terça-feira, 2 de outubro de 2012

A existência, a esperança e a fé



A razão e o bom senso advertem-nos: a esperança e a fé são virtudes essenciais à plenitude existencial. Todos possuímos a capacidade de crer, como uma inclinação que se manifesta espontaneamente no nosso quotidiano. Assim, não costumamos questionar: o despertar do sono em que mergulhamos durante a noite, o nascer do Sol no dia seguinte, a possibilidade de um cataclismo nas próximas horas, e até alimentamos a expectativa de um acontecimento muito desejado, mas estatisticamente improvável. Atitudes como estas envolvem necessariamente esperança e fé. Ora, se já existe a predisposição para acreditar no que não vemos e até no improvável, bastará robustecê-la, direcionando-a, e reforçando-a com especulações lógicas dosadas pelo bom senso para deixar-me empolgar, mediante um ato de fé, pela transcendência absoluta.  A tendência para crer no sobrenatural está presente, originariamente, nas manifestações religiosas que refletem o culto a um poder eterno e misterioso, criador e surpreendentemente sensível às súplicas humanas. A dinâmica psicológica deste investimento subjetivo fica facilitada pela consciência ingênua da realidade, que se prolonga na fé incondicional em um Poder Absoluto. Com a maturidade intelectual, sob o olhar da consciência crítica, a crença até então ingênua recebe o apoio de lucubrações que conduzem à conclusão da necessidade lógica de um Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo para justificar a própria realidade que vivemos. Embora sendo este Absoluto um absurdo conceitual[1], encontra justificativas convincentes[2] na coerência de uma especulação filosófica sobre a origem do cosmo e da vida. Para testemunhar a universalidade do apelo transcendental inerente à psique humana, peço atenção para duas manifestações culturais emblemáticas. Uma representada pela intuição poética do compositor popular; e outra consistente na abstração logicamente coerente do Filósofo. A atitude mística está por trás de ambas, insinuada, respectivamente, na mensagem da letra de um samba que trata com sabedoria as vicissitudes da “existência”; e na meditação filosófica que dá suporte intelectual à ideia de uma ordem universal dentro da qual estamos contextualizados. Tanto num caso como no outro está implícito o reconhecimento de um “absoluto criativo”, conceito metafísico do incognoscível que paira sobre a realidade percebida pelos sentidos, o mistério de como tudo começou. Ora, diante deste absoluto, a única resposta inteligente do ser consciente é uma atitude de entrega confiante. Diz o sambista: “Deixa a vida me lavar, vida leva eu; deixa a vida me levar, vida leva eu... sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu”[3]. Nestes versos se inscreve o abandono consciente a uma ordem superior implícita na fé em uma transcendência que transparece na intuição criativa do compositor. Por outro lado na conclusão especulativa, filosófica, que “vivemos no melhor dos mundos possíveis”[4] está embutido o reconhecimento intelectual da perfeição da ordem universal, compatível com a noção da Totalidade absoluta necessariamente perfeita, na qual se equilibram a Verdade, a Justiça e a Misericórdia[5].  O Sambista e o Filósofo afirmam tacitamente um Criador, e assumem a postura de entrega que lhes cabe como criaturas. O primeiro deixando-se conduzir docilmente pela vontade de Deus, o segundo, confiante nas lucubrações que o levam a admitir que ao fim de tudo prevaleça a ordem original, transcendental, dentro da qual nos situamos evolutivamente, embora não alcancemos compreender os meandros dessa evolução. Nestas perspectivas, o cosmo e a consciência se integram numa realidade única misteriosa na qual a contingência, e a transcendência absoluta se confundem numa unidade que permanece incompreensível para a razão temporal, e só é acessível através da fé. Os exemplos supracitados são testemunhos que desafiam a indiferença dos ímpios e agnósticos. Em verdade, suspensa a barreira da ortodoxia agnóstica, racionalista e intolerante abre-se o espaço subjetivo para a vivência de fé numa transcendência impossível de ser compreendida racionalmente, mas que atende à expectativa do ser consciente por uma experiência de completude inexcedível.
A dinâmica da esperança e da fé é como se fora um prolongamento das forças instintivas de sobrevivência que ecoam nas interações psíquicas profundas para modular a vivência da crença numa realidade que extrapola a pura imanência do vir a ser consciente. E para ser coerente com sua própria realidade, o homem se curva intuitivamente à esperança e à fé, admitindo uma transcendência absoluta indefinível objetivamente, sem diminuir a majestade da razão temporal, justificando a genuflexão de sábios e cientistas ante o mistério no qual imergem a consciência e o mundo. Nesta perspectiva de fé o homem se liberta da prisão imposta pela vivência de finitude, e rompe a barreira espaço temporal, debruçando-se sobre a eternidade, para deixar-se envolver no infinito das possibilidades. Tudo isso faz parte do modo peculiar de o homem existir. E que remanso de paz e segurança surpreendê-lo-á quando, ao largo da turbulência de fantasias pessimistas, vislumbrar a possibilidade eleita de uma experiência única de completude, além dos limites do tempo e do espaço.
Auscultando a natureza incompleta do seu ego finito, o pensador que aspira a realizar uma experiência pessoal inexcedível dá-se conta da ilusão de segurança e sustentabilidade que o seduzem no enlevo de fantasias imediatistas de poder e sensualidade. Percebe, então, no mais íntimo de si mesmo a nostalgia de um Tu absoluto, com o qual realizará afinal sua experiência suprema de “ser”, numa relação profunda com o absoluto indondável. No curso da “existência” o homem pode negar-se a render-se a esta Transcendência absoluta, mas com isto exclui a possibilidade de uma experiência mística que se apresenta como a única solução cabal para o problema existencial no  vir a ser consciente, finito, mas sedento de eternidade. A postura de entrega mística, obviamente, não recebe a chancela das Ciências exatas, mas estas não oferecem uma alternativa satisfatória à necessidade de transcender peculiar do homem. A intuição de um Alter Ego é concebida como o prolongamento de uma vivência crítica do próprio self[6] onde se processa a integração da transcendência absoluta e da imanência, na experiência do “ser consciente”. Mas esta incorporação permanece misteriosa - Deus “cifrado”[7] no Universo - realidade que escapa ao exame fenomenológico. Todavia, pode-se postular logicamente, que nem por um instante o “dinamismo absoluto eternamente criativo” subtrai-se das suas criaturas porque estas não têm o poder de subsistir por si mesmas; desligadas d´Ele deixariam de existir. Assim o Absoluto criador está universalmente presente (a transcendência na imanência, eis o mistério!), na menor partícula de matéria, e no homem, mas só este é capaz de reconhecer Sua presença, através das funções psíquicas superiores lideradas pela consciência reflexiva.
 Lendo suas próprias respostas nas relações consciência – mundo[8], o homem se define culturalmente assumindo comportamentos diferentes, que deverão ser responsáveis, de acordo com sua leitura da realidade. Nesta leitura, a Hipocondria e a Obsessão se constituem em interpretações patologicamente magnificadas da finitude e dos riscos inerentes ao vir a ser existencial incerto, modulando as respostas atípicas suscitadas pelas ameaças implícitas no vir a ser existencial. Quando a estrutura psicológica não suporta sequer reconhecer a realidade hostil, sobrevém a crise histérica que pretende negar o real insuportável. A própria análise existencial pode explicar a origem destas patologias, sem apelar, preliminarmente, para uma etiopatogenia orgânica complexa. Este conhecimento justifica a abordagem filosófica dos comportamentos humanos como recurso hábil para explicar a hipocondria, a obsessão e a histeria.
No processo psíquico implícito no curso da “individuação”, a  esperança e a fé subjazem à unificação das forças da Natureza com uma dimensão transcendental. Mas estas virtudes devem ser corretamente direcionadas para fomentar comportamentos criativos que preencham o vazio ontológico sobre o qual se edificará a existência. O exame crítico da existência será, pois, um auxiliar valioso da Psicanálise. É a isto que se propõe o Aconselhamento Filosófico.   
Everaldo Lopes


[1] Algo que escapa a regras ou a condições determinadas.
[2] Vide os  textos neste blog intitulados “Devaneio especulativo I, II, III”, e “Construindo uma visão de mundo”.
[3] Zeca Pagodinho – Compositor de música popular.
[4] Conclusão de Gottfried Wilhelm Von Leibeniz (1646 -1716)– Filósofo.
[5] Realidade assimilável a um Deus de amor.
[6]Sentimento difuso da unidade da personalidade (suas atitudes e predisposições de comportamento).Indivíduo, tal como se revela e se conhece, representado em sua própria consciência
[7] Conceito implícito na Filosofia existencial de Karl Jaspers(1883 – 1969).
[8] Vide texto anterior