A angústia existencial é
a mesma para materialistas e espiritualistas. Confiar na sobrevivência da alma imortal não
muda a ansiedade do ser consciente que se sabe biológica e existencialmente limitado.
O que faz a diferença é ser empolgado pelo amor que tudo envolve e eterniza,
transformando a existência numa abertura permanente para a plenitude pessoal contextualizada
num todo significativo. Viver este amor que tudo transforma tem mais força e
promove maior repercussão no equilíbrio psicobiológico do que ter o saber
especulativo que demonstra a necessidade lógica de uma transcendência absoluta.
A própria fé só é um refúgio espiritual se for um testemunho de amor. Conceber racionalmente
a necessidade lógica de um dinamismo absoluto eternamente criativo para
justificar a existência do cosmo e a do próprio ser consciente (ambas
contingentes) satisfaz a razão, mas essa conquista intelectual sem um suporte
amoroso não suprime a ansiedade diante do vir a ser existencial incerto. Se não
formos empolgados pelo amor, possuir este saber é como ter um depósito em moeda
estrangeira sem poder trocá-la por moeda corrente. Acabaríamos com uma fortuna nas
mãos sem poder “comprar” o de que precisássemos para abrigar-nos da angústia
despertada pelas fragilidades temporais.
O amor doação que necessitamos
experimentar para existir em plenitude é um dom e como tal não se pode adquiri-lo,
por mais disciplinado, inteligente e desejoso de possui-lo que alguém possa ser.
Pode-se, todavia, manter e cultivar a receptividade para uma experiência totalizante,
de cunho afetivo. Para consumar existencialmente o propósito de estabelecer uma
relação de amor com a transcendência absoluta é preciso sentir uma comoção espiritual
que não há como forjar senão pela mobilização das potencialidades afetivas inerentes
à condição humana; estas potencialidades, porém, são insensíveis aos argumentos
racionais. Ou seja: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.”[1] É preciso sentir-se
emocionalmente envolvido pela presença do absoluto transcendental cuja
existência encontra apoio racional em especulações metafísicas pertinentes a
partir da realidade conhecida[2]. Não basta, porém,
reconhecer este apoio intelectual. Para vivenciar a reciprocidade do amor universal
é preciso ser tocado por sentimentos que aproximem a criatura consciente, do seu
Criador. A iniciativa do convite é do Criador, mas a criatura precisa responder
a este convite reconhecendo humildemente sua precariedade existencial. A reação
receptiva do ser consciente pode ser inicialmente uma abertura racional, mas precisa
ser traduzida em sentimento, em amor pelo Criador e por suas criaturas. Muitos
de nós não ultrapassamos a etapa intelectual do saber esclarecido que aponta
para uma transcendência absoluta. É preciso amar e sentir-se amado pessoalmente
no vir a ser histórico pessoal a fim de que floresça a vivência do amor
universal. Não se tem como comandar este desfecho, mas todos sentem que ser
capaz de protagonizar o amor doação é fundamental para a realização da
experiência mística. A vivência intuitiva da unidade perfeita de toda realidade
visível e invisível predispõe ao encontro redentor na comunidade de
consciências inscrita na unidade do Espírito absoluto. A transição do
comportamento racional para o afetivo é um “salto quântico”[3], e não o resultado de
um processo[4]. Com seus recursos
psíquico afetivos o ser consciente pode apenas permanecer receptivo ao chamamento
do Absoluto intangível, e esperar o milagre que lhe há de proporcionar a vivência
interior de uma intimidade amorosa com as criaturas, e através delas com o
próprio Criador. Desta intimidade entre a criatura consciente e o Criador
resultaria a vivência de plenitude absoluta. Uma analogia ajuda a descrever a
paz infinita desta vivência. A comparação mais apropriada dessa experiência seria
com a de sentir-se invadido por uma luz que espalhasse a mesma intensidade
luminosa em todos os sentidos desfazendo as sombras e as contradições. Iluminação que corresponderia a uma vivência
de plenitude absoluta. Só este sentimento profundo confirma a entrega total resultante
do amor doação (caridade[5]). Com essa experiência
o ser consciente faz uma ponte subjetiva com a transcendência absoluta. Em
verdade a “entrega” implícita na doação é algo que acontece, não pode ser
ensinado ou aprendido. A capacidade do homem de ultrapassar-se sinaliza a
predisposição do seu ser biopsíquico para viver uma entrega incondicional,
transcendendo-se. Não obstante inalcançável mediante um esforço dirigido, o
amor doação pode ser despertado, de repente, por uma palavra, um gesto, uma
manifestação autêntica de solidariedade.
Enquanto
vive a precariedade do seu vir a ser temporal, o homem se esforça para manter
a serenidade que lhe é possível, na tentativa de despreocupar-se de
cuidados excessivos com sua integridade física e moral. Isto implica estar disposto a
enfrentar qualquer dificuldade, contando apenas com os recursos (razão,
afetividade e vontade) disponibilizados ao ser consciente objetivamente cônscio
dos limites inelásticos de ser no tempo. Esta disposição implica em não se
deixar abater pelas derrotas sofridas ao longo do vir a ser histórico,
alimentando o gosto de viver a despeito das adversidades, esperançoso de sempre
dar a volta por cima sem perder o foco do objetivo existencial colimado, acreditando
no próprio potencial criativo. Sem a ajuda mística do Criador este desempenho
existencial redunda numa sobrecarga intolerável. O equilíbrio existencial
precário só se transforma numa vivência de verdadeira paz mediante a
experiência de fé num absoluto transcendental que tudo engloba e em que tudo
faz sentido. No julgamento objetivo do materialista a experiência mística é
ingênua. Mas, como vimos há pouco, na visão crítica do espiritualista esta “ingenuidade
esclarecida” encontra respaldo em especulações metafísicas a partir da análise
do mundo conhecido. Tudo isso reflete a
luta interior inerente aos desafios da elaboração de uma postura espiritual que
alicerce a plenitude do ser consciente.
Everaldo Lopes
[1] Blaise Pascal (1612 –
1662) Matemático, Físico, Filósofo.
[2] Vide em “Devaneio especulativo I”: Se há uma ordem na construção do mundo e da vida, se
toda ordem pressupõe uma intenção, se não há intenção fora da esfera da
consciência, é forçoso que haja uma Consciência
Universal! Portanto, a lógica especulativa nos conduz a uma realidade
abstrata que a própria razão não consegue entender e descrever objetivamente.
Mas isto ainda não basta. A elaboração intelectual precisa transformar-se numa
forte convicção, consolidada no sentimento de comunhão profunda com a
“transcendência absoluta”, patenteada numa vivência da unidade criatura /
Criador.
[3] Que diz respeito a um sistema físico cujas
grandezas físicas observáveis assumem valores discretos, de tal modo que a
passagem de um determinado valor para outro ocorre de maneira descontínua,
segundo as leis da mecânica quântica
(Houaiss).
[4] Num sistema físico, a sucessão de estados
intermediários na passagem entre dois estados evolutivos.
[5] No vocabulário cristão, o
amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem. (Aurélio)