sábado, 2 de novembro de 2013

Analogia feliz



Entre os mistérios da vida sobressai a consciência reflexiva. Analisando este fenômeno singular é impossível estabelecer os limites funcionais entre as atividades biológicas e psíquicas. Impossibilidade que leva a cogitações metafísicas sobre a fronteira entre o espírito e a matéria, ensejando reflexões acerca da origem de tudo. Fundamento da condição humana, a consciência reflexiva abre as portas para o conhecimento racional e a comunicação. Só o ser humano sabe que sabe e é capaz de construir uma linguagem[1] completa através da qual comunica suas ideias, emoções e sentimentos.
Conhecemos o mundo através dos sentidos. As sensações produzidas pelos objetos são percebidas no córtex cerebral como “termos mentais”, conceitos que são representados por palavras, unidades mínimas da linguagem com som, e significado completo. Este processo é permeado por símbolos que associam imagens sonoras a significados específicos. Os símbolos transitam na subjetividade humana mais profunda como elos que fazem a intermediação entre a sensação[2] e a percepção[3]. A codificação simbólica que antecede a palavra é o ponto de partida da articulação de uma linguagem representativa da realidade. O processo abstrato que preside o  conhecimento e a linguagem revela desde sua origem um psicodinamismo impermeável à compreensão lógica causal. Envolve múltiplas experiências cumulativas vividas pelo homem em milênios de evolução, que deixaram marcas impressas na subjetividade, mixando intelecção, sensações, emoções e sentimentos. Neste nível de complexidade, fazendo uma extrapolação metafísica, nem os recursos científicos mais avançados serão capazes de demonstrar o ponto de corte entre o psíquico (espírito) e o biológico (matéria).
A comunicação entre as pessoas na convivência familiar, profissional, social enfim vale-se da linguagem oral e de modelos culturalmente estabelecidos.  Na produção artística fruto da intuição criativa original de caráter estético, os romancistas, contistas, poetas comunicam suas experiências pessoais mediante a linguagem escrita. Mas os textos criados permanecem desconhecidos enquanto não são editados em livro, revista ou outra forma de publicação.
Li certa vez uma composição literária elaborada com mestria[4] em que o autor descreve a analogia da relação entre o texto e o livro, com a relação que existe entre a alma e o corpo. Transcrevendo a inspiração criativa, abstrata na sua origem, o texto[5] ganha alma que se corporifica na edição em livro, revista, CD, pen drive ou outra modalidade editorial. Mutatis mutandis, evolutivamente, as funções psíquicas superiores (pensamento, intuição, criatividade) eminentemente espirituais não ganham visibilidade senão através da estrutura biológica extremamente complexa do sistema nervoso central e do córtex cerebral, denunciando a intimidade misteriosa espírito / matéria. A analogia inscrita em “O verso indelével” (a composição literária há pouco referida e identificada em nota de rodapé) exemplifica de maneira simples a unidade inextrincável e inexplicável ostensiva no homem, da transcendência (espiritual) e  da imanência (material).  A edição do texto comunicativo em livro ou outras formas de publicação serve como uma luva para representar, analogicamente, a integração alma e corpo (espírito e matéria) que tem sua máxima revelação na condição humana. 
A linguagem, como meio de expressão e comunicação do resultado das operações intelectuais e afetivas atinge um nível de tal precisão entre os humanos que se tornou uma característica da espécie. Contudo, os símbolos que estruturam a linguagem escondem mensagens que escapam ao reconhecimento da consciência clara. Por isso os verbetes[6] são interpretações aproximadas do vocábulo dicionarizado, sempre aquém da extensão significativa do termo mental, o conceito resultante de uma percepção. É impossível descrever o que ocorre no recesso obscuro da subjetividade inconsciente onde as sensações se transformam em percepções representadas pelos vocábulos utilizados na linguagem comunicativa. Constrói-se assim a singularidade do humano inerente à capacidade de conhecer e de codificar os símbolos em uma linguagem que possibilita a comunicação entre os indivíduos. Idiomas diferentes recorrem a formas diversas para representar a imagem sonora ou gráfica das percepções humanas. Mas todos os idiomas codificam os mesmos símbolos arquetípicos universais que se manifestam nos temas oníricos e na transcrição artística de intuições reveladoras das profundezas insondáveis da subjetividade. Esse assunto encerra segredos desafiadores. No fundo, a integração essencial corpo e alma no ser humano, assim como na literatura a unidade da inspiração e do texto que lhe corresponde editado em livro, não é uma soma, nem a mistura que resulta num composto, constitui-se num todo inconsútil incompreensível para a razão pura. É impossível distinguir a intuição original de sua transcrição em signos linguísticos nos textos editados numa publicação. Escapa à mais acurada observação a passagem da intuição artística (puro pensamento coadjuvado pela emoção estética) inerente à subjetividade, e sua expressão editorial (seja literária, seja pictórica ou escultural) inerente à realidade objetiva.
Tudo que precedeu o marco zero do espaço e do tempo (o big-bang) é imensurável, portanto não é acessível ao conhecimento objetivo. Isso, porém, não autoriza, racionalmente, negar um Princípio metafísico, “absoluto” criador do Universo. Neste ponto da especulação insinua-se a ideia da Consciência Universal, absurdo racional (por ser irredutível às leis da razão), porém, necessária para justificar a ordem que presidiu a organização evolutiva da matéria desde sua origem até o próprio homem[7]. Mal começamos a filosofar, nos deparamos com a dualidade matéria e espírito que só se desfaz, existencialmente, numa vivência integrativa.
            Em “O verso indelével” o autor fala do verso escrito como o “médium de si mesmo”. Imagino que ele quis dizer que o verso escrito incorpora a intuição artística, a alma do texto versificado, e não há como separar o estro criativo, do texto que se corporifica numa forma editorial. Portanto, o texto é a alma dele mesmo  que se revela sem intermediários. O homem também é médium de si mesmo. Em sua realidade se manifesta a transcendência absoluta, sem a qual ele mesmo não subsistiria como ser contingente. Mas, se o exercício da consciência reflexiva denuncia uma transcendência, é por sua imanência que o homem manifesta a dimensão absoluta do seu ser. Ou seja, sendo a criatura humana ao mesmo tempo imanente e transcendente, o homem histórico é, todavia, o único avalista do Absoluto que nele se manifesta. Acreditando n´Ele, assume  a Transcendência Absoluta como uma realidade de fé. Esta é a raiz do sentimento religioso maquiado pelas igrejas em rituais simbólicos, cerimônias pontuais nas quais se pretende aproximar o fiel de um Ser Absoluto. Proposta nobre, existencialmente correta que, todavia é explorada de uma maneira equivocada. Ordinariamente, as Igrejas pelo menos na sua pedagogia primária reduzem a relação do  fiel  com seu Deus a um plano ético, desfigurando a natureza ontológica desse encontro. Aliás, considerando que a criação se continua no processo evolutivo é mais plausível falar-se de Deus como um Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo do qual o homem participa.  Uma vez que o cosmo e a vida não subsistem por si mesmos a  Criação não existiria separada do seu Criador. Assim, participando conscientemente do dinamismo criativo absoluto o homem desenvolve uma espiritualidade engajada no melhor desempenho da humanidade[8]. O indivíduo descomprometido dos rituais simbólicos das igrejas convencionais dispõe-se a vivenciar a inseparabilidade da imanência e da transcendência no seu vir a ser quotidiano, praticando a comunhão dos homens não apenas numa cerimônia religiosa, mas no contexto da convivência quotidiana de uma sociedade solidária.  Transcender-se é a essência da consciência reflexiva, mas no vir a ser existencial para realizar a intimidade Deus/homem este transcender será necessariamente vivenciado na convivência coletiva.  
A consciência reflexiva revela a intimidade espírito / matéria inexplicável, racionalmente.  Por ser absurda, esta intimidade exige do indivíduo a humildade necessária para reverenciar uma absurdidade racional, mediante um ato de fé ancorado na esperança de que no Absoluto, necessariamente, tudo se integra sem contradições.
   Everaldo Lopes.


[1] Qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.

[2] Impressão causada nos sentidos e que por via aferente é conduzida ao córtex cerebral.
[3] Conhecimento adquirido através dos sentidos.
[4] “O verso indelével” no blog Mundo Fantasmo de Bráulio Tavares.
[5] Conjunto de palavras  e frases escritas.
[6] Verbete- conjunto de acepções e exemplos  respeitantes a um vocábulo dicionarizado.
[7] Este tema foi abordado em “Devaneio especulativo I,II,III” neste blog.
[8] Conjunto de características específicas da natureza humana