosos que distorcem as relações sociais, econômicas e políticas não sinaliza
necessariamente a má fé dos infratores, mas tão pouco a excluí. Em sendo estes comportamentos o resultado de um condicionamento
desenvolvido desde a mais tenra idade, a conduta individualista ambiciosa se
instala muito antes de o indivíduo ser capaz de decidir livre e criteriosamente
pelo comportamento ético solidário. Depois
de sedimentada, essa distorção comportamental ganha vida própria e passa a
dominar mental e emocionalmente os indivíduos nas suas relações sociais. Daí a
dificuldade de uma mudança de conduta que contrarie a orientação cultural
vigente. Impõe-se então a sensibilização
das pessoas a novos valores, associada à determinação de cada uma no sentido da
assimilação de uma ordem social e econômica
mais justa e solidária. Essa superação implica numa profunda transformação da maneira
de entender o papel da consciência no mundo, que resulta na valorização do
“ser” em vez do “ter”.
Uma análise objetiva, desapaixonada, revela que o indivíduo envolvido na
distorção capitalista (valorização do ter) alimenta a crença de que o
comportamento alternativo da conduta exclusivista vigente representa um risco
para a sociedade organizada. Bloqueado por esta crença infundada, para o homem
comum influenciado pela cultura capitalista a solidariedade extensiva a todos
os homens é incompatível com uma realidade social e econômica sustentável; e no
âmbito dessa visão estreita do problema humano social, na prática, as ações
solidárias assumem o caráter de uma esmola, sem repercussão estrutural na
sociedade. Aí emperra o processo evolutivo. Só a partir de uma verdadeira libertação
da conduta individualista ambiciosa é possível construir o comportamento
democrático autêntico, solidário, mediante o exercício livre e responsável da
consciência reflexiva. Quanto mais estruturados são os condicionamentos geradores
do comportamento exclusivista maior é o obstáculo
oposto à substituição da “competição selvagem” e do “acúmulo de bens materiais”,
respectivamente, pela “cooperação” e pela “partilha”. Todavia, liberto do condicionamento ambicioso o
individuo será capaz de exercer coerentemente os atributos da condição humana capacitando-se a fazer escolhas
e tomar decisões livres, corretas, compatíveis com o comportamento comunitário.
É necessário apostar na capacidade de o homem
libertar-se da inclinação congênita e dos condicionamentos culturais
individualistas ambiciosos. De outro modo fica comprometida a sobrevivência da espécie humana. Dito assim essa
afirmação parece despropositada, mas ela encontra apoio numa análise profunda
da realidade evolutiva do homem.
Concluindo, é evidente a importância da
congruência pessoal no desenvolvimento da Democracia plena. Ao mesmo tempo sabemos
todos que as mudanças interiores necessárias para o exercício coerente da
condição humana não se impõem pela força, mas pelo convencimento. A História dá
testemunho do fracasso das tentativas violentas de mudança do paradigma
comportamental que se nutre da ambição humana e fomenta a exploração econômica no
seio da sociedade. A revolução que redime o homem do equívoco individualista
ambicioso se dá no íntimo de cada um e é indispensável na realização do ideal
comunitário, esperança de salvação da humanidade. Em verdade, estamos todos no
mesmo barco; ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém. Para alcançar o
ideal comunitário a prática democrática conta com a liberdade individual e a
determinação de respeitar os limites da cidadania comum a todos os homens, o
que pressupõe a congruência pessoal inerente ao exercício responsável da
consciência reflexiva. Everaldo Lopes