O comprometimento do indivíduo com a
ordem social define sua identidade existencial. Sobre cada um recai a responsabilidade
de contribuir para a harmonia do convívio na sociedade organizada. Nesta
perspectiva, sobressai o comportamento solidário indissociável do ideal
comunitário. A satisfação dos desejos individuais desvinculados dos interesses
grupais leva a ações equivocadas que deformam o processo evolutivo ensejando
consequências danosas para o homem e para o planeta. A Sociobiologia demonstra[1]
que a capacidade de organização social, característica de algumas espécies
animais (formigas, abelhas e homens) [2]
é vantajosa para a Evolução. Portanto, a prática solidária representa um progresso.
E quanto maior for a participação inteligente e solidária do indivíduo na
construção da coletividade humana melhor será o seu desempenho existencial.
O homem constrói sua existência sobre
o nada absoluto, um vazio original que
deverá ser simbolicamente preenchido. O
chão existencial do homem não é dado pela Natureza é construído, sim, por um
ato de fé nos valores assumidos em torno dos quais o indivíduo conduz o próprio
vir a ser. O nada absoluto sobre o qual se configura a existência[3]
se revela ao homem pela angústia existencial[4].
Pressionado por esta disposição afetiva nem sempre o homem assume comportamentos
construtivos. Ameaçado pela insegurança frequentemente administra mal sua
liberdade, reincidindo em comportamentos individualistas pobres de compromisso
social. De geração em geração a repetição destas condutas vem introduzindo
distorções sociais desagregadoras. E por conta destes descaminhos a humanidade
se debate, historicamente, em crises intermináveis. O descumprimento das
responsabilidades[5]
pessoais em relação ao ideal comunitário acumulou ao longo dos anos disparidades
econômicas no seio das sociedades organizadas, e entre as Nações. Ainda hoje, dispondo
de recursos científicos e tecnológicos suficientes para assegurar vida farta e
tranquila para todos os homens, predominam os procedimentos mesquinhos que
alimentam as desigualdades sociais. Embora a História registre exemplos dignificantes
de homens que testemunharam com suas vidas uma espiritualidade centrada na presença do “outro”, essência da
solidariedade. A questão é que para consolidar socialmente esta postura é
preciso estrutura-la política e economicamente no contexto social segundo o modelo
comunitário, o que não tem acontecido de forma expressiva. Para alcançar este
objetivo a competição selvagem e o acúmulo de bens materiais (parâmetros capitalistas preponderantes em
nossos dias), terão que evoluir, respectivamente, para a prática da cooperação,
e para a partilha destes mesmos bens, sob inspiração da solidariedade. O comportamento
solidário chave da organização social exemplar reforça no homem a pujança de
sua identidade existencial.
Salta à vista a unidade psicossocial
inerente ao desenvolvimento humano que envolve uma dimensão espiritual
inabordável racionalmente. O homem sabe que a realidade toda ultrapassa as
possibilidades racionais, embora o conhecimento alcançado sugira a existência
deste algo mais que excede a compreensão objetiva. Algo a que atribuímos o
caráter de realidade sem poder prova-lo objetivamente. Assim o ser racional
entra nos domínios da fé. Desta forma, “ter fé não é crer no que não se vê, mas
criar o que não se vê”[6].
Uma virtude que abre espaço na subjetividade humana para a experiência mística,
assimilando como verdade de fé uma transcendência espiritual absoluta, Deus que
se confunde com um Dinamismo Eternamente Criativo[7]. Crença na qual se fundamenta a religiosidade adulta
que transcende, no amor universal, a simples necessidade de crer em forças
sobrenaturais criadoras e protetoras, e que dá lugar à expectativa de uma
projeção transtemporal da existência pessoal histórica. Cabe aqui um comentário
complementar. O ideal humanístico comunitário visa ultrapassar a formalidade
comportamental, ritualística, em favor de uma prática solidária edificante. E
as propostas socioculturais originárias das Igrejas universais convergem para a
prática da organização comunitária. Neste sentido as grandes Religiões são
existencial e socialmente estruturantes quando praticadas num nível ontológico
e não apenas ético. Desta afirmação deduz-se a importância das religiões no
processo de humanização. Lamentavelmente, porém, com frequência, a pregação de
muitos pastores de almas insinua ou é interpretada como apelo à prática de uma ética
autoritária nas relações entre o homem impotente diante dos seus limites, e
Deus todo poderoso. Orientação, aliás, de que está impregnada a infância da
espiritualidade religiosa[8],
mas sobre a qual não deve recair a catequese adulta, porque as relações éticas (negociáveis)
precisam evoluir na maturidade espiritual para o amor caridade. Na verdade, sabemos que só a fé adulta
embasada pelo amor incondicional a Deus e aos homens promove a eficácia na
prática dos valores universais (Verdade, Justiça e Bondade) que fundamentam as
decisões pessoais, dignificando a pessoa humana. Aliás, não há amor sem fé, mas
o amor é a virtude maior. E por isso, amando, exercitamos a suprema ventura de
crer sem restrições. “Não é preciso crer nas cousas, basta ama-las, / Sendo que
amar é muito mais que crer...”[9]
Na penumbra do intervalo entre a razão e a fé, as especulações transcendentais de
natureza intelectual não são suficientes para anular o desassossego existencial.
É preciso crer verdadeiramente para esperar sem subterfúgio um epílogo apoteótico
transtemporal da existência pessoal. Há que desenvolver o dom da fé que todos
trazemos de origem, mas nem sempre cultivamos. Só uma crença arraigada confere
o caráter de realidade à cosmogonia espiritualista monista que prolonga a existência
pessoal no além do horizonte temporal. Assim,
a fé consolida a presença espiritual na constituição da identidade existencial,
banindo o desespero do homem diante de sua finitude biológica. Nesta
perspectiva, é que alguém já disse que “A
existência não é uma experiência espiritual do homem, mas uma experiência
humana do Espírito.”
Everaldo
Lopes
[1] Estudos
de Edward Wilson da Universidade de Harvard. “As espécies sociais totalizam apenas
3% das que povoam a Terra, mas representam 50% da biomassa “.
[2] Vale a
pena salientar que a sociabilidade das formigas e abelhas é determinada
instintivamente, enquanto a do homem é livremente construída e assumida.
[3] Modo de
ser próprio do homem, resultante do exercício responsável da liberdade
consciente.
[4] Segundo
Heiddeger, a disposição afetiva pela qual se revela ao homem o nada absoluto sobre o qual se configura a
existência.(Houaiss).
[5]
A prática da cooperação e da partilha
[6]
Miguel de Unamuno. Escritor espanhol (1864 – 1936)
[7]
Falaremos deste conceito em breve num texto dedicado à minha postura
espiritualista.
[8] Desenvolvida
em torno da necessidade humana de crer em forças sobrenaturais criadoras e
protetoras com as quais o homem pode negociar sua própria salvação, ante a
consciência da finitude biológica..
[9]
Raul de Leoni em “Do meu Evangelho”