domingo, 29 de junho de 2014

Congruência pessoal e comportamento democrático

Nos dois textos antecedentes discorremos sobre a frustração do ideal democrático e a cidadania ameaçada. Em ambos evidenciam-se comportamentos pessoais e institucionais que deformam o exercício da democracia. Mas o elemento dinâmico desta deformação é sempre o indivíduo, mediante atitudes e ações prejudiciais à convivência social harmoniosa e respeitosa. É inquestionável que a sabedoria das escolhas individuais depende do nível de coerência de cada um ao operacionalizar a razão, a afetividade e a vontade à luz  da consciência reflexiva e dos valores éticos inspirados na Verdade e na Justiça. Essa performance pessoal espelha o exercício virtuoso dos atributos da condição humana[1] no convívio social. A integridade moral dos  cidadãos é que assegura o caráter ético dos desdobramentos econômicos e políticos das  relações sociais.
Idealmente, a construção da comunidade humana fundamenta-se no envolvimento interpessoal centrado no respeito mútuo, solidário, entre todos os homens. Essa unanimidade não é a norma, porém em virtude da perfectibilidade humana a solidariedade vai se difundindo mediante o apelo do princípio ético universal implícito no exercício responsável da consciência reflexiva.  
A democracia é a doutrina política mais compatível com a realização plena da comunidade humana. A prática democrática torna possível a convivência harmoniosa livre e solidária de todos os cidadãos, respeitada a facticidade[2] de cada um. Essas considerações levam naturalmente à conclusão de que a prática  política democrática exige do candidato à função pública o compromisso de respeitar a Verdade e a Justiça ao exercer o poder que lhe é conferido pelo povo. E a credibilidade do candidato é delimitada pela autenticidade e competência de sua proposta de crescimento econômico compatível com o desenvolvimento humano. Lamentavelmente a profissionalização do político  e o fisiologismo partidário deturpam a prática do ideal democrático, envergonhando o eleitor e desdenhando da sua capacidade crítica.
É fundamental para a construção de uma democracia participativa a harmonia interior dos cidadãos na prática solidária do respeito ao outro que por sua vez é consequência do autorrespeito dos indivíduos interagentes. Esse fundamento depende mais do esforço pessoal na elaboração de comportamentos fiéis aos valores éticos universais  do que da forma oficial de governo. São as pessoas que assumem a doutrina  política, e não o contrário. Numa democracia o estado de direito assegura a disciplina das manifestações individuais e oferece condições para o comportamento solidário. Mas é pela conduta livre exemplar dos indivíduos que se constrói uma verdadeira democracia.
É oportuno lembrar que a crítica aos comportamentos individualistas ambiciosos que distorcem as relações sociais, econômicas e políticas não sinaliza necessariamente a má fé dos infratores, mas tão pouco a excluí. Em sendo estes  comportamentos o resultado de um condicionamento desenvolvido desde a mais tenra idade, a conduta individualista ambiciosa se instala muito antes de o indivíduo ser capaz de decidir livre e criteriosamente pelo comportamento ético solidário.  Depois de sedimentada, essa distorção comportamental ganha vida própria e passa a dominar mental e emocionalmente os indivíduos nas suas relações sociais. Daí a dificuldade de uma mudança de conduta que contrarie a orientação cultural vigente. Impõe-se  então a sensibilização das pessoas a novos valores, associada à determinação de cada uma no sentido da assimilação de uma ordem social e  econômica mais justa e solidária. Essa superação implica numa profunda transformação da maneira de entender o papel da consciência no mundo, que resulta na valorização do “ser” em vez do “ter”.   
Uma análise objetiva, desapaixonada, revela que o indivíduo envolvido na distorção capitalista (valorização do ter) alimenta a crença de que o comportamento alternativo da conduta exclusivista vigente representa um risco para a sociedade organizada. Bloqueado por esta crença infundada, para o homem comum influenciado pela cultura capitalista a solidariedade extensiva a todos os homens é incompatível com uma realidade social e econômica sustentável; e no âmbito dessa visão estreita do problema humano social, na prática, as ações solidárias assumem o caráter de uma esmola, sem repercussão estrutural na sociedade. Aí emperra o processo evolutivo. Só a partir de uma verdadeira libertação da conduta individualista ambiciosa é possível construir o comportamento democrático autêntico, solidário, mediante o exercício livre e responsável da consciência reflexiva. Quanto mais estruturados são os condicionamentos geradores do comportamento exclusivista  maior é o obstáculo oposto à substituição da “competição selvagem” e do “acúmulo de bens materiais”, respectivamente, pela “cooperação” e pela “partilha”.  Todavia, liberto do condicionamento ambicioso o individuo será capaz de exercer coerentemente os atributos da condição  humana capacitando-se a fazer escolhas e tomar decisões livres, corretas, compatíveis com o comportamento comunitário.  É necessário apostar na capacidade de o homem libertar-se da inclinação congênita e dos condicionamentos culturais individualistas ambiciosos. De outro modo fica comprometida a sobrevivência da espécie humana. Dito assim essa afirmação parece despropositada, mas ela encontra apoio numa análise profunda da realidade evolutiva do homem.
Concluindo, é evidente a importância da congruência pessoal no desenvolvimento da Democracia plena. Ao mesmo tempo sabemos todos que as mudanças interiores necessárias para o exercício coerente da condição humana não se impõem pela força, mas pelo convencimento. A História dá testemunho do fracasso das tentativas violentas de mudança do paradigma comportamental que se nutre da ambição humana e fomenta a exploração econômica no seio da sociedade. A revolução que redime o homem do equívoco individualista ambicioso se dá no íntimo de cada um e é indispensável na realização do ideal comunitário, esperança de salvação da humanidade. Em verdade, estamos todos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém. Para alcançar o ideal comunitário a prática democrática conta com a liberdade individual e a determinação de respeitar os limites da cidadania comum a todos os homens, o que pressupõe a congruência pessoal inerente ao exercício responsável da consciência reflexiva.    Everaldo Lopes           


[1] Capacidade de exercitar consciente e responsavelmente a razão, a afetividade e a vontade.
[2] Facticidade- Caráter próprio da condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já comprometido com uma situação não escolhida.