segunda-feira, 2 de julho de 2012

Construção da identidade existencial


O comprometimento do indivíduo com a ordem social define sua identidade existencial. Sobre cada um recai a responsabilidade de contribuir para a harmonia do convívio na sociedade organizada. Nesta perspectiva, sobressai o comportamento solidário indissociável do ideal comunitário. A satisfação dos desejos individuais desvinculados dos interesses grupais leva a ações equivocadas que deformam o processo evolutivo ensejando consequências danosas para o homem e para o planeta. A Sociobiologia demonstra[1] que a capacidade de organização social, característica de algumas espécies animais (formigas, abelhas e homens) [2] é vantajosa para a Evolução. Portanto, a prática solidária representa um progresso. E quanto maior for a participação inteligente e solidária do indivíduo na construção da coletividade humana melhor será o seu desempenho existencial.
O homem constrói sua existência sobre o nada absoluto,  um vazio original que deverá ser simbolicamente preenchido.  O chão existencial do homem não é dado pela Natureza é construído, sim, por um ato de fé nos valores assumidos em torno dos quais o indivíduo conduz o próprio vir a ser. O nada absoluto sobre o qual se configura a existência[3] se revela ao homem pela angústia existencial[4]. Pressionado por esta disposição afetiva nem sempre o homem assume comportamentos construtivos. Ameaçado pela insegurança frequentemente administra mal sua liberdade, reincidindo em comportamentos individualistas pobres de compromisso social. De geração em geração a repetição destas condutas vem introduzindo distorções sociais desagregadoras. E por conta destes descaminhos a humanidade se debate, historicamente, em crises intermináveis. O descumprimento das responsabilidades[5] pessoais em relação ao ideal comunitário acumulou ao longo dos anos disparidades econômicas no seio das sociedades organizadas, e entre as Nações. Ainda hoje, dispondo de recursos científicos e tecnológicos suficientes para assegurar vida farta e tranquila para todos os homens, predominam os procedimentos mesquinhos que alimentam as desigualdades sociais. Embora a História registre exemplos dignificantes de homens que testemunharam com suas vidas uma espiritualidade centrada na presença do “outro”, essência da solidariedade. A questão é que para consolidar socialmente esta postura é preciso estrutura-la política e economicamente no contexto social segundo o modelo comunitário, o que não tem acontecido de forma expressiva. Para alcançar este objetivo a competição selvagem e o acúmulo de bens materiais  (parâmetros capitalistas preponderantes em nossos dias), terão que evoluir, respectivamente, para a prática da cooperação, e para a partilha destes mesmos bens, sob inspiração da solidariedade. O comportamento solidário chave da organização social exemplar reforça no homem a pujança de sua identidade existencial.
Salta à vista a unidade psicossocial inerente ao desenvolvimento humano que envolve uma dimensão espiritual inabordável racionalmente. O homem sabe que a realidade toda ultrapassa as possibilidades racionais, embora o conhecimento alcançado sugira a existência deste algo mais que excede a compreensão objetiva. Algo a que atribuímos o caráter de realidade sem poder prova-lo objetivamente. Assim o ser racional entra nos domínios da fé. Desta forma, “ter fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê”[6]. Uma virtude que abre espaço na subjetividade humana para a experiência mística, assimilando como verdade de fé uma transcendência espiritual absoluta, Deus que se confunde com um Dinamismo Eternamente Criativo[7].  Crença na qual se fundamenta a religiosidade adulta que transcende, no amor universal, a simples necessidade de crer em forças sobrenaturais criadoras e protetoras, e que dá lugar à expectativa de uma projeção transtemporal da existência pessoal histórica. Cabe aqui um comentário complementar. O ideal humanístico comunitário visa ultrapassar a formalidade comportamental, ritualística, em favor de uma prática solidária edificante. E as propostas socioculturais originárias das Igrejas universais convergem para a prática da organização comunitária. Neste sentido as grandes Religiões são existencial e socialmente estruturantes quando praticadas num nível ontológico e não apenas ético. Desta afirmação deduz-se a importância das religiões no processo de humanização. Lamentavelmente, porém, com frequência, a pregação de muitos pastores de almas insinua ou é interpretada como apelo à prática de uma ética autoritária nas relações entre o homem impotente diante dos seus limites, e Deus todo poderoso. Orientação, aliás, de que está impregnada a infância da espiritualidade religiosa[8], mas sobre a qual não deve recair a catequese adulta, porque as relações éticas (negociáveis) precisam evoluir na maturidade espiritual para o amor caridade.  Na verdade, sabemos que só a fé adulta embasada pelo amor incondicional a Deus e aos homens promove a eficácia na prática dos valores universais (Verdade, Justiça e Bondade) que fundamentam as decisões pessoais, dignificando a pessoa humana. Aliás, não há amor sem fé, mas o amor é a virtude maior. E por isso, amando, exercitamos a suprema ventura de crer sem restrições. “Não é preciso crer nas cousas, basta ama-las, / Sendo que amar é muito mais que crer...”[9] Na penumbra do intervalo entre a razão e a fé, as especulações transcendentais de natureza intelectual não são suficientes para anular o desassossego existencial. É preciso crer verdadeiramente para esperar sem subterfúgio um epílogo apoteótico transtemporal da existência pessoal. Há que desenvolver o dom da fé que todos trazemos de origem, mas nem sempre cultivamos. Só uma crença arraigada confere o caráter de realidade à cosmogonia espiritualista monista que prolonga a existência pessoal no além do horizonte temporal.  Assim, a fé consolida a presença espiritual na constituição da identidade existencial, banindo o desespero do homem diante de sua finitude biológica. Nesta perspectiva, é que alguém já disse que “A existência não é uma experiência espiritual do homem, mas uma experiência humana do Espírito.”   
                                          Everaldo Lopes                                                                                                               


[1] Estudos de Edward Wilson da Universidade de Harvard. “As espécies sociais totalizam apenas 3% das que povoam a Terra, mas representam 50% da biomassa “.
[2] Vale a pena salientar que a sociabilidade das formigas e abelhas é determinada instintivamente, enquanto a do homem é livremente construída e assumida.
[3] Modo de ser próprio do homem, resultante do exercício responsável da liberdade consciente.
[4] Segundo Heiddeger, a disposição afetiva pela qual se revela ao homem  o nada absoluto sobre o qual se configura a existência.(Houaiss).
[5] A prática da cooperação e da partilha
[6] Miguel de Unamuno. Escritor espanhol (1864 – 1936)
[7] Falaremos deste conceito em breve num texto dedicado à minha postura espiritualista.
[8] Desenvolvida em torno da necessidade humana de crer em forças sobrenaturais criadoras e protetoras com as quais o homem pode negociar sua própria salvação, ante a consciência da finitude biológica..
[9] Raul de Leoni em “Do meu Evangelho”