quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A vez da Ética Democrática



A capacidade de pensar logicamente permitiu ao homem um domínio cada vez mais amplo sobre a Natureza. Esta aptidão tem sido a Pedra Filosofal para as adaptações indispensáveis à sobrevivência humana, desde os primórdios pré-históricos. O pensamento afoito está sempre a ampliar o horizonte da vida inteligente na Terra... Assim caminha o Projeto Humano. Neste caminhar ocorreram muitas mudanças sociais, políticas e religiosas. No fluxo desses acontecimentos alguns registros históricos denunciam a origem da atual crise de valores[1].
 É sabido que o homem constrói sua existência em torno de valores. A prática desses valores define a cultura[2] de uma sociedade.  Na Idade Média, os valores eram canônicos, impostos como dogmas de fé contextualizados numa sociedade teocêntrica. No século XVIII o Racionalismo colocou o homem no centro do processo histórico, lançando o fundamento de uma sociedade antropocêntrica. Com o advento do Cientificismo[3], o conhecimento conquistado através do método científico ganhou prestígio. Os dogmas de fé (valores canônicos[4]) foram perdendo espaço, enquanto crescia a esperança de fundamentar os valores da sociedade emergente na razão e no consenso. Através das Ciências que prometiam resolver todos os problemas humanos, esperava-se que fosse possível criar uma ética democrática apoiada na prática da consciência responsável.  Seria o apogeu do Iluminismo, enterrando, definitivamente, a tradição fundamentalista[6].
Ao mesmo tempo, sem qualquer planejamento prévio, a fortuna, em dinheiro, acumulada pelos burgueses (comerciantes florescentes) e as invenções e descobertas devidas a mentes privilegiadas, forjaram as condições para transformar a economia feudal numa economia industrial. O capital dos burgueses emergentes financiou a construção das máquinas projetadas pela criatividade de homens inventivos. Utilizando o trabalho das máquinas, o comerciante virou empresário experto na habilidade de agregar valor econômico às matérias primas extraídas da Natureza, e de administrar o custo de fabricação dos produtos industrializados. A produção industrial em série ensejou lucro maior do que o auferido com a comercialização de produtos artesanais. Daí por diante, o comércio assumiu o caráter de mercado livre sob o império da lei da oferta e da procura. Nascia assim o capitalismo com novas propostas para as relações entre o dinheiro e o trabalho, desenhando um outro perfil para a relação “senhor” e “escravo” vigente no período medieval. 
A Aristocracia empobrecida por guerras religiosas e ideológicas, corroída por privilégios desnaturantes, já não tinha condição de sobreviver como sistema político, pois, era incapaz de satisfazer as necessidades de indivíduos cada vez mais exigentes de liberdade. Urgia nova forma de Governo que atendesse à aspiração de uma sociedade mais flexível, ávida de progresso, desejosa de conduzir o próprio destino. O ideal libertário propunha que o poder de ungir a autoridade governamental caberia ao Povo.  De conquista em conquista, o poder político, até então conferido por Deus, diretamente, ao Rei passou a ser exercido por representantes da sociedade eleitos pelos membros do grupo. Agora, a escolha da autoridade política administrativa se faria através do voto livre, sendo eleitos aqueles que merecessem a confiança da maioria absoluta dos votantes. Velhos conceitos democráticos foram redesenhados e codificados para ensejar uma forma de governo consentânea com a sociedade moderna, marcada pela liberdade individual. Assim renasceu, historicamente, a Democracia que, nos nossos dias, é reconhecida como modelo de organização social e política.
Mas não obstante o imenso progresso tecnológico, as promessas da Ciência todo poderosa não se cumpriram. A razão definiu os “itens” fundamentais da sociedade democrática, mas para transformá-los em valores efetivos seria necessário o consenso dos indivíduos envolvidos, e isto a razão (o pensamento) não podia fazer sozinha. O consenso depende de variáveis como o sentimento de aceitação, e a disposição (vontade) do indivíduo de aderir aos princípios que devem reger sua conduta. Só a convergência destas variáveis polarizariam a organização social democrática e solidária mediante a participação de todos... sendo a solidariedade[7] o estofo existencial da Democracia. Idealmente, portanto, a adesão aos valores democráticos de igualdade, fraternidade e liberdade teria que ser um gesto espontâneo de indivíduos predispostos a se organizarem em comunidade... A prática dos valores, antes imposta mediante a ameaça da “condenação eterna”, agora deveria ser o resultado de um compromisso consciente do sujeito social com a consagração do “Bem comum”.  A ambição humana sempre foi um obstáculo a esse gesto magnânimo. Por isso, não obstante a intenção do autor de “A Riqueza das Nações”(teórico do capitalismo), de promover o bem estar de todos,  na prática, o sistema da economia de mercado baseada na competição sem compromisso com a práxis solidária tornou-se um instrumento de exploração. Ora, a ordem social está intimamente ligada às relações econômicas, e estas podem induzir influências decisivas na prática do regime político. Na briga entre a hegemonia do capital ou do trabalho venceu o primeiro, promovendo o acúmulo cada vez maior de bens materiais nas mãos dos donos dos recursos monetários exigidos para a construção e manutenção da indústria nascente. Disso resultou finalmente um número crescente de excluídos da riqueza circulante. Acentuou-se a distância entre ricos e pobres, (re)configurando-se o contorno do relacionamento entre “senhores” e “escravos”, representados, agora, pelos “capitalistas” e “operários”, respectivamente.
            Certamente, a crueldade que se imputa, hoje, ao sistema capitalista teria sido evitada se a prática do regime tivesse sido guiada pelo “respeito à dignidade da pessoa do outro”...   Dessa forma, as relações entre patrões e empregados seriam mais justas quer no plano econômico, quer no nível dos direitos políticos. Mas na ausência dessa orientação, a competição econômica se tornou selvagem. Para baratear o custo da produção, a remuneração do trabalho operário foi sub dimensionada, acumulando-se injustiças que deram lugar a diferenças marcantes do poder aquisitivo das pessoas e, também, do nível de bem estar  e de informação.  
Os desmandos humanos nas relações sociais e o desrespeito ao ambiente acabaram afetando a sobrevivência no planeta. Tudo em função do “lucro”. Isto é, exatamente, o que está acontecendo hoje. O modo cobiçoso de lidar com os bens materiais (economia) comprometeu as relações políticas, deformando, na prática, a própria Democracia. Lucrar, levar vantagem a qualquer preço passou a ser um traço cultural (nunca declarado como um preceito, mas presente nas atitudes e ações), deslocando a competição leal em função da competência, e aviltando o processo democrático numa verdadeira subversão de valores. Fica entalada na garganta a indignação dos que percebem as porcas manobras eleitoreiras, a mixórdia das “composições” que campeiam nas Casas Legislativas, e o tráfico de influências, em detrimento da coletividade. Sem unidade ideológica, desinformada e carente de instrumentos eficazes de combate às distorções criminosas, a grande massa de contribuintes, sem saber como reagir, alimenta com os impostos que paga a incompetência e a corrupção dos detentores do Poder, que dilapidam os recursos financeiros públicos.
            Resumindo, os valores canônicos foram varridos, liberando o homem, do temor da condenação eterna como castigo pela negligência ética. Esta situação abriu caminho para as distorções do comportamento humano, inspiradas pela cobiça. Na ausência dos “valores sagrados”, uma ética do consenso seria o caminho mais salutar, desde que fosse praticada por cada homem no contexto de uma convivência solidaria. Contudo, esta bandeira soa ingênua, considerando a cupidez do comportamento humano, demonstrada através dos séculos... Em razão dessa tendência ambiciosa, a aplicação do sistema de Livre Mercado introduziu enormes deformações na distribuição de rendas... O capital sedento de lucro não teve pejo de agredir o direito do “outro”, e a própria Natureza... desvirtuando as relações humanas e pondo em risco o Planeta.
Dentro desta análise despretensiosa fica patente que a crise do mundo atual é, sobretudo, resultante da ausência de uma prática ética humanística compatível com os ideais comunitários que, em benefício do próprio homem, preservasse o equilíbrio das relações sociais, e o meio ambiente. Mas para alcançar este objetivo, democraticamente, seria indispensável a colaboração solidária de todos mediante um compromisso ao qual resiste o hiper-individualismo da pós-modernidade.
 O desprestígio da Ética Teocêntrica, e o fracasso, ou demora na construção e assimilação de uma ética laica baseada na razão e no consenso, está afundando a sociedade num comportamento permissivo, incompatível com o  respeito aos Direitos Humanos declarados pela ONU desde 1948.
A experiência de alguns povos nos últimos 30 anos demonstrou que o caminho para o Desenvolvimento Humano é a Educação intelectual e moral da criança e do adulto. Nos termos de nossa realidade atual, para colher os frutos de uma educação integral é preciso que prevaleça a decisão política do Estado, de investir maciçamente na Educação Continuada de qualidade. No rastro desse esforço, vislumbramos a consolidação e execução das determinações da Carta Magna da Humanidade, não apenas como um dever imposto, mas como extensão do sentimento de solidariedade latente na condição humana. Este seria o fundamento de um estado cultural evolutivo  improvável a curto e médio prazos, mas indispensável para a realização da humanidade plena.
A tecnologia tornou possíveis feitos inimagináveis no passado não muito distante. A informatização dos meios de comunicação pode ser considerada uma verdadeira revolução, mas não reflete uma mudança social. O futuro da Humanidade, o sonho democrático, está nas mãos do próprio homem. O poder de penetração da internet, e a rapidez na difusão das informações podem ser trunfos valiosos na luta por uma humanidade solidária. Mas este poder é apenas um instrumento de comunicação ainda restrito a um pequeno número de usuários.  Antes de tudo é necessário que o conteúdo da informação, e seus interlocutores estejam afinados pelo mesmo diapasão da solidariedade humana, cuja prática requer de cada um de nós o esforço consciente e responsável no sentido de disciplinar o egoísmo ambicioso!...


[1] Conjunto de princípios ou normas que, por corporificar um ideal de perfeição ou plenitude moral, deve ser buscado pelos seres humanos. Dic. de Houaiss

[2]Conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social     forma ou etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou período específico); civilização. Dic. de Houaiss

[3]  Atitude segundo a qual os métodos científicos devem ser estendidos sem exceção a todos os domínios da vida humana.
[4] De acordo com os cânones, com as regras eclesiásticas, os dogmas da Igreja.

[6] Observância rigorosa à ortodoxia de doutrinas religiosas antigas. Dic. Aurélio Sec.XXI
[7]  Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s): solidariedade de classe. Dic. Aurélio sec.XXI