domingo, 29 de maio de 2011

Ética e maturidade pessoal


Em geral os membros da coletividade se policiam reciprocamente no que tange ao cumprimento dos princípios éticos. Neste contexto, formalmente, o comportamento moral inspirado no respeito à dignidade do “outro” não se distingue da conduta “eticamente correta” movida pelo temor à crítica (julgamento e punição), ou visando ganhos secundários. Mas embora em ambos os casos, aparentemente, se produza o mesmo efeito social imediato, é diferente a ressonância pessoal em cada caso. O comportamento respeitoso, nobre e generoso é sempre mais fecundo em vivências “estruturantes” do devir pessoal. A diferença essencial é que        no cumprimento autêntico dos princípios éticos, movido pela solidariedade o indivíduo disciplina o exercício da própria liberdade, ainda que isso exija um esforço dirigido, e até mesmo algum sacrifício.  E na conduta moral temente à censura e condenação, o indivíduo cumpre os preceitos éticos estabelecidos, pressionado pelos instrumentos institucionalizados[1]de controle coletivo (autoridade externa).
A postura ética inspirada na consideração recíproca espontânea e generosa das pessoas entre si resulta de um processo de aprendizado e maturação. Ao alcançar este nível de crescimento humano, a iniciativa pessoal pode até ultrapassar a ética pública em benefício de um posicionamento mais solidário, confirmando os princípios que norteiam as normas estabelecidas. Para quem assim procede, a atitude ética tem um cunho existencial em que o indivíduo assume total responsabilidade sobre as suas escolhas e ações.  Seguindo essa trilha, o eu agente vai além da perfeição alcançada na prática da moral oficial, somando comportamentos orientados para o aprofundamento da harmonia social. Em termos evolutivos esses comportamentos se constituem no pivô de mudanças culturais importantes para a consolidação do bem estar coletivo. São condutas inovadoras pautadas na consciência crítica e responsabilidade das pessoas que imbuídas do ideal humanístico se empenham em perseverar na prática da verdade e da justiça como paradigmas da “existência plena”... por isso elas nunca resvalam em razão de tropeços éticos. Mesmo diferençando-se dos padrões oficiais, elas obedecem, e até aperfeiçoam os padrões éticos já ratificados culturalmente.
            Por outro lado, o comportamento envolvendo deslizes éticos que ferem a norma estabelecida para beneficiar um indivíduo ou grupelho em detrimento dos demais caracteriza-se pelo egoísmo desnaturante dos liames sociais. Neste caso a ação do agente social prejudica o interesse coletivo tornando-se o infrator um usurpador[2] do bem comum, réu indefensável da crítica indignada (embora muitas vezes impotente) dos cidadãos fiéis aos valores comunitários da humanidade.  Lamentavelmente, nem sempre a resposta dos usurpados é expressiva o suficiente para virar o jogo, corrigindo a corrupção perversa. Sem uma massa crítica de cidadãos dispostos a reivindicar seus direitos não se consegue o controle democrático dos atos que ferem o bem comum.
O Estado de Direito existe para coibir as ações que lesam a ordem social. Mas o ideal é que os cidadãos introjetem esta função do estado, assimilando os valores que reforçam a coesão social. Tomando por referencial este nível de perfeição pessoal, o autor de uma fraude, refém de sua própria insensatez, deveria sentir-se, dolorosamente, rejeitado e rebaixado em sua condição humana. É óbvio, todavia, que o incômodo moral sentido em decorrência da ruptura do comportamento ético afeta mais as pessoas de caráter que, momentaneamente, não resistiram às “tentações”. Os infratores contumazes não se abalam enquanto não são descobertos, e ainda quando desmascarados se esforçam para fugir das malhas da lei, escamoteando suas falcatruas. Daí a resiliência da corrupção sob a ação pontual da repressão policial e das instituições jurídicas.
            A assimilação das normas éticas pelos indivíduos é fundamental no apuro do comportamento social. Porque agindo de dentro da subjetividade os valores que dignificam o indivíduo e consolidam a sociedade têm mais chance de reforçar os laços comunitários entre as pessoas. Mas ninguém muda ninguém. A capacidade de agir coerentemente em relação aos interesses da coletividade só pode ser desenvolvida por cada um, como resultado de livre escolha e firme decisão pessoal. Implica em tornar-se o agente social “dono” de suas emoções, sentimentos, atitudes, pensamentos e palavras. Ao assumir este autocontrole o indivíduo terá atingido a maturidade psicossocial indispensável para conduzir-se solidariamente na vida comunitária. Neste nível o homem não reage, mas age com virtuosa convicção. Compreende que não é o que o outro diz que o fere; mas ele é que se fere a si mesmo com o que o outro diz, se não tiver a maturidade que lhe confira autoconfiança e autonomia no seu vir a ser. Neste patamar superior de maturidade as relações intersubjetivas se tornam menos conflituosas, mesmo quando há assimetria entre os interlocutores. A aleivosia e agressividade do interlocutor imaturo esbarram no escudo de segurança do “outro”, autônomo, independente, que cumpriu com sucesso a própria individuação[3]. Este não reage às agressões recebidas de forma diretamente proporcional, com as mesmas armas do agressor. Em vez disso ele age construtivamente sem se deixar afetar pela agressão, e permanece disposto a perdoar e dialogar. Todo homem tem possibilidade de alcançar este nível de maturidade, mediante os esforços contínuos de autoconhecimento e disciplina emocional que acompanham o processo de individuação.  Necessitará, todavia, de clarividência, muita paciência e determinação para vencer os obstáculos em que tropeçará ao longo desta jornada de toda uma vida. As dificuldades processuais implícitas na construção das relações interpessoais solidárias foram tratadas em texto anterior intitulado “A arte de conviver”.


[1] Policiais e judiciárias
[2] Este é o caso do corrupto, tão mais pernicioso quanto mais dissimulado e infiltrado nos poderes do Estado.
[3] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961) . Houaiss3