quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A consciência pessoal e a eternidade

É presumível o que ocorreu no percurso da Evolução. Recuando no tempo, podemos imaginar que houve um período no qual a consciência reflexiva latente na organização biológica despertou lentamente. Foram momentos de grande comoção para o homem recém-egresso do seu estado anterior de inconsciência de si mesmo. Abriu-se, então, um “espaço virtual” constitutivo da subjetividade do sujeito consciente reflexivo na qual o indivíduo reconhece como seus, pensamentos, sentimentos, emoções que despontam nas relações consigo mesmo e com sua circunstância – o mundo. Experiência absolutamente inédita que distancia o homem, existencialmente, da Natureza. Não é à toa que a Bíblia fala da “queda do homem”. Esta queda representou a sua separação virtual da Natureza, decorrência do exercício da consciência reflexiva, necessariamente autorreferente, que exige um distanciamento subjetivo entre o eu pensante e o mundo, inclusive a estrutura biológica na qual se manifesta o sujeito da consciência. Na história da Evolução, começa com o homem a possibilidade de o comportamento individual escapar do determinismo instintivo em favor do livre arbítrio. Sobrecarregado com a dignidade de ser livre e responsável, sem amarras, num mundo desconhecido e hostil o homem se sentiu isolado e se deu conta da própria fragilidade inquietante, juntamente com o desejo de conquistar paz e segurança. Com essa descoberta se impôs o dever de escolher bem entre as alternativas que se apresentam no seu vir a ser, conforme critérios éticos soberanos, tendo em vista a organização social solidária, tributária da comunidade humana.
Ao  despertar da consciência reflexiva, num primeiro  contato com o mundo, o homem  percebeu obscuramente a realidade como um “todo”, e se deteve nos seus aspectos segmentares e pontuais de interesses mais imediatos inerentes á sobrevivência. Depois, na medida em que foi ampliando o seu campo da percepção, estabeleceu as relações lógicas entre os elementos conhecidos da condição humana e de sua circunstância, tornando-se mais clara a necessidade de contextualizar-se no “todo” já prefigurado vagamente. Todo esse processo  envolve a realidade biopsíquica humana atrelando-a a um absoluto (criador) que não é acessível à experiência sensorial. Depreende-se, portanto, que a ideia deste absoluto transcendental assimilada pela consciência se estruturou intuitivamente a partir do primeiro contato entre a subjetividade  incipiente e o mundo misterioso ao redor.  Certamente, foi nesse primeiro momento que se instalou a vivência  numinosa[1], um “sentimento de fascinação, de terror e de aniquilamento” fundamento existencial da prática religiosa que perdura ainda hoje. Todavia, a razão curiosa, estimulada pela necessidade de resolver os problemas de sobrevivência continuou a esquadrinhar a realidade em busca de associações lógicas. O conhecimento objetivo é crucial para a solução de questões práticas inerentes ao vir a ser humano, mas não resolve a questão da origem e do fim de tudo que existe, curiosidade permanente no ser consciente.
Na verdade, enquanto ser temporal, o homem não pode dissociar-se das realidades objetivas conhecidas a partir de uma abordagem fenomenológica que enfatiza a vinculação entre causa e efeito. Vivendo a contingência de criaturas conscientes ficamos submetidos a um vir a ser em que se misturam a experiência dos sentidos, sensações físicas, e a aspiração de transcender a dicotomia consciência / mundo mediante uma abstração metafísica totalizante. A conjugação dessas tendências, aparentemente antitéticas, (a sensibilidade libidinosa fragmentária, e o ideal de uma totalidade metafisica) é o grande desafio que se  coloca diante da condição humana[2]. Nessa moldura enquadra-se a relação temporal consciência  / mundo, na qual vivemos as experiências sensoriais, carentes, porém, de uma vivência totalizante que transcenda a consciência e o mundo. O próprio homem se define no esforço de elaborar a síntese dessas inclinações. Tudo isso se passa na subjetividade misteriosa cuja natureza intrínseca a ciência não sabe explicar, mas, seguramente transcende o tempo e o espaço configurando a dimensão espiritual que por não se poder objetivar escapa a uma análise fenomênica. Resta-nos prosseguir especulando sobre o destino da alma imortal, na qual se configura a consciência pessoal, que se pode entender como um aspecto localizado da Consciência Universal. Insinua-se, assim, a questão do destino da consciência pessoal depois da morte biológica. O que será feito  da consciência pessoal que se identifica com a alma humana, ao desvencilhar-se da complexidade biológica através da qual o espírito se manifesta? É evidente que após a morte todas as necessidades estão eliminadas. Não havendo necessidades, obviamente, não há desejos a satisfazer, e a plenitude do “ser pessoal” será total. O Espírito liberto dos seus tradutores biológicos, finitos, goza em plenitude as virtudes que lhe são próprias: imortalidade, liberdade, paz, percepção instantânea de tudo que existe na unidade do absoluto transcendental. Mal podemos especular sobre essa beatitude que ultrapassa os limites de uma experiência temporal. É impossível concebê-la enquanto a consciência está presa à materialidade contingente do servomecanismo psicobiológico no qual se manifesta a transcendência indemonstrável. Nem ao menos podemos imaginá-la!!! Daí ser insólita a vivência mística que, por definição reflete a dimensão atemporal, absoluta, do homem,  descrita, porém, como real, pelos grandes místicos, ainda nesta vida. Acredito nos testemunhos que eles nos legaram e seria inútil procurar argumentos racionais para contradizê-los. Do ponto de vista estritamente  racional, nada se pode afirmar ou negar com certeza sobre o absoluto transcendental.
O destino da consciência pessoal marcada  pela necessidade de transcender-se ao infinito é integrar-se na unidade absoluta que ultrapassa os limites da existência histórica. Neste ponto se configura a questão da conservação da identidade pessoal após a morte. Postulamos que nesse “depois” o eu pessoal ganha seu significado definitivo, transfigurando-se no eu comunitário que, obviamente, não existe separado, mas não perde a identidade pessoal  transfigurado, substancialmente, ao dimensionar-se na complexidade do concerto universal de todas as consciências unidas na harmonia  da transcendência absoluta – o Espírito eterno. Diria, que a alma humana, após a morte, se plenifica no Espírito eterno do qual, aliás, nunca se separou. Assumo que a consciência pessoal se identifica na comunidade  de todas as consciências como o eu comunitário definido em relação a todos os demais eus; um não existe sem os outros, e nenhum sente necessidade de distinguir-se na intimidade infinita da unidade absoluta do Espírito Eterno. Quando a sombra animal[3] do homem, finalmente se anula com a morte biológica, a consciência pessoal alcança a completa transfiguração no eu comunitário, integrando-se, finalmente, no Absoluto original pela comunhão de todas as consciências. .Depois da morte biológica a consciência pessoal (a alma humana) vive a plenitude da Eternidade.
 Everaldo Lopes 







[1]  Segundo Rudolf Otto (1869-1927), teólogo e filósofo alemão, o sentimento único vivido na experiência religiosa, a experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o aniquilamento. 
[2] Ser consciente, livre e responsável.
[3] Remanescente da carga instintiva de sua ancestralidade animal remota.