É presumível o que ocorreu no
percurso da Evolução. Recuando no tempo, podemos imaginar que houve um período
no qual a consciência reflexiva latente na organização biológica despertou
lentamente. Foram momentos de grande comoção para o homem recém-egresso do seu
estado anterior de inconsciência de si mesmo. Abriu-se, então, um “espaço
virtual” constitutivo da subjetividade do sujeito consciente reflexivo na qual o
indivíduo reconhece como seus, pensamentos, sentimentos, emoções que despontam nas
relações consigo mesmo e com sua circunstância – o mundo. Experiência
absolutamente inédita que distancia o homem, existencialmente, da Natureza. Não
é à toa que a Bíblia fala da “queda do homem”. Esta queda representou a sua separação
virtual da Natureza, decorrência do exercício da consciência reflexiva,
necessariamente autorreferente, que exige um distanciamento subjetivo entre o
eu pensante e o mundo, inclusive a estrutura biológica na qual se manifesta o
sujeito da consciência. Na história da Evolução, começa com o homem a
possibilidade de o comportamento individual escapar do determinismo instintivo
em favor do livre arbítrio. Sobrecarregado com a dignidade de ser livre e responsável,
sem amarras, num mundo desconhecido e hostil o homem se sentiu isolado e se deu
conta da própria fragilidade inquietante, juntamente com o desejo de conquistar
paz e segurança. Com essa descoberta se impôs o dever de escolher bem entre as
alternativas que se apresentam no seu vir a ser, conforme critérios éticos
soberanos, tendo em vista a organização social solidária, tributária da
comunidade humana.
Ao
despertar da consciência reflexiva, num primeiro contato com o mundo, o homem percebeu obscuramente a realidade como um “todo”,
e se deteve nos seus aspectos segmentares e pontuais de interesses mais
imediatos inerentes á sobrevivência. Depois, na medida em que foi ampliando o seu
campo da percepção, estabeleceu as relações lógicas entre os elementos
conhecidos da condição humana e de sua circunstância, tornando-se mais clara a necessidade
de contextualizar-se no “todo” já prefigurado vagamente. Todo esse
processo envolve a realidade biopsíquica
humana atrelando-a a um absoluto (criador) que não é acessível à experiência
sensorial. Depreende-se, portanto, que a ideia deste absoluto transcendental assimilada
pela consciência se estruturou intuitivamente a partir do primeiro contato
entre a subjetividade incipiente e o
mundo misterioso ao redor. Certamente,
foi nesse primeiro momento que se instalou a vivência numinosa[1],
um “sentimento de fascinação, de terror e de aniquilamento” fundamento
existencial da prática religiosa que perdura ainda hoje. Todavia, a razão curiosa,
estimulada pela necessidade de resolver os problemas de sobrevivência continuou
a esquadrinhar a realidade em busca de associações lógicas. O conhecimento objetivo
é crucial para a solução de questões práticas inerentes ao vir a ser humano,
mas não resolve a questão da origem e do fim de tudo que existe, curiosidade
permanente no ser consciente.
Na verdade, enquanto ser temporal, o
homem não pode dissociar-se das realidades objetivas conhecidas a partir de uma
abordagem fenomenológica que enfatiza a vinculação entre causa e efeito. Vivendo
a contingência de criaturas conscientes ficamos submetidos a um vir a ser em
que se misturam a experiência dos sentidos, sensações físicas, e a aspiração de
transcender a dicotomia consciência / mundo mediante uma abstração metafísica
totalizante. A conjugação dessas tendências, aparentemente antitéticas, (a
sensibilidade libidinosa fragmentária, e o ideal de uma totalidade metafisica)
é o grande desafio que se coloca diante
da condição humana[2].
Nessa moldura enquadra-se a relação temporal consciência / mundo, na qual vivemos as experiências sensoriais,
carentes, porém, de uma vivência totalizante que transcenda a consciência e o
mundo. O próprio homem se define no esforço de elaborar a síntese dessas inclinações.
Tudo isso se passa na subjetividade misteriosa cuja natureza intrínseca a
ciência não sabe explicar, mas, seguramente transcende o tempo e o espaço
configurando a dimensão espiritual que por não se poder objetivar escapa a uma análise
fenomênica. Resta-nos prosseguir especulando sobre o destino da alma imortal, na
qual se configura a consciência pessoal, que se pode entender como um aspecto
localizado da Consciência Universal. Insinua-se, assim, a questão do destino da
consciência pessoal depois da morte biológica. O que será feito da consciência pessoal que se identifica com a
alma humana, ao desvencilhar-se da complexidade biológica através da qual o espírito
se manifesta? É evidente que após a morte todas as necessidades estão eliminadas.
Não havendo necessidades, obviamente, não há desejos a satisfazer, e a
plenitude do “ser pessoal” será total. O Espírito liberto dos seus tradutores
biológicos, finitos, goza em plenitude as virtudes que lhe são próprias: imortalidade,
liberdade, paz, percepção instantânea de tudo que existe na unidade do absoluto
transcendental. Mal podemos especular sobre essa beatitude que ultrapassa os
limites de uma experiência temporal. É impossível concebê-la enquanto a
consciência está presa à materialidade contingente do servomecanismo psicobiológico
no qual se manifesta a transcendência indemonstrável. Nem ao menos podemos imaginá-la!!!
Daí ser insólita a vivência mística que, por definição reflete a dimensão
atemporal, absoluta, do homem, descrita,
porém, como real, pelos grandes místicos, ainda nesta vida. Acredito nos
testemunhos que eles nos legaram e seria inútil procurar argumentos racionais para
contradizê-los. Do ponto de vista estritamente
racional, nada se pode afirmar ou negar com certeza sobre o absoluto transcendental.
O destino da consciência pessoal marcada pela necessidade de transcender-se ao
infinito é integrar-se na unidade absoluta que ultrapassa os limites da
existência histórica. Neste ponto se
configura a questão da conservação da identidade pessoal após a morte. Postulamos
que nesse “depois” o eu pessoal ganha seu significado definitivo, transfigurando-se
no eu comunitário que, obviamente, não existe separado, mas não perde a
identidade pessoal transfigurado,
substancialmente, ao dimensionar-se na complexidade do concerto universal de
todas as consciências unidas na harmonia da transcendência absoluta – o Espírito eterno.
Diria, que a alma humana, após a morte, se plenifica no Espírito eterno do qual,
aliás, nunca se separou. Assumo que a consciência pessoal se identifica na comunidade de todas as consciências como o eu comunitário
definido em relação a todos os demais eus; um não existe sem os outros, e
nenhum sente necessidade de distinguir-se na intimidade infinita da unidade
absoluta do Espírito Eterno. Quando a sombra animal[3]
do homem, finalmente se anula com a morte biológica, a consciência pessoal alcança
a completa transfiguração no eu comunitário, integrando-se, finalmente, no
Absoluto original pela comunhão de todas as consciências. .Depois da morte biológica a
consciência pessoal (a alma humana) vive a plenitude da Eternidade.
Everaldo Lopes
[1]
Segundo Rudolf Otto (1869-1927), teólogo
e filósofo alemão, o sentimento único vivido na experiência religiosa, a
experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o
aniquilamento.
[2]
Ser consciente, livre e responsável.
[3]
Remanescente da carga instintiva de sua ancestralidade animal remota.