Entre os mistérios da
vida sobressai a consciência reflexiva. Analisando este fenômeno singular é
impossível estabelecer os limites funcionais entre as atividades biológicas e
psíquicas. Impossibilidade que leva a cogitações metafísicas sobre a fronteira
entre o espírito e a matéria, ensejando reflexões acerca da origem de tudo. Fundamento
da condição humana, a consciência reflexiva abre as portas para o conhecimento
racional e a comunicação. Só o ser humano sabe que sabe e é capaz de construir
uma linguagem[1]
completa através da qual comunica suas ideias, emoções e sentimentos.
Conhecemos o mundo
através dos sentidos. As sensações produzidas pelos objetos são percebidas no
córtex cerebral como “termos mentais”, conceitos que são representados por
palavras, unidades mínimas da linguagem com som, e significado completo. Este
processo é permeado por símbolos que associam imagens sonoras a significados
específicos. Os símbolos transitam na subjetividade humana mais profunda como
elos que fazem a intermediação entre a sensação[2] e a percepção[3]. A codificação simbólica
que antecede a palavra é o ponto de partida da articulação de uma linguagem representativa
da realidade. O processo abstrato que preside o
conhecimento e a linguagem revela desde sua origem um psicodinamismo
impermeável à compreensão lógica causal. Envolve múltiplas experiências
cumulativas vividas pelo homem em milênios de evolução, que deixaram marcas
impressas na subjetividade, mixando intelecção, sensações, emoções e
sentimentos. Neste nível de complexidade, fazendo uma extrapolação metafísica,
nem os recursos científicos mais avançados serão capazes de demonstrar o ponto
de corte entre o psíquico (espírito) e o biológico (matéria).
A comunicação entre as
pessoas na convivência familiar, profissional, social enfim vale-se da
linguagem oral e de modelos culturalmente estabelecidos. Na produção artística fruto da intuição
criativa original de caráter estético, os romancistas, contistas, poetas comunicam
suas experiências pessoais mediante a linguagem escrita. Mas os textos criados
permanecem desconhecidos enquanto não são editados em livro, revista ou outra
forma de publicação.
Li certa vez uma
composição literária elaborada com mestria[4] em que o autor
descreve a analogia da relação entre o texto e o livro, com a relação que
existe entre a alma e o corpo. Transcrevendo a inspiração criativa, abstrata na
sua origem, o texto[5]
ganha alma que se corporifica na edição em livro, revista, CD, pen drive ou
outra modalidade editorial. Mutatis mutandis, evolutivamente, as funções
psíquicas superiores (pensamento, intuição, criatividade) eminentemente
espirituais não ganham visibilidade senão através da estrutura biológica extremamente
complexa do sistema nervoso central e do córtex cerebral, denunciando a
intimidade misteriosa espírito / matéria. A analogia inscrita em “O verso
indelével” (a composição literária há pouco referida e identificada em nota de
rodapé) exemplifica de maneira simples a unidade inextrincável e inexplicável ostensiva
no homem, da transcendência (espiritual) e
da imanência (material). A edição
do texto comunicativo em livro ou outras formas de publicação serve como uma
luva para representar, analogicamente, a integração alma e corpo (espírito e
matéria) que tem sua máxima revelação na condição humana.
A linguagem, como meio
de expressão e comunicação do resultado das operações intelectuais e afetivas atinge
um nível de tal precisão entre os humanos que se tornou uma característica da
espécie. Contudo, os símbolos que estruturam a linguagem escondem mensagens que
escapam ao reconhecimento da consciência clara. Por isso os verbetes[6] são interpretações
aproximadas do vocábulo dicionarizado, sempre aquém da extensão significativa do
termo mental, o conceito resultante de uma percepção. É impossível descrever o
que ocorre no recesso obscuro da subjetividade inconsciente onde as sensações se
transformam em percepções representadas pelos vocábulos utilizados na linguagem
comunicativa. Constrói-se assim a singularidade do humano inerente à capacidade
de conhecer e de codificar os símbolos em uma linguagem que possibilita a comunicação
entre os indivíduos. Idiomas diferentes recorrem a formas diversas para
representar a imagem sonora ou gráfica das percepções humanas. Mas todos os
idiomas codificam os mesmos símbolos arquetípicos universais que se manifestam nos
temas oníricos e na transcrição artística de intuições reveladoras das
profundezas insondáveis da subjetividade. Esse assunto encerra segredos desafiadores.
No fundo, a integração essencial corpo e alma no ser humano, assim como na
literatura a unidade da inspiração e do texto que lhe corresponde editado em
livro, não é uma soma, nem a mistura que resulta num composto, constitui-se num
todo inconsútil incompreensível para a razão pura. É impossível distinguir a
intuição original de sua transcrição em signos linguísticos nos textos editados
numa publicação. Escapa à mais acurada observação a passagem da intuição
artística (puro pensamento coadjuvado pela emoção estética) inerente à subjetividade,
e sua expressão editorial (seja literária, seja pictórica ou escultural)
inerente à realidade objetiva.
Tudo que precedeu o
marco zero do espaço e do tempo (o big-bang) é imensurável, portanto não é
acessível ao conhecimento objetivo. Isso, porém, não autoriza, racionalmente, negar
um Princípio metafísico, “absoluto” criador do Universo. Neste ponto da
especulação insinua-se a ideia da Consciência Universal, absurdo racional (por ser
irredutível às leis da razão), porém, necessária para justificar a ordem que
presidiu a organização evolutiva da matéria desde sua origem até o próprio
homem[7]. Mal começamos a
filosofar, nos deparamos com a dualidade matéria e espírito que só se desfaz,
existencialmente, numa vivência integrativa.
Em
“O verso indelével” o autor fala do verso escrito como o “médium de si mesmo”. Imagino
que ele quis dizer que o verso escrito incorpora a intuição artística, a alma do
texto versificado, e não há como separar o estro criativo, do texto que se corporifica
numa forma editorial. Portanto, o texto é a alma dele mesmo que se revela sem intermediários. O homem também
é médium de si mesmo. Em sua realidade se manifesta a transcendência absoluta, sem
a qual ele mesmo não subsistiria como ser contingente. Mas, se o exercício da
consciência reflexiva denuncia uma transcendência, é por sua imanência que o
homem manifesta a dimensão absoluta do seu ser. Ou seja, sendo a criatura
humana ao mesmo tempo imanente e transcendente, o homem histórico é, todavia, o
único avalista do Absoluto que nele se manifesta. Acreditando n´Ele, assume a Transcendência Absoluta como uma realidade
de fé. Esta é a raiz do sentimento religioso maquiado pelas igrejas em rituais simbólicos,
cerimônias pontuais nas quais se pretende aproximar o fiel de um Ser Absoluto. Proposta
nobre, existencialmente correta que, todavia é explorada de uma maneira equivocada.
Ordinariamente, as Igrejas pelo menos na sua pedagogia primária reduzem a
relação do fiel com seu Deus a um plano ético, desfigurando a
natureza ontológica desse encontro. Aliás, considerando que a criação se
continua no processo evolutivo é mais plausível falar-se de Deus como um
Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo do qual o homem participa. Uma vez que o cosmo e a vida não subsistem por
si mesmos a Criação não existiria separada
do seu Criador. Assim, participando conscientemente do dinamismo criativo absoluto
o homem desenvolve uma espiritualidade engajada no melhor desempenho da humanidade[8]. O indivíduo
descomprometido dos rituais simbólicos das igrejas convencionais dispõe-se a vivenciar
a inseparabilidade da imanência e da transcendência no seu vir a ser quotidiano,
praticando a comunhão dos homens não apenas numa cerimônia religiosa, mas no
contexto da convivência quotidiana de uma sociedade solidária. Transcender-se é a essência da consciência
reflexiva, mas no vir a ser existencial para realizar a intimidade Deus/homem este
transcender será necessariamente vivenciado na convivência coletiva.
A consciência reflexiva
revela a intimidade espírito / matéria inexplicável, racionalmente. Por ser absurda, esta intimidade exige do
indivíduo a humildade necessária para reverenciar uma absurdidade racional,
mediante um ato de fé ancorado na esperança de que no Absoluto,
necessariamente, tudo se integra sem contradições.
Everaldo Lopes.
[1] Qualquer
meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos
convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.
[2] Impressão causada nos
sentidos e que por via aferente é conduzida ao córtex cerebral.
[3] Conhecimento adquirido
através dos sentidos.
[4] “O verso indelével” no
blog Mundo Fantasmo de Bráulio Tavares.
[5] Conjunto de palavras e frases escritas.
[6] Verbete- conjunto de
acepções e exemplos respeitantes a um
vocábulo dicionarizado.
[7] Este tema foi abordado em
“Devaneio especulativo I,II,III” neste blog.
[8] Conjunto
de características específicas da natureza humana