A
razão e o bom senso advertem-nos: a esperança e a fé são virtudes essenciais à
plenitude existencial. Todos possuímos a capacidade de crer, como uma
inclinação que se manifesta espontaneamente no nosso quotidiano. Assim, não costumamos
questionar: o despertar do sono em que mergulhamos durante a noite, o nascer do
Sol no dia seguinte, a possibilidade de um cataclismo nas próximas horas, e
até alimentamos a expectativa de um acontecimento muito desejado, mas estatisticamente
improvável. Atitudes como estas envolvem necessariamente esperança e fé. Ora, se
já existe a predisposição para acreditar no que não vemos e até no improvável, bastará
robustecê-la, direcionando-a, e reforçando-a com especulações lógicas dosadas
pelo bom senso para deixar-me empolgar, mediante um ato de fé, pela transcendência absoluta. A tendência para crer no sobrenatural está
presente, originariamente, nas manifestações religiosas que refletem o culto a
um poder eterno e misterioso, criador e surpreendentemente sensível às súplicas
humanas. A dinâmica psicológica deste investimento subjetivo fica facilitada
pela consciência ingênua da realidade, que se prolonga na fé incondicional em
um Poder Absoluto. Com a maturidade intelectual, sob o olhar da consciência
crítica, a crença até então ingênua recebe o apoio de lucubrações que conduzem
à conclusão da necessidade lógica de um Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo
para justificar a própria realidade que vivemos. Embora sendo este Absoluto um absurdo
conceitual[1],
encontra justificativas convincentes[2] na
coerência de uma especulação filosófica sobre a origem do cosmo e da vida. Para
testemunhar a universalidade do apelo transcendental inerente à psique humana,
peço atenção para duas manifestações culturais emblemáticas. Uma representada pela
intuição poética do compositor popular; e outra consistente na abstração logicamente
coerente do Filósofo. A atitude mística está por trás de ambas, insinuada, respectivamente,
na mensagem da letra de um samba que trata com sabedoria as vicissitudes da “existência”;
e na meditação filosófica que dá suporte intelectual à ideia de uma ordem
universal dentro da qual estamos contextualizados. Tanto num caso como no outro
está implícito o reconhecimento de um “absoluto criativo”, conceito metafísico do
incognoscível que paira sobre a realidade percebida pelos sentidos, o mistério
de como tudo começou. Ora, diante deste absoluto, a única resposta inteligente do
ser consciente é uma atitude de entrega confiante. Diz o sambista: “Deixa a
vida me lavar, vida leva eu; deixa a vida me levar, vida leva eu... sou feliz e
agradeço por tudo que Deus me deu”[3]. Nestes
versos se inscreve o abandono consciente a uma ordem superior implícita na fé em
uma transcendência que transparece na intuição criativa do compositor. Por
outro lado na conclusão especulativa, filosófica, que “vivemos no melhor dos
mundos possíveis”[4] está embutido o
reconhecimento intelectual da perfeição da ordem universal, compatível com a
noção da Totalidade absoluta necessariamente perfeita, na qual se equilibram a
Verdade, a Justiça e a Misericórdia[5]. O Sambista e o Filósofo afirmam tacitamente
um Criador, e assumem a postura de entrega que lhes cabe como criaturas. O
primeiro deixando-se conduzir docilmente pela vontade de Deus, o segundo,
confiante nas lucubrações que o levam a admitir que ao fim de tudo prevaleça a
ordem original, transcendental, dentro da qual nos situamos evolutivamente, embora não alcancemos compreender os meandros dessa evolução. Nestas
perspectivas, o cosmo e a consciência se integram numa realidade única
misteriosa na qual a contingência, e a transcendência absoluta se confundem
numa unidade que permanece incompreensível para a razão temporal, e só é acessível através
da fé. Os exemplos supracitados são testemunhos que desafiam a indiferença dos
ímpios e agnósticos. Em verdade, suspensa a barreira da ortodoxia agnóstica,
racionalista e intolerante abre-se o espaço subjetivo para a vivência de fé
numa transcendência impossível de ser compreendida racionalmente, mas que
atende à expectativa do ser consciente por uma experiência de completude
inexcedível.
A
dinâmica da esperança e da fé é como se fora um prolongamento das forças
instintivas de sobrevivência que ecoam nas interações psíquicas profundas para
modular a vivência da crença numa realidade que extrapola a pura imanência do
vir a ser consciente. E para ser coerente com sua própria realidade, o homem se
curva intuitivamente à esperança e à fé, admitindo uma transcendência absoluta
indefinível objetivamente, sem diminuir a majestade da razão temporal,
justificando a genuflexão de sábios e cientistas ante o mistério no qual
imergem a consciência e o mundo. Nesta perspectiva de fé o homem se liberta da
prisão imposta pela vivência de finitude, e rompe a barreira espaço temporal,
debruçando-se sobre a eternidade, para deixar-se envolver no infinito das possibilidades.
Tudo isso faz parte do modo peculiar de o homem existir. E que remanso de paz e
segurança surpreendê-lo-á quando, ao largo da turbulência de fantasias
pessimistas, vislumbrar a possibilidade eleita de uma experiência única de
completude, além dos limites do tempo e do espaço.
Auscultando
a natureza incompleta do seu ego finito, o pensador que aspira a realizar uma
experiência pessoal inexcedível dá-se conta da ilusão de segurança e
sustentabilidade que o seduzem no enlevo de fantasias imediatistas de poder e
sensualidade. Percebe, então, no mais íntimo de si mesmo a nostalgia de um Tu
absoluto, com o qual realizará afinal sua experiência suprema de “ser”, numa relação profunda com o absoluto indondável. No
curso da “existência” o homem pode negar-se a render-se a esta Transcendência absoluta, mas com
isto exclui a possibilidade de uma experiência mística que se apresenta como a
única solução cabal para o problema existencial no vir a ser
consciente, finito, mas sedento de eternidade. A postura de entrega mística,
obviamente, não recebe a chancela das Ciências exatas, mas estas não oferecem
uma alternativa satisfatória à necessidade de transcender peculiar do homem. A
intuição de um Alter Ego é concebida como o prolongamento de uma vivência crítica
do próprio self[6] onde se processa a integração
da transcendência absoluta e da imanência, na experiência do “ser consciente”. Mas
esta incorporação permanece misteriosa - Deus “cifrado”[7] no
Universo - realidade que escapa ao exame fenomenológico. Todavia, pode-se
postular logicamente, que nem por um instante o “dinamismo absoluto eternamente
criativo” subtrai-se das suas criaturas porque estas não têm o poder de
subsistir por si mesmas; desligadas d´Ele deixariam de existir. Assim o
Absoluto criador está universalmente presente (a transcendência na imanência, eis
o mistério!), na menor partícula de matéria, e no homem, mas só este é capaz de
reconhecer Sua presença, através das funções psíquicas superiores lideradas pela
consciência reflexiva.
Lendo suas próprias respostas nas relações
consciência – mundo[8],
o homem se define culturalmente assumindo comportamentos diferentes, que
deverão ser responsáveis, de acordo com sua leitura da realidade. Nesta
leitura, a Hipocondria e a Obsessão se constituem em interpretações patologicamente magnificadas
da finitude e dos riscos inerentes ao vir a ser existencial incerto, modulando as respostas atípicas
suscitadas pelas ameaças implícitas no vir a ser existencial. Quando a
estrutura psicológica não suporta sequer reconhecer a realidade hostil, sobrevém
a crise histérica que pretende negar o real insuportável. A própria
análise existencial pode explicar a origem destas patologias, sem apelar,
preliminarmente, para uma etiopatogenia orgânica complexa. Este conhecimento
justifica a abordagem filosófica dos comportamentos humanos como recurso hábil
para explicar a hipocondria, a obsessão e a histeria.
No
processo psíquico implícito no curso da “individuação”, a esperança e a fé subjazem à unificação das
forças da Natureza com uma dimensão transcendental. Mas estas virtudes devem
ser corretamente direcionadas para fomentar comportamentos criativos que
preencham o vazio ontológico sobre o qual se edificará a existência. O exame
crítico da existência será, pois, um auxiliar valioso da Psicanálise. É a isto
que se propõe o Aconselhamento Filosófico.
Everaldo
Lopes
[1] Algo que escapa a regras
ou a condições determinadas.
[2] Vide os textos neste blog intitulados “Devaneio
especulativo I, II, III”, e “Construindo uma visão de mundo”.
[3] Zeca Pagodinho –
Compositor de música popular.
[4] Conclusão de Gottfried
Wilhelm Von Leibeniz (1646 -1716)– Filósofo.
[5] Realidade assimilável a um
Deus de amor.
[6]Sentimento difuso da
unidade da personalidade (suas atitudes e predisposições de
comportamento).Indivíduo, tal como se revela e se conhece, representado em sua
própria consciência
[7] Conceito implícito na
Filosofia existencial de Karl Jaspers(1883 – 1969).
[8] Vide texto anterior