quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A espiritualidade reflete uma tentativa de superação pessoal

A angústia existencial é a mesma para materialistas e espiritualistas.  Confiar na sobrevivência da alma imortal não muda a ansiedade do ser consciente que se sabe biológica e existencialmente limitado. O que faz a diferença é ser empolgado pelo amor que tudo envolve e eterniza, transformando a existência numa abertura permanente para a plenitude pessoal contextualizada num todo significativo. Viver este amor que tudo transforma tem mais força e promove maior repercussão no equilíbrio psicobiológico do que ter o saber especulativo que demonstra a necessidade lógica de uma transcendência absoluta. A própria fé só é um refúgio espiritual se for um testemunho de amor. Conceber racionalmente a necessidade lógica de um dinamismo absoluto eternamente criativo para justificar a existência do cosmo e a do próprio ser consciente (ambas contingentes) satisfaz a razão, mas essa conquista intelectual sem um suporte amoroso não suprime a ansiedade diante do vir a ser existencial incerto. Se não formos empolgados pelo amor, possuir este saber é como ter um depósito em moeda estrangeira sem poder trocá-la por moeda corrente. Acabaríamos com uma fortuna nas mãos sem poder “comprar” o de que precisássemos para abrigar-nos da angústia despertada pelas fragilidades temporais.
O amor doação que necessitamos experimentar para existir em plenitude é um dom e como tal não se pode adquiri-lo, por mais disciplinado, inteligente e desejoso de possui-lo que alguém possa ser. Pode-se, todavia, manter e cultivar a receptividade para uma experiência totalizante, de cunho afetivo. Para consumar existencialmente o propósito de estabelecer uma relação de amor com a transcendência absoluta é preciso sentir uma comoção espiritual que não há como forjar senão pela mobilização das potencialidades afetivas inerentes à condição humana; estas potencialidades, porém, são insensíveis aos argumentos racionais. Ou seja: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.”[1] É preciso sentir-se emocionalmente envolvido pela presença do absoluto transcendental cuja existência encontra apoio racional em especulações metafísicas pertinentes a partir da realidade conhecida[2]. Não basta, porém, reconhecer este apoio intelectual. Para vivenciar a reciprocidade do amor universal é preciso ser tocado por sentimentos que aproximem a criatura consciente, do seu Criador. A iniciativa do convite é do Criador, mas a criatura precisa responder a este convite reconhecendo humildemente sua precariedade existencial. A reação receptiva do ser consciente pode ser inicialmente uma abertura racional, mas precisa ser traduzida em sentimento, em amor pelo Criador e por suas criaturas. Muitos de nós não ultrapassamos a etapa intelectual do saber esclarecido que aponta para uma transcendência absoluta. É preciso amar e sentir-se amado pessoalmente no vir a ser histórico pessoal a fim de que floresça a vivência do amor universal. Não se tem como comandar este desfecho, mas todos sentem que ser capaz de protagonizar o amor doação é fundamental para a realização da experiência mística. A vivência intuitiva da unidade perfeita de toda realidade visível e invisível predispõe ao encontro redentor na comunidade de consciências inscrita na unidade do Espírito absoluto. A transição do comportamento racional para o afetivo é um “salto quântico”[3], e não o resultado de um  processo[4]. Com seus recursos psíquico afetivos o ser consciente pode apenas permanecer receptivo ao chamamento do Absoluto intangível, e esperar o milagre que lhe há de proporcionar a vivência interior de uma intimidade amorosa com as criaturas, e através delas com o próprio Criador. Desta intimidade entre a criatura consciente e o Criador resultaria a vivência de plenitude absoluta. Uma analogia ajuda a descrever a paz infinita desta vivência. A comparação mais apropriada dessa experiência seria com a de sentir-se invadido por uma luz que espalhasse a mesma intensidade luminosa em todos os sentidos desfazendo as sombras e as contradições.  Iluminação que corresponderia a uma vivência de plenitude absoluta. Só este sentimento profundo confirma a entrega total resultante do amor doação (caridade[5]). Com essa experiência o ser consciente faz uma ponte subjetiva com a transcendência absoluta. Em verdade a “entrega” implícita na doação é algo que acontece, não pode ser ensinado ou aprendido. A capacidade do homem de ultrapassar-se sinaliza a predisposição do seu ser biopsíquico para viver uma entrega incondicional, transcendendo-se. Não obstante inalcançável mediante um esforço dirigido, o amor doação pode ser despertado, de repente, por uma palavra, um gesto, uma manifestação autêntica de solidariedade.
Enquanto vive a precariedade do seu vir a ser temporal, o homem se esforça para manter a serenidade que lhe é possível, na tentativa de despreocupar-se de cuidados excessivos com sua integridade física e moral. Isto implica estar disposto a enfrentar qualquer dificuldade, contando apenas com os recursos (razão, afetividade e vontade) disponibilizados ao ser consciente objetivamente cônscio dos limites inelásticos de ser no tempo. Esta disposição implica em não se deixar abater pelas derrotas sofridas ao longo do vir a ser histórico, alimentando o gosto de viver a despeito das adversidades, esperançoso de sempre dar a volta por cima sem perder o foco do objetivo existencial colimado, acreditando no próprio potencial criativo. Sem a ajuda mística do Criador este desempenho existencial redunda numa sobrecarga intolerável. O equilíbrio existencial precário só se transforma numa vivência de verdadeira paz mediante a experiência de fé num absoluto transcendental que tudo engloba e em que tudo faz sentido. No julgamento objetivo do materialista a experiência mística é ingênua. Mas, como vimos há pouco, na visão crítica do espiritualista esta “ingenuidade esclarecida” encontra respaldo em especulações metafísicas a partir da análise do mundo conhecido.  Tudo isso reflete a luta interior inerente aos desafios da elaboração de uma postura espiritual que alicerce a plenitude do ser consciente.
  Everaldo Lopes



[1] Blaise Pascal (1612 – 1662) Matemático, Físico, Filósofo.
[2] Vide em “Devaneio  especulativo I”: Se há uma ordem na construção do mundo e da vida, se toda ordem pressupõe uma intenção, se não há intenção fora da esfera da consciência, é forçoso que haja uma Consciência Universal! Portanto, a lógica especulativa nos conduz a uma realidade abstrata que a própria razão não consegue entender e descrever objetivamente. Mas isto ainda não basta. A elaboração intelectual precisa transformar-se numa forte convicção, consolidada no sentimento de comunhão profunda com a “transcendência absoluta”, patenteada numa vivência da unidade criatura / Criador.

[3] Que diz respeito a um sistema físico cujas grandezas físicas observáveis assumem valores discretos, de tal modo que a passagem de um determinado valor para outro ocorre de maneira descontínua, segundo as leis da mecânica quântica (Houaiss).

[4] Num sistema físico, a sucessão de estados intermediários na passagem entre dois estados evolutivos.

[5] No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem. (Aurélio)

sábado, 14 de dezembro de 2013

Espiritualidade em perspectiva

Para o filósofo, o espírito é uma essência incorpórea pensante, princípio absoluto[1] criador do tempo e do espaço, que rege o Universo e a vida. O espírito manifesta-se na consciência reflexiva, oferecendo ao homem a capacidade de transcender-se[2], compatível com a manifestação temporal deste princípio absoluto imaterial, incompreensível para a razão humana. Sua manifestação misteriosa cria no homem a possibilidade de viver o distanciamento subjetivo entre o “eu sujeito” observador e o objeto de sua observação (o mundo e a vida).  Experiência que constitui o cerne da própria consciência reflexiva. Surge assim o pensamento; processo mental que se concentra na formulação de conceitos e no relacionamento logico das ideias. Desenvolve-se então a possibilidade da crítica construtiva que dá suporte a escolhas criteriosas favoráveis a mudanças oportunas nas relações do homem com o mundo, consigo mesmo, e com os outros. É óbvio que o pensamento não é redutível a uma explicação fenomenológica. Mas ele justifica o ser consciente, fundamentando-o. O simples fato de o homem ser capaz de pensar leva-o à conclusão inevitável de que existe[3]. A partir da confirmação de sua própria existência o homem se dá conta de que não se criou a si mesmo nem o mundo que habita. Daí a especulação filosófica sobre o Criador, um absoluto que permanece necessariamente inscrito na sua criação uma vez que esta não possui o poder de subsistir. Obviamente, em face da incapacidade de a criatura subsistir por conta própria não se pode separar a Criação (o cosmo e a vida), do seu Criador. Todavia, o Princípio espiritual absoluto que cria e permanece cifrado na sua criação só se manifesta mais ostensivamente no homem. O Espírito fundamento da consciência reflexiva paralela à liberdade utilizou a organização psicobiológica complexa do homem (Sistema Nervoso Central) para manifestar-se ostensivamente. Ambas, consciência e liberdade se implicam mutuamente; a consciência reflexiva não existe sem liberdade e a prática desta obriga o ser consciente a assumir responsavelmente os valores éticos de uma existência[4] sustentável. Esta implicação envolve a dinâmica subjetiva entre a razão[5], os sentimentos e a  vontade, oferecendo ao homem a oportunidade de fazer escolhas e de produzir mudanças evolutivas construtivas. Mas, ao mesmo tempo, o ser consciente reflexivo se expõe ao conhecimento das incertezas decorrentes da sua própria finitude, origem da angústia existencial e de outros medos. A maior angústia do ser humano resulta do reconhecimento da fragilidade inerente à contingência de ser no mundo sem garantias. O que implica em defrontar a incerteza do seu vir a ser sem poder abrir mão de uma proposta existencial na qual faz suas escolhas pessoais, mesmo correndo riscos. A experiência demonstra que a plenitude existencial inexcedível só acontece quando amamos verdadeiramente, ou criamos dando asas à inspiração artística e inventiva; então, o tempo não conta, ou não o sentimos passar. Por isso a capacidade de amar incondicionalmente se acompanha de maior felicidade do que a que nos pode proporcionar o sentimento de ser amado! Ser amado é uma consequência; quem ama a vida a Natureza e os outros é também amorável e recebe com naturalidade a retribuição ao seu comportamento amoroso! Todavia, o amor e a criação artística, assim como a prática solidária não são ações manipuláveis, envolvem integração exemplar das funções psíquicas superiores, e talento; equilíbrio e virtude que não resultam apenas de um simples esforço voluntário. São dons congênitos que recebemos gratuitamente e apenas podemos cultivá-los. Nas relações humanas a dinâmica psíquica afetiva é muito complexa, não é facilmente administrável, e o melhor resultado depende ainda da participação do outro mediante sintonia  espontânea e recíproca que não acontece com a frequência desejável. A base da experiência amorosa é a prática do respeito ao outro e da responsabilidade social; até este ponto os comportamentos individuais são controláveis pela vontade.  Mas o amor se torna uma elaboração heroica quando se trata de viver a intersubjetividade de almas gêmeas[6], o encontro ideal que todos almejam realizar um dia!
Na subjetividade humana transitam pensamentos, sentimentos, intuições, desejos que convergem na definição e assimilação de um sentido para a existência pessoal, que passa necessariamente pela relação eu-tu. Nesse processo todos aspiram à plenitude, substrato da felicidade. Porém a instabilidade e incertezas da existência interferem na intersubjetividade inerente à relação “eu-tu” [7]. Interferência relevante uma vez que o homem só nasce como pessoa mediante a possibilidade deste relacionamento.
            Nas dúvidas e inquietações que o assaltam, o homem se sente desamparado diante da fragilidade da vida e do seu vir a ser existencial precário. E se não for capaz de resistir à vivência de abandono diante dos riscos inerentes à própria vida, no mínimo tornar-se-á torturado pelo medo, e ficará permanentemente assustado, incapaz de arriscar o novo. Privado desta possibilidade corre o risco de sobrenadar a estagnação da mesmice de uma existência insípida. Se o amor é o sal da vida, a coragem de arriscar quando ele o exigir é o oxigênio do amor. Precisamos ter a coragem de afirmar-nos como algo além de uma organização biológica exemplar condicionada à contingência temporal; precisamos transcender o presente fugidio para viver o aqui e agora, sem apego aos bens materiais, convencidos de ter em nós mesmos tudo de que precisamos para dar um sentido à existência. Sentido que inclui necessariamente a presença do outro.
Todos somos dotados de razão, afetividade e vontade. A  afetividade e a vontade trabalham o conhecimento racional influindo nas escolhas que o homem faz e nas decisões que precisa tomar no seu vir a ser temporal. A espiritualidade se desenvolve na medida em que o ser consciente é capaz de lidar com as funções psíquicas superiores (razão, afetividade e vontade), integrando-as de forma criativa e equilibrada tendo em vista a construção da comunidade humana. E dela (a espiritualidade) faz parte a busca e assimilação de um sentido imanente e transcendente que enobreça a existência.  Para não nos desgarrarmos nessa jornada há que projetar a relação “eu-tu”, temporal, numa relação “eu-Tu” transcendental em que o eu dialoga na subjetividade com um Alter ego absoluto criador. A intersubjetividade com uma transcendência absoluta demanda um ato de fé. Esta é a única forma de construirmos um porto seguro no mais íntimo da nossa realidade biopsíquica e espiritual. Neste sentido crer equivale a criar o objeto de fé, vivenciando-o como um poder absoluto que a todos nos ampara. Esta aventura existencial  não se resume apenas na indução racional da necessidade de um poder absoluto, mas assumindo-O por um vínculo afetivo que O abraça, sem conhece-Lo, confiante em que n´Ele tudo faz sentido. A espiritualidade plena se confunde com a sabedoria, estado de espírito em que há uma integração harmônica da razão, da afetividade e da vontade na busca da plenitude existencial inerente à participação do “eu” pessoal no absoluto significativo onde reina a iluminação[8] e a paz. É óbvio que esta paz ilimitada só existe numa dimensão transtemporal o que implica ter fé na participação pessoal em uma realidade que transcende o mundo sensível. Essa experiência é pacificadora na medida em que integrado no absoluto, necessariamente único, o ser consciente se liberta de todas as contradições e dúvidas, assim como do medo induzido pela própria finitude. No contexto da espiritualidade que vimos de descrever, a sabedoria e a santidade andam de braços dados. O sábio e o santo são homens simples e humildes.   Ambos encontraram o sentido da vida e o arremate significativo da existência, fazendo de suas fraquezas o trampolim da perfectibilidade humana. Entendendo-se que a perfeição só existe na comunidade de todas as consciências integradas na unidade do absoluto criador (Deus).              Everaldo Lopes             



[1] Algo que existe em si e por si.
[2] O próprio ato de pensar, refletir, implica em transcender  (ultrapassar) o conhecimento imediato associando-o a outros para articular o pensamento lógico.
[3] René Descarte depois de duvidar dos próprios sentidos concluiu “Eu duvido, logo penso, logo existo” (1596 - 1650).
[4] Modo de ser peculiar do homem segundo Kierkegaard (1813-1855) e no existencialismo contemporâneo,
[5] Inteligência linguístico-matemática, intrapessoal e interpessoal (emocional), espacial, cinestésica, existencial , naturalística.
[6] Se você sentir por uma  pessoa vontade de ficar junto,  ternura, saudade de vez em quando, e prazer de conversar com ela, dialogar, esta pessoa reúne condições para ser sua  alma gêmea. Tal  sintonia é a primeira condição para um encontro intersubjetivo verdadeiro. Se, além disso, existe entre vocês o diálogo indispensável à pratica do bom senso podemos afirmar que acabam de encontrar a verdadeira alma gêmea. E se esta experiência se prolonga numa forte atração sensual, e parceria sexual afetuosa, cúmplice e respeitosa  está configurado o amor conjugal exemplar.

[7]“Eu e tu” de Martin Bubber .( 1878 –1965)
[8] Segundo sto Agostinho, comunicação da luz divina à alma do homem, pelo que a inteligência se torna capaz de atingir um conhecimento verdadeiro.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Viver é perigoso

Preocupar-se é cuidar do amanhã, hoje, antecipando inquietações inerentes à incerteza do que está por vir. A pré-ocupação que visa um resultado ou forma um projeto implica em cuidar, hoje, do planejamento inteligente do amanhã, sem inquietações, tendo em vista um objetivo dentro da margem de liberdade e autonomia de cada um. Muitos se torturam, porém, imaginando acontecimentos indesejáveis possíveis no porvir e deixando de viver a experiência do agora. Ora, o futuro chegará, inexoravelmente. Portanto é tolice sofrer por antecipação as incertezas do amanhã; o que for inevitável acontecerá.  Quedar-se em expectativas sinistras ou mesmo auspiciosas sobre as quais não se tem controle é enredar-se em devaneios. E as fantasias pessimistas antecipadas com a imaginação mortificam a alma e podem levar ao desespero. Irreais, elas têm a importância que lhes emprestamos. Em si mesmas são tão inconsistentes como uma sombra, mas se forem assumidas como realidades iminentes terão o poder destruidor de uma força cega da Natureza. Não se deve deixar as fantasias pessimistas criarem raízes. Ao contrário, a fantasia otimista sendo uma expectativa construtiva, tranquilizadora e ética deve ser cultivada... ela também pode ganhar força quando as assimilamos como realidade inquestionável.  Este seria o caso de uma crença no absoluto transcendental criador que se consuma na fé e leva à plena realização existencial.
Construir uma existência que proporcione mais instantes de bem estar interior, paz e felicidade do que de desassossego e infelicidade demanda boa administração das potencialidades intelectuais afetivas e volitivas na circunstância em que se está contextualizado. As metas auspiciosas implícitas no desejo de ser feliz alcançam a plena realização quando fazem parte de projetos definidos aos quais dedicamos nosso empenho; principalmente se vierem ao encontro de dons naturais e contribuírem para a harmonia social.
A existência é um contínuum. Na verdade ela se constrói sobre um corte (vazio) no tempo físico[1].  A experiência temporal para o sujeito consciente se configura no “agora” que definiremos logo mais. Porém é o presente metafísico ou eterno que pontua o acontecer no agora onde, diante do olhar do ser consciente tudo acontece antes de ser transferido para o arquivo da memória. O “presente metafísico” que não passa, assiste imóvel à passagem do tempo físico entendido como a quarta dimensão da matéria. Este presente metafísico é a janela que se abre para a eternidade na subjetividade humana, pela qual o tempo físico é sugado inexoravelmente. Neste sentido, como uma fenda cronologicamente  indefinível no tempo físico, o presente metafísico demarca historicamente o antes e o  depois, separando o passado e o futuro na existência de cada um. Por um mecanismo psicológico complexo o tempo passado é arquivado com rigidez marmórea, em algum escaninho do servomecanismo biopsíquico do homem; enquanto o tempo futuro é reconhecido como projeto sujeito a mudanças antes de tornar-se passado. Os segmentos imediatos do antes (passado) e do depois (futuro) permanecem no “agora”. O primeiro vivido como vivência do passado mais recente, e o segundo como expectativa do que há de vir no momento seguinte, ambas (vivência e expectativa) guardadas em arquivo provisório num lugar qualquer do córtex cerebral. Esta descrição do dinamismo do vir a ser consciente é uma tentativa de representar a complexidade biopsíquica social e espiritual da subjetividade, experimentada como o “agora” que representa na prática o presente psicológico.  Seria insensato ocupar esse intervalo virtual com fantasias inspiradas em lembranças deprimentes ou expectativas sinistras. O presente metafísico ou eterno por ser atemporal é um ponto de observação do qual a consciência identifica a cronologia do tempo físico. Dele descortinam-se lembranças e expectativas que se sucedem, dando a impressão de um movimento temporal do passado para o futuro. O presente eterno (janela da eternidade) tem como representação subjetiva uma vivência permanente de ser[2]. Mas é no agora que vivemos nossas experiências históricas rotineiras ou criativas, cultas, inteligentes, agradáveis ou desagradáveis que materializam o sentimento de ser, de estar vivo, em pleno gozo da liberdade.
Este preâmbulo serve como introdução à compreensão das experiências psicossociais e das introspecções que, dia após dia, preenchem a existência feita de escolhas. A partir do advento da consciência crítica o indivíduo estabelece certa distância subjetiva entre seu ser mais íntimo e a realidade, por isso, capacita-se a julgá-la (a realidade) e fazer escolhas. Então, defronta-se com a interrogação que a vida lhe faz sobre o sentido que deseja imprimir à sua existência. Esta é uma questão cuja resposta não é redutível a um jogo lógico de ideias claras, ela é mais um acorde temático na construção do vir a ser pessoal. Ninguém pode ter certeza absoluta do acerto e consequências da sua resposta à pergunta que lhe faz a vida. A escolha inerente (a resposta) depende de muitas influências positivas umas e negativas outras. É preciso sentir as sutilezas e peculiaridades da existência de cada um, antes de avaliar o trágico ou o patético dos encontros e desencontros que se multiplicam sob todas as bandeiras e sob todos os credos. O reconhecimento da contingência humana é fundamental para a prática da tolerância caridosa que enriquece a solidariedade.
Escapa ao sujeito do conhecimento a essência das coisas, mas não lhe passa despercebida a intuição nebulosa de uma totalidade organizada universal, na qual se apoia a crença em que tudo tem um sentido. Assim a vida consciente tem um sentido no contexto evolucionário, mas à consciência pessoal de cada um cabe descobri-lo (o sentido) e torná-lo presente no mundo através do vir a ser existencial.  Quando a resposta do eu consciente é responsável, contextualizada num todo universal estruturado criativamente significativo garante ao eu agente uma vivência de paz e dignidade mais convincentes do que as certezas racionais. Nesta perspectiva, elabora-se o sentimento de autoestima que flutua ao sabor da eficiência dos esforços empreendidos para manter a coerência da contextualização histórica do que devemos e queremos fazer das nossas vidas. A autoestima se apoia na capacidade de integrar os valores assumidos na dinâmica estrutural psicossocial inerente à realização existencial de cada um, e se confirma subjetivamente mediante a vivência de significação pessoal. Isso implica na definição dos valores em torno dos quais construímos nossas existências. Na prática, esta contextualização se dá no processo da “individuação”[3]. Processo que é eminentemente cultural, portanto envolve sempre antecedentes que nos oferecem fórmulas comportamentais já formatadas. Todavia, nas decisões magnas que ultrapassam a rotina cultural, o sujeito consciente está só e não tem outra garantia para o acerto de suas escolhas além da autoridade ética que ele mesmo se outorga. Quando elas não recebem a chancela dos hábitos e valores culturalmente consagrados, contrariando o que ficou estabelecido culturalmente, batem de frente com a orientação da sociedade organizada sob outra visão de mundo já consagrada. Neste confronto, a sociedade fecha os olhos para toda verdade nova que  contrarie suas crenças, hábitos e costumes. Jesus é o exemplo extremo mais emblemático dessa disputa. Todos sabemos o Seu sacrifício pessoal para sustentar as verdades soberanas que pregou. Talvez este  saber tenha sido a razão que levou Guimarães Rosa a dizer em seu livro[4] que “Viver é muito perigoso”.
                                   Everaldo Lopes





[1] O tempo cósmico no qual os seres sensíveis acontecem; em oposição ao tempo metafísico em que  o presente é uma janela da eternidade que se abre no tempo cósmico.
[2] Enquanto privamos da consciência lúcida, cada um se sente, em essência, o mesmo, da infância à adultidade, não importando que o nosso corpo físico tenha mudado inteiramente morfológica e substancialmente. Ninguém depois de algumas décadas possui um só dos átomos de sua composição bioquímica na infância, mas, não se altera a vivência do “si mesmo”, ou self, centro de toda personalidade, para Jung.  
[3] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961)


[4] “Grande Sertão:Veredas!

domingo, 17 de novembro de 2013

Introspecção reveladora



Saber-se finito implica numa preocupação permanente para o homem embora, por  um mecanismo de defesa compreensível, a maior parte do tempo esse conhecimento permaneça  oculto pelo manto do esquecimento. O objetivo é fugir da angústia existencial que acompanha a consciência da finitude. Este texto pretende abordar a questão expondo-a objetivamente, sem dramaticidade, apontando as alternativas existenciais inerentes à realidade da condição humana.
Para o ser consciente reflexivo é insensata a pretensão de ficar indiferente à morte biológica como fim definitivo; o homem não aceita, naturalmente, a própria destruição. Daí ser o medo de morrer o maior dentre os temores que afligem o ser humano. Mas precisamos aprender a lidar com este medo para conviver com ele sem perder o gosto pela vida, ou cair em depressão. Torna-se, portanto, relevante a questão de como o ser consciente reflexivo trabalhará a contradição entre o desejo de viver e a certeza do fim inexorável. Estamos convencidos de que, baseado na objetividade puramente fenomênica o homem jamais alcançará amenizar sua angústia existencial. O racionalismo radical limita no agnóstico a elaboração resolutiva dos sentimentos despertados pela consciência incômoda de ter vindo ao mundo sem pedir, e dele ter de sair sem querer, todavia veremos que é possível pelo menos suavizar o desconforto resultante, assumindo a dimensão espiritual do homem.
Desde as primeiras manifestações na história da sua evolução o homem deixou indícios de comportamentos que testemunham a crença na sobrevivência do seu “ser” mais íntimo à morte biológica.   A visão materialista da realidade pode arguir de loucura a afirmação dessa transcendência. Porém, uma vez que não se pode negá-la racionalmente[1], é mais inteligente admitir a ideia da essência espiritual do homem. Por sua imaterialidade o espírito não pode ser abordado cientificamente. A sua presença só é acessível à experiência humana mediante um ato de fé, ou seja, a crença numa realidade que não se pode provar objetivamente. Uma vez consumada, a fé na dimensão espiritual do homem se opõe à vivência do espectro de uma resolução pessimista do vir a ser humano. Isto não muda a realidade temporal do ser consciente, mas amplia as perspectivas existenciais. Esta postura é, no mínimo, mais salutar do que descartar sem provas de sua inexistência um absoluto transcendental. Todavia o ato de fé exige certo grau de ingenuidade; não exatamente a espontânea que caracteriza a inocência infantil, mas sim aquela em que, por opção, o adulto reconhece o valor da imaginação e da criatividade na solução dos problemas existenciais. Conferindo o status de realidade a uma criação subjetiva, o ser consciente constrói um porto seguro para suas incertezas. Lamentavelmente, muitos nos negamos a bancar esta ingenuidade adulta, aliás, nem tão ingênua assim, face ao suporte de especulações metafísicas pertinentes[2]. Assim como, embora a psicodinâmica da fé autêntica escape a uma análise racional, o sentimento de plenitude existencial inerente à crença num Absoluto acolhedor que resume toda perfeição demonstra ser real o objeto de fé implícito na experiência mística. À falta da expectativa de realização existencial plena, muitos de nós em algum momento somos assaltados por instantes depressivos que bloqueiam a aspiração à completa felicidade. Todavia, a consciência e a responsabilidade definitórias da condição humana nos exigem construir uma existência que valha a pena ser vivida. Em verdade, para viver em plenitude é preciso estar empolgado por uma paixão que enriqueça com um sentido construtivo nossa permanência neste mundo efêmero. As paixões sensuais que se sobrepõem à lucidez e à razão são auto limitadas e não têm repercussão existencial duradoura. Elas têm um começo e um fim previsíveis, e sofrem o impacto do envelhecimento. Mas não há limite de idade para as paixões espirituais que buscam a perfeição nos valores essenciais. Estas são duradouras e sempre renovadas. Impõe-se, portanto a necessidade de cultiva-las para não deixar que se aprofunde com a idade um sentimento pobre de fim de festa. Afinal, a solução do problema humano não se resolve num equacionamento racional, filosófico, materialista, mas numa experiência mística que envolve os dois epicentros da parábola existencial, a razão e a fé[3] fertilizadas pela imaginação criadora. Portanto não podemos descartar o objeto de fé simplesmente porque a razão não o alcança, todavia, sendo a fé inadministrável não podemos por um simples ato de vontade conferir realidade existencial a um artigo de fé tal como o TU[4]  absoluto indispensável à experiência mística. Daí dizer-se que a fé é uma graça[5]; não alcançaremos professá-la sem ajuda de imponderáveis que não controlamos. Daí o valor inestimável para o vir a ser existencial, da esperança de uma intervenção divina na intimidade subjetiva do ser humano, que para os incrédulos demanda uma crença ingênua inerente ao pensamento mágico. Contudo, a própria razão denota ser tolo ficar na contramão dos indícios implícitos na realidade conhecida a que temos acesso, que apontam para um absoluto inacessível à razão[6]. Absoluto criador que o orgulho racional recusa aceitar no âmbito estreito do agnosticismo empírico, postura negativa que não traz vantagem para a paz interior do homem. De uma forma ou de outra é preciso caminhar ao encontro da velhice e da morte, com ou sem fé, mas com dignidade (por auto respeito).
Estava eu para encerrar estes comentários quando me caiu nas mãos um opúsculo intitulado Meditação Cristã, contendo três conferências sobre a meditação contemplativa, na linha oriental, e um posfácio acerca de Dom John Main[7], autor das Conferências. A leitura deste pequeno livro remeteu-me à experiência mística sugerida anteriormente neste texto como evento inadministrável, agora com uma ressalva, a de podermos nos tornar suscetíveis à sua emergência mediante uma meditação contemplativa (oração).  Neste opúsculo encontrei ideias, exemplos, testemunhos que proporcionam elementos para um vislumbre das possibilidades imensas que se escondem na subjetividade humana, lá onde se misturam pensamentos lógicos, sentimentos, intuições e desejos. Adverti-me de que se nos dispusermos a explorar essas possibilidades descobriremos recursos psíquico-afetivos insuspeitos. A experiência oriental milenar demonstra que a simplicidade da recitação de um mantra (prática da oração contemplativa) abre uma brecha na não administrabilidade do enlevo místico. Na meditação profunda se dá uma experiência subjetiva na qual o sentido do sagrado que perpassa o cosmo é percebido como vivência convincente do que não se pode verbalizar. Não se trata de entendê-lo ou explica-lo, mas de vivê-lo numa intuição da harmonia que se esconde nas contradições inerentes à percepção da realidade fenomênica tal como ela se nos apresenta cientificamente.  Neste plano está próximo da compreensão da realidade última aquele que reconhece humildemente a própria ignorância diante dos mistérios do Universo e da vida. Entretanto, mais perto ainda da verdade suprema estará quem for capaz de ultrapassar a barreira da lógica racional à compreensão das contradições da existência, intuindo a unidade de tudo numa vivência marcada pela fé.
É equivocada a ideia de ser a obediência a preceitos éticos o caminho de ouro da perfectibilidade humana; esta obediência jamais levará às primícias de uma experiência de integração na unidade do absoluto transcendental no qual se realiza a plenitude existencial. Para ser transformante, a relação das criaturas com seu criador deverá ser ontológica e não ética. É na vida (ação, dinamismo) que as coisas acontecem pra valer, e não no cultivo de paradigmas teóricos assumidos intelectualmente como propostas éticas. O “Seja feita a Tua vontade” do Mestre dos mestres em hora de muito sofrimento não se concretiza na obediência a preceitos, mas no mergulho confiante, gratuito, na perfeição a que aspira o homem. A assimilação pacífica do absurdo racional (pela fé) abre espaço para a experiência mística na qual se completa a realização existencial. Historicamente é notória a aposta de Pascal no absurdo lógico de um Absoluto transcendental. Mediante esta opção salva-se a integridade existencial.
A vocação da humanidade é manifestar através de um servomecanismo altamente complexo (Sistema Nervoso Central) lavrado na matéria viva a dimensão transcendental cifrada no Universo. Nesta manifestação a paixão dos sentidos se volatiliza, transmutando-se num arrebatamento espiritual que projeta o “si mesmo”[8] para além da dimensão espaço temporal, desfazendo a distinção entre a consciência e o mundo.

 Everaldo Lopes.


[1] Do ponto de vista estritamente racional é impossível afirmar ou negar com certeza a existência de um absoluto transcendental.
[2] Vide neste blog os textos intitulados “Devaneios especulativos”.
[3] “E um dia, oceano em calma, a humanidade inteira há de fazer, numa só aspiração reunida, da razão e da fé os dois olhos da alma, da verdade e da crença os dois polos do mundo.”(Guerra Junqueiro)
[4] Um Alter Ego transcendental (Deus).
[5] dom que Deus concede aos homens e que os torna capazes de alcançar a salvação

[6] Afinal, como explicar a origem do cosmo uma vez que ele não se  explica por si mesmo, nem a ordem universal sugestiva das leis que comandam o infinitamente grande, o infinitamente pequeno e o infinitamente complexo?
[7] Monge beneditino Irlandês nascido em Londres (1926 a 1982).
[8] Self, o núcleo pessoal de cada um.

sábado, 2 de novembro de 2013

Analogia feliz



Entre os mistérios da vida sobressai a consciência reflexiva. Analisando este fenômeno singular é impossível estabelecer os limites funcionais entre as atividades biológicas e psíquicas. Impossibilidade que leva a cogitações metafísicas sobre a fronteira entre o espírito e a matéria, ensejando reflexões acerca da origem de tudo. Fundamento da condição humana, a consciência reflexiva abre as portas para o conhecimento racional e a comunicação. Só o ser humano sabe que sabe e é capaz de construir uma linguagem[1] completa através da qual comunica suas ideias, emoções e sentimentos.
Conhecemos o mundo através dos sentidos. As sensações produzidas pelos objetos são percebidas no córtex cerebral como “termos mentais”, conceitos que são representados por palavras, unidades mínimas da linguagem com som, e significado completo. Este processo é permeado por símbolos que associam imagens sonoras a significados específicos. Os símbolos transitam na subjetividade humana mais profunda como elos que fazem a intermediação entre a sensação[2] e a percepção[3]. A codificação simbólica que antecede a palavra é o ponto de partida da articulação de uma linguagem representativa da realidade. O processo abstrato que preside o  conhecimento e a linguagem revela desde sua origem um psicodinamismo impermeável à compreensão lógica causal. Envolve múltiplas experiências cumulativas vividas pelo homem em milênios de evolução, que deixaram marcas impressas na subjetividade, mixando intelecção, sensações, emoções e sentimentos. Neste nível de complexidade, fazendo uma extrapolação metafísica, nem os recursos científicos mais avançados serão capazes de demonstrar o ponto de corte entre o psíquico (espírito) e o biológico (matéria).
A comunicação entre as pessoas na convivência familiar, profissional, social enfim vale-se da linguagem oral e de modelos culturalmente estabelecidos.  Na produção artística fruto da intuição criativa original de caráter estético, os romancistas, contistas, poetas comunicam suas experiências pessoais mediante a linguagem escrita. Mas os textos criados permanecem desconhecidos enquanto não são editados em livro, revista ou outra forma de publicação.
Li certa vez uma composição literária elaborada com mestria[4] em que o autor descreve a analogia da relação entre o texto e o livro, com a relação que existe entre a alma e o corpo. Transcrevendo a inspiração criativa, abstrata na sua origem, o texto[5] ganha alma que se corporifica na edição em livro, revista, CD, pen drive ou outra modalidade editorial. Mutatis mutandis, evolutivamente, as funções psíquicas superiores (pensamento, intuição, criatividade) eminentemente espirituais não ganham visibilidade senão através da estrutura biológica extremamente complexa do sistema nervoso central e do córtex cerebral, denunciando a intimidade misteriosa espírito / matéria. A analogia inscrita em “O verso indelével” (a composição literária há pouco referida e identificada em nota de rodapé) exemplifica de maneira simples a unidade inextrincável e inexplicável ostensiva no homem, da transcendência (espiritual) e  da imanência (material).  A edição do texto comunicativo em livro ou outras formas de publicação serve como uma luva para representar, analogicamente, a integração alma e corpo (espírito e matéria) que tem sua máxima revelação na condição humana. 
A linguagem, como meio de expressão e comunicação do resultado das operações intelectuais e afetivas atinge um nível de tal precisão entre os humanos que se tornou uma característica da espécie. Contudo, os símbolos que estruturam a linguagem escondem mensagens que escapam ao reconhecimento da consciência clara. Por isso os verbetes[6] são interpretações aproximadas do vocábulo dicionarizado, sempre aquém da extensão significativa do termo mental, o conceito resultante de uma percepção. É impossível descrever o que ocorre no recesso obscuro da subjetividade inconsciente onde as sensações se transformam em percepções representadas pelos vocábulos utilizados na linguagem comunicativa. Constrói-se assim a singularidade do humano inerente à capacidade de conhecer e de codificar os símbolos em uma linguagem que possibilita a comunicação entre os indivíduos. Idiomas diferentes recorrem a formas diversas para representar a imagem sonora ou gráfica das percepções humanas. Mas todos os idiomas codificam os mesmos símbolos arquetípicos universais que se manifestam nos temas oníricos e na transcrição artística de intuições reveladoras das profundezas insondáveis da subjetividade. Esse assunto encerra segredos desafiadores. No fundo, a integração essencial corpo e alma no ser humano, assim como na literatura a unidade da inspiração e do texto que lhe corresponde editado em livro, não é uma soma, nem a mistura que resulta num composto, constitui-se num todo inconsútil incompreensível para a razão pura. É impossível distinguir a intuição original de sua transcrição em signos linguísticos nos textos editados numa publicação. Escapa à mais acurada observação a passagem da intuição artística (puro pensamento coadjuvado pela emoção estética) inerente à subjetividade, e sua expressão editorial (seja literária, seja pictórica ou escultural) inerente à realidade objetiva.
Tudo que precedeu o marco zero do espaço e do tempo (o big-bang) é imensurável, portanto não é acessível ao conhecimento objetivo. Isso, porém, não autoriza, racionalmente, negar um Princípio metafísico, “absoluto” criador do Universo. Neste ponto da especulação insinua-se a ideia da Consciência Universal, absurdo racional (por ser irredutível às leis da razão), porém, necessária para justificar a ordem que presidiu a organização evolutiva da matéria desde sua origem até o próprio homem[7]. Mal começamos a filosofar, nos deparamos com a dualidade matéria e espírito que só se desfaz, existencialmente, numa vivência integrativa.
            Em “O verso indelével” o autor fala do verso escrito como o “médium de si mesmo”. Imagino que ele quis dizer que o verso escrito incorpora a intuição artística, a alma do texto versificado, e não há como separar o estro criativo, do texto que se corporifica numa forma editorial. Portanto, o texto é a alma dele mesmo  que se revela sem intermediários. O homem também é médium de si mesmo. Em sua realidade se manifesta a transcendência absoluta, sem a qual ele mesmo não subsistiria como ser contingente. Mas, se o exercício da consciência reflexiva denuncia uma transcendência, é por sua imanência que o homem manifesta a dimensão absoluta do seu ser. Ou seja, sendo a criatura humana ao mesmo tempo imanente e transcendente, o homem histórico é, todavia, o único avalista do Absoluto que nele se manifesta. Acreditando n´Ele, assume  a Transcendência Absoluta como uma realidade de fé. Esta é a raiz do sentimento religioso maquiado pelas igrejas em rituais simbólicos, cerimônias pontuais nas quais se pretende aproximar o fiel de um Ser Absoluto. Proposta nobre, existencialmente correta que, todavia é explorada de uma maneira equivocada. Ordinariamente, as Igrejas pelo menos na sua pedagogia primária reduzem a relação do  fiel  com seu Deus a um plano ético, desfigurando a natureza ontológica desse encontro. Aliás, considerando que a criação se continua no processo evolutivo é mais plausível falar-se de Deus como um Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo do qual o homem participa.  Uma vez que o cosmo e a vida não subsistem por si mesmos a  Criação não existiria separada do seu Criador. Assim, participando conscientemente do dinamismo criativo absoluto o homem desenvolve uma espiritualidade engajada no melhor desempenho da humanidade[8]. O indivíduo descomprometido dos rituais simbólicos das igrejas convencionais dispõe-se a vivenciar a inseparabilidade da imanência e da transcendência no seu vir a ser quotidiano, praticando a comunhão dos homens não apenas numa cerimônia religiosa, mas no contexto da convivência quotidiana de uma sociedade solidária.  Transcender-se é a essência da consciência reflexiva, mas no vir a ser existencial para realizar a intimidade Deus/homem este transcender será necessariamente vivenciado na convivência coletiva.  
A consciência reflexiva revela a intimidade espírito / matéria inexplicável, racionalmente.  Por ser absurda, esta intimidade exige do indivíduo a humildade necessária para reverenciar uma absurdidade racional, mediante um ato de fé ancorado na esperança de que no Absoluto, necessariamente, tudo se integra sem contradições.
   Everaldo Lopes.


[1] Qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.

[2] Impressão causada nos sentidos e que por via aferente é conduzida ao córtex cerebral.
[3] Conhecimento adquirido através dos sentidos.
[4] “O verso indelével” no blog Mundo Fantasmo de Bráulio Tavares.
[5] Conjunto de palavras  e frases escritas.
[6] Verbete- conjunto de acepções e exemplos  respeitantes a um vocábulo dicionarizado.
[7] Este tema foi abordado em “Devaneio especulativo I,II,III” neste blog.
[8] Conjunto de características específicas da natureza humana