A
experiência amorosa só tem repercussão existencial plena quando há reciprocidade.
Isto parece óbvio. Mas, para avaliar adequadamente o conteúdo desta afirmação é
preciso ter a noção mais aproximada possível do que é o amor, conquanto não se
possa defini-lo racionalmente. Só experimentando-o é possível mergulhar fundo
na intimidade de sentimento tão complexo, e compreender o significado de uma
relação intersubjetiva profunda (encontro). Sem esta experiência, as pessoas
apenas conversam frivolamente sobre o amor.
O amor está presente em experiências
diversificadas com características próprias. Excluído o elemento erótico,
configuram-se relacionamentos tais como o amor parental, o amor filial, a
amizade, formas de amar inspiradas na admiração das virtudes do outro, no
respeito, na solidariedade espontânea e na estima. Finalmente, o amor a Deus
constitui-se numa experiência peculiar de entrega humilde das criaturas ao seu Criador,
desejosas do acolhimento paternal.
Ater-nos-emos aqui ao
amor sensual, caracterizado pela atração física. Na experiência inerente a este
tipo de envolvimento do par humano os protagonistas vivem a expectativa da
intimidade sexual que leva eventualmente à reprodução. Diferentemente dos
demais animais, o impulso sexual humano não visa apenas à sobrevivência da
espécie. A pulsão sexual é uma força poderosa que contextualiza os casais
humanos em posturas e comportamentos variados. Nesta perspectiva distinguem-se:
os pares apaixonados desde o início, entre os quais a sensualidade e a
intimidade sexual se tornam uma linguagem comunicativa exigente,
espiritualizada pela cumplicidade afetiva; os pares que por algum tempo se
conhecem, respeitam-se, e num dado momento sentem-se empolgados por forte
atração física, dispostos a assumir publicamente a parceria; os pares que se
gostam e respeitam-se como amigos, porém cedem, eventualmente, a um
envolvimento erótico, livre, esclarecido e conscientemente consentido, mas
ainda não estão dispostos a assumir publicamente a situação. Todos estes relacionamentos,
moralismos à parte, salvaguardam de alguma forma a essência da dignidade humana.
Porém quando a tônica da relação recai apenas na sensualidade, e cada um dos parceiros
está interessado somente no seu próprio prazer sem um propósito genuíno de respeitar
a autonomia do outro, configura-se uma situação que, “stricto sensu”, fere a
dignidade humana.
Em todo encontro de
pessoas há uma tensão entre a sensualidade e o acolhimento afetivo. A
sensualidade é egoísta, avara, centrada no “eu”; a afetividade amorosa é
generosa, desprendida, centrada na relação “eu-tu”. Se a relação for guiada apenas
pela sensualidade, o casal não alcançará a intersubjetividade que caracteriza o
verdadeiro encontro amoroso e só este preenche realmente o vazio existencial. Pior
quando a sensualidade se sobrepõe à cumplicidade
afetiva, e ocorre uma gravidez. Cria-se uma situação moralmente comprometedora,
de caráter dramático. Esvaziados da pulsão, sem cumplicidade afetiva, os
protagonistas imprevidentes são intimados a encarar responsavelmente a situação, em nome
da dignidade humana e sob pressão social. O que redunda em ônus incalculável e
imprevisível para o casal, seus familiares, e para o fruto de um instante de
prazer. Durante muito tempo, por imposição de princípios éticos e até legais,
embora carentes de cumplicidade afetiva o casal imprevidente era obrigado a
permanecer formalmente ligado por compromisso legal ou religioso. Os costumes
estão mudando, mas numa perspectiva humanística, dentro da organização social
vigente nenhum argumento anula a responsabilidade dos pais biológicos para com
o filho.
Não obstante os
descaminhos possíveis da satisfação da libido, será imprudência fatal despreza-la
sumariamente. A libido é uma mola importante da criatividade humana. Dessa
forma podemos dizer que o “amor conjugal” compromete o par humano numa construção
responsável, mediada pela tensão entre a pulsão sexual e a cumplicidade afetiva
intimamente relacionada com o respeito ao/à parceiro/a. Esta é responsável pelo
controle da libido e deverá prevalecer sobre o desejo de intimidade sensual
que, todavia, precisa ser inteligentemente estimulado para maior estabilidade
do casal.
A luxúria se caracteriza
pelo desejo sexual insistente, inespecífico, que leva à manifestação anônima da
sensualidade, em que a intimidade física centraliza todo interesse dos pares envolvidos.
Não há transcendência nesta relação, falta-lhe um mínimo de compromisso ético,
e, como tal, deixa de ser uma expressão responsável da libido. A convivência
social civilizada exige a introdução de um viés ético na relação entre os pares
envolvidos numa experiência sensual. Do ponto de vista humanístico a tonalidade
moral do encontro se impõe ao seu caráter libidinoso físico, sem, contudo,
anulá-lo. Cabe aqui uma digressão. Embora a sociedade aceite, veladamente, certo
relaxamento do padrão existencial exemplar da relação conjugal, não há como
negar a pobreza emocional e o potencial socialmente destrutivo da experiência sexual
embasada apenas na luxúria. Da mesma forma que é existencialmente pobre, embora
socialmente aceitável, e até imposta em circunstâncias especiais, a tirania
ética da submissão do par humano às regras morais e costumes codificados, mesmo
sem a cumplicidade afetiva do par conjugal. Esses exemplos extremos são o oposto
do amor conjugal genuíno, embora possam mimetiza-lo. Idealmente harmonizado, o
casal buscaria sempre o encontro total de almas e de corpos em que o aspecto
físico da relação só é completo no contexto de uma relação intersubjetiva amorosa.
Em nossa realidade cultural, o encontro ideal dificilmente acontece sem a
contaminação indesejável de acomodações viciadas pela luxúria ou pela rigidez
da formalidade moral. Pode-se mesmo dizer que um encontro perfeito é muito raro.
A criatividade do casal é indispensável para contornar o desgaste provocado
pela rotina conjugal e pelas obrigações familiares oficialmente estatuídas. Uma
convivência muito íntima sem criatividade é vulnerável à mesmice da rotina esterilizante.
Isso faz parte da condição humana. Mas o ideal de um relacionamento maduro pode
sempre ser atualizado pelo esforço recíproco dos parceiros na prática do
diálogo inteligente e saudável, amparado pela autenticidade, paciência e
legítima compaixão entre ambos.
No
último quartel da vida o par humano vive uma situação peculiar. A libido do
idoso, disciplinada pela vontade ética é uma bênção na medida em que alimenta o
élan vital. Torna-se, porém, uma ameaça e motivo de constante vigilância para os
velhos/as saudáveis, lúcidos/as, ainda não refeitos/as psicologicamente das
perdas do envelhecimento, mas conscientes da incapacidade de seduzir o objeto do
seu desejo, ou seja, descrentes da possibilidade de serem desejados/as por um/a
parceiro/a sedutor/a. A autocrítica os remete a uma postura reservada que esconde
o desejo de intimidade sensual confiante e cúmplice, livre de remorsos; desejo
cuja satisfação se torna cada vez mais distante, ou mesmo impossível. Sem
pré-conceitos, quando está em jogo a sensualidade, a beleza e a sedução casam
mais com a juventude do que com a velhice. Convenhamos, esta é uma lei estética
com reflexos psicossociais irrevogáveis. A grande sabedoria do idoso reside na
elaboração do impacto desta “lei” na sua própria realidade existencial. A superação
deste impacto exige autodomínio que à luz da crítica pessoal é reforçado pelo
sentimento do grotesco ao qual se exporia o/a idoso/a por seu comportamento incontinente.
Quando se rompe o dique da interdição auto imposta, o idoso autocrítico não só sente
ameaçado o respeito que deve a si mesmo, mas também o seu conceito na
coletividade. A consciência desta ameaça é para o idoso um alerta preventivo permanente.
A solução ideal seria o
amadurecimento durante um longo convívio, entre pares com excepcionais
condições emocionais e intelectuais, unidos por sentimentos recíprocos,
construtivos, que tenham conservado interesses sensuais compensadores malgrado a
depreciação física imposta pela idade! Todavia, esta ocorrência é excepcional. A
relação exemplar construída ao longo dos anos depende da coincidência de muitos
fatores cuja convergência não é comum. Talvez por isso alguém já disse, demonstrando
amarga leviandade algo que se deve entender como um chiste tragicômico: “Morrem
cedo aqueles que os Deuses amam[1]”! No
texto intitulado “Sublimação da libido”, postado neste blog em 4 de março do ano
em curso, tratei deste tema e na ocasião fui agraciado com um comentário
inteligente de minha filha, opondo-se ao meu ponto de vista sobre a limitação
sedutora do idoso. Não nego seu argumento da maior sensibilidade da mulher
inteligente e espiritualizada para encantar-se com o discernimento do amante
revelado num discurso coerente, irrelevantemente à sua aparência física. Mas,
não é a mesma a força de sedução da juventude e da beleza, e a da palavra sábia!
Insisto, pois, na minha resposta ao seu comentário: vamos continuar elaborando
esta questão...
A vida consciente
reflexiva e inteligente não se resume afinal em satisfazer a libido sexual! Transcendendo
a condição animal, a plenitude da “existência” ultrapassa a satisfação da
sensualidade e consuma-se numa experiência mística de integração consciência -
mundo. Para Kierkegaard, na sua caminhada existencial o homem percorre três
etapas distintas: o estágio estético, o estágio ético e o estágio ético-religioso.
No estágio estético, o ser humano vive apenas no nível sensual, centrado em si
mesmo, desfrutando os prazeres dos sentidos. Como tal orientação de vida leva à
insatisfação e ao desespero, o homem acaba saltando para um nível mais elevado
de existência, o estágio ético, em que procura conviver com os outros solidariamente.
Mas, tal pretensão ética raramente é alcançada, levando mais uma vez à culpa e
ao desespero que obrigam o homem a dar outro salto no escuro, o salto para a
vida ético-religiosa na qual abandona-se numa entrega total à transcendência
absoluta fundada unicamente na fé. Esta atitude representa analiticamente a
prática potencializada ao infinito do amor à Verdade, à Justiça e à beleza universais. E confirma que a
solução do problema humano existencial não é racional, porém mística... tem
muito mais a ver com a vivência afetiva intuitiva, do que com o pensamento
lógico, fundamento da razão pura.
Everaldo Lopes