Exorbitando
as funções da libido[1] a
luxúria é um pecado sedutor e instigante. É tal a sua força aliciante que pode
transformar homens em Faunos[2] potenciais
com pretensões ético-sociais. Historicamente
“a luxúria é uma vício atribuído à linhagem masculina.” Não exclui as mulheres,
porém os exemplos presentes nos textos escritos são sempre masculinos; talvez pelo
modo de ser peculiar do homem e da mulher. A mulher, mesmo sem buscar
intencionalmente, desperta a cupidez masculina. Por suas características
estéticas a mulher transuda sensualidade muitas vezes sem se dar conta disso.
Na atitude passiva feminina o desejo sensual, apenas presumido, se expõe menos
à observação de terceiros. Enquanto o homem precisa impor-se de alguma forma para
chamar a atenção da mulher com o objetivo específico de seduzi-la. No comportamento
ativo masculino a intenção libidinosa fica embutida, porém é muito previsível. Tudo isso mostra a maior
visibilidade da libidinosidade masculina, razão porque a luxúria está
literariamente mais associada ao homem.
Como
todos sabem, luxúria é sinônimo de lascívia. Essa disposição sensual desmedida sempre
encontra forte resistência de ordem ética, no íntimo das pessoas com caráter
bem formado. Vigilantes, estas pessoas se impõem controlar a inclinação
voluptuosa evitando a intemperança
sexual ou a libertinagem. A mulher é menos afetada por conflitos dessa ordem
porque, culturalmente, não é dela a iniciativa; inicialmente, sua participação na
corte amorosa consiste em aceitar ou resistir à investida masculina, assumindo
assim um papel aparentemente (e só aparentemente!) coadjuvante, em que a
intensidade do convite dimensiona de alguma forma sua resposta.
Como
resultado da repressão, os indivíduos lascivos, mas de bom caráter, são muito
contidos, dando a impressão de serem menos lúbricos do que realmente o são. Todavia,
em contradição com o comportamento reprimido são atormentados pelo desejo
sensual insistente. Mas quando se imaginam esvaziando-se da luxúria que os inquieta
perdem um pouco o gosto de viver como se uma energia diabólica, porém vivificante,
ameaçasse abandoná-los. Ora, a luxúria é uma exaltação da libido, o exagero de
uma tendência normal do ser humano. E o combate radical a este exagero pode inibir
a energia psíquica libidinal o que assusta principalmente homem! Isso seria um
desastre; corresponderia, como se costuma dizer, a lavar uma criança e joga-la
fora junto com a água do banho...
Focalizando
mais especificamente o lado masculino nas relações de gênero, o humor lascivo tem
consequências na escolha que o homem faz da mulher com quem pretende
estabelecer uma relação conjugal durável.
A primeira e a mais importante delas é a dificuldade que o homem
libidinoso tem de dosar a influência do estigma sensual na avaliação dos
próprios sentimentos em relação à mulher com a qual mantém relações íntimas. Desta
sorte, eroticamente sensibilizado pelo símbolo do feminino, o amante luxurioso fecha
os olhos aos defeitos de personalidade da sua potencial parceira conjugal.
Imperfeições que só depois, com a rotina da convivência, se agigantam e se
mostram um estorvo à interação participativa do casal. A mulher também,
eventualmente, subavalia seu pretendente, mas não influenciada
preponderantemente pela luxúria! Nela prevalece o comportamento romântico,
benevolente. No homem apaixonado o desejo erotizado induz à impaciência, ao
arroubo, à precipitação que o leva a tomar iniciativas impensadas e
intempestivas, razão de arrependimentos tardios. Quando sucumbe ao impulso lascivo
comprometendo o seu par, o indivíduo de boa índole sente-se refém das
consequências do seu deslize. Por conta disso, passado algum tempo depois do
deslumbramento inicial, ele se impõe, agora por dever, compromissos morais agravados
por sentimentos de culpa decorrentes dos atos praticados na efusão da
sensualidade exaltada; e esta culpa atropela os seus projetos pessoais atuais. Teorizando, diríamos que o homem desejoso de uma
parceria conjugal estável em que prevaleça o companheirismo verdadeiro e cúmplice, muito
além do simples encontro sensual, espera, idealmente, encontrar uma bela mulher
inteligente, criativa, disciplinada, autoconfiante e confiável. Expectativa
certamente exigente demais que só por isso, porém, não dispensa tentativas
criteriosas. Todavia, nestas tentativas antes de conhecer mais profundamente
sua futura companheira, o pretendente inflamado pela cupidez assume posturas
comprometedoras perante ela e diante de si mesmo. Então, perde o bom senso e
reduz o rigor da escolha. Depois, formalizado o casamento, cai a ficha da
escolha inadequada... mas já é tarde... Resultado: o casal encurralado na
armadilha que armou para si mesmo sustenta um relacionamento esvaziado de
paixão, no qual feneceram a admiração, a amizade confiante e a estima. Esta situação desagradável é mais frequente do
que se imagina, sustentada principalmente pelo imperativo moral culturalmente
alimentado e pela inércia psicossocial. Que loucura! Todavia, na prática, depois
de consumado o grande engano, essa é a
conduta menos traumática, embora não menos difícil quando levada a sério, com
todas as restrições que se podem fazer. Ao avançar nos anos, já amadurecidas, as
vítimas da própria intemperança aprendem a não lastimar o logro em que caíram
conduzidas por suas próprias decisões imaturas. Dissimulam, então, as
experiências truncadas quando elas ainda se mantêm no nível de um convívio civilizado,
supostamente em benefício da instituição familiar e da boa norma cultural, sem
desconsiderar a influência do alto custo material e moral de um comportamento
radical. Nesta situação de relações claudicantes, existencialmente pobres, não
obstante todos os tropeços, quando os amantes decepcionados conseguem sobreviver
emocionalmente irrealizados, alcançarão pelo menos alguma paz em suas
consciências se forem suficientemente íntegros e criativos para impedir que os
filhos sejam desencaminhados na sua formação pelo desencontro dos pais. Não viveram
em vão se tiverem conseguido passar para
seus filhos os valores éticos que dignificam a existência. Nessa perspectiva, uma
análise de suas histórias pregressas revela aos membros suficientemente
críticos do casal emocionalmente carente, que lhes faltaram virtudes ou
falharam as circunstâncias para uma escolha
ideal, fundamento de um encontro existencial consistente; mas confirma a convicção
de que honraram as exigências mínimas da responsabilidade implícita no
exercício da condição humana.
É isso aí... De um modo geral, o
casamento, salvo raríssimas exceções não é um namoro permanente. Isso é lamentável,
mas verdadeiro. Provavelmente poucos casais conseguirão extrair todas as
vantagens emocionais e existenciais que se possam tirar do matrimônio, exatamente
porque o melhor resultado é, necessariamente, um trabalho a quatro mãos,
calcado num encontro maiúsculo que é raro. Depende da sintonia participativa do
par humano, que não é totalmente administrável isoladamente por cada membro do
casal. A saúde de uma relação de gênero, mormente quando envolve atividade sexual depende da
participação efetiva, inteligente, equilibrada e criativa do homem e da mulher,
simultaneamente; uma engenharia social extremamente complexa. É cativante a ideia
de uma parceria verdadeira, ou seja, um casamento que enriqueça a existência do
par conjugal. Mas quando esta ventura não acontece, o que é mais freqüente, sempre
é possível sobreviver, arranhado, mas inteiro. Contanto que os cônjuges se
comportem como adultos, realistas, centrados na responsabilidade pessoal que no
caso implica minimamente no respeito mútuo, e aos filhos. Obviamente, haverá
casos em que o desentendimento é tão profundo e causa tanto mal estar que a
separação será inevitável!
Para concluir, lembramos que apesar
de todos os percalços um crítico existencial maduro e sábio não aconselharia o
celibato. Porque tem como certo o ganho existencial possível da parceria exemplar
de um casal compatível no contexto da instituição matrimonial, embora reconheça
a raridade do acontecimento.
A relação de gênero envolvendo
atividade sexual serve à espécie, garantindo sua perpetuação. Neste processo os
pares são seduzidos pelo ideal de prazer e felicidade, estados subjetivos
associados à satisfação libidinal. Porém a máxima realização pessoal demanda
relação intersubjetiva profunda e verdadeira cuja natureza espiritual
transcende a satisfação da libido pura e simplesmente.
Everaldo Lopes