sexta-feira, 22 de março de 2013

Libido e realização pessoal



Exorbitando as funções da libido[1] a luxúria é um pecado sedutor e instigante. É tal a sua força aliciante que pode transformar homens em Faunos[2] potenciais com pretensões ético-sociais.  Historicamente “a luxúria é uma vício atribuído à linhagem masculina.” Não exclui as mulheres, porém os exemplos presentes nos textos escritos são sempre masculinos; talvez pelo modo de ser peculiar do homem e da mulher. A mulher, mesmo sem buscar intencionalmente, desperta a cupidez masculina. Por suas características estéticas a mulher transuda sensualidade muitas vezes sem se dar conta disso. Na atitude passiva feminina o desejo sensual, apenas presumido, se expõe menos à observação de terceiros. Enquanto o homem precisa impor-se de alguma forma para chamar a atenção da mulher com o objetivo específico de seduzi-la. No comportamento ativo masculino a intenção libidinosa fica embutida, porém é muito  previsível. Tudo isso mostra a maior visibilidade da libidinosidade masculina, razão porque a luxúria está literariamente mais associada ao homem.
Como todos sabem, luxúria é sinônimo de lascívia. Essa disposição sensual desmedida sempre encontra forte resistência de ordem ética, no íntimo das pessoas com caráter bem formado. Vigilantes, estas pessoas se impõem controlar a inclinação voluptuosa  evitando a intemperança sexual ou a libertinagem. A mulher é menos afetada por conflitos dessa ordem porque, culturalmente, não é dela a iniciativa; inicialmente, sua participação na corte amorosa consiste em aceitar ou resistir à investida masculina, assumindo assim um papel aparentemente (e só aparentemente!) coadjuvante, em que a intensidade do convite dimensiona de alguma forma sua resposta.
Como resultado da repressão, os indivíduos lascivos, mas de bom caráter, são muito contidos, dando a impressão de serem menos lúbricos do que realmente o são. Todavia, em contradição com o comportamento reprimido são atormentados pelo desejo sensual insistente. Mas quando se imaginam esvaziando-se da luxúria que os inquieta perdem um pouco o gosto de viver como se uma energia diabólica, porém vivificante, ameaçasse abandoná-los. Ora, a luxúria é uma exaltação da libido, o exagero de uma tendência normal do ser humano. E o combate radical a este exagero pode inibir a energia psíquica libidinal o que assusta principalmente homem! Isso seria um desastre; corresponderia, como se costuma dizer, a lavar uma criança e joga-la fora junto com a água do banho...
Focalizando mais especificamente o lado masculino nas relações de gênero, o humor lascivo tem consequências na escolha que o homem faz da mulher com quem pretende estabelecer uma relação conjugal durável.  A primeira e a mais importante delas é a dificuldade que o homem libidinoso tem de dosar a influência do estigma sensual na avaliação dos próprios sentimentos em relação à mulher com a qual mantém relações íntimas. Desta sorte, eroticamente sensibilizado pelo símbolo do feminino, o amante luxurioso fecha os olhos aos defeitos de personalidade da sua potencial parceira conjugal. Imperfeições que só depois, com a rotina da convivência, se agigantam e se mostram um estorvo à interação participativa do casal. A mulher também, eventualmente, subavalia seu pretendente, mas não influenciada preponderantemente pela luxúria! Nela prevalece o comportamento romântico, benevolente. No homem apaixonado o desejo erotizado induz à impaciência, ao arroubo, à precipitação que o leva a tomar iniciativas impensadas e intempestivas, razão de arrependimentos tardios. Quando sucumbe ao impulso lascivo comprometendo o seu par, o indivíduo de boa índole sente-se refém das consequências do seu deslize. Por conta disso, passado algum tempo depois do deslumbramento inicial, ele se impõe, agora por dever, compromissos morais agravados por sentimentos de culpa decorrentes dos atos praticados na efusão da sensualidade exaltada; e esta culpa atropela os seus projetos pessoais atuais.  Teorizando, diríamos que o homem desejoso de uma parceria conjugal estável em que prevaleça o companheirismo verdadeiro e cúmplice, muito além do simples encontro sensual, espera, idealmente, encontrar uma bela mulher inteligente, criativa, disciplinada, autoconfiante e confiável. Expectativa certamente exigente demais que só por isso, porém, não dispensa tentativas criteriosas. Todavia, nestas tentativas antes de conhecer mais profundamente sua futura companheira, o pretendente inflamado pela cupidez assume posturas comprometedoras perante ela e diante de si mesmo. Então, perde o bom senso e reduz o rigor da escolha. Depois, formalizado o casamento, cai a ficha da escolha inadequada... mas já é tarde... Resultado: o casal encurralado na armadilha que armou para si mesmo sustenta um relacionamento esvaziado de paixão, no qual feneceram a admiração, a amizade confiante e a estima.  Esta situação desagradável é mais frequente do que se imagina, sustentada principalmente pelo imperativo moral culturalmente alimentado e pela inércia psicossocial. Que loucura! Todavia, na prática, depois de consumado o grande  engano, essa é a conduta menos traumática, embora não menos difícil quando levada a sério, com todas as restrições que se podem fazer. Ao avançar nos anos, já amadurecidas, as vítimas da própria intemperança aprendem a não lastimar o logro em que caíram conduzidas por suas próprias decisões imaturas. Dissimulam, então, as experiências truncadas quando elas ainda se mantêm no nível de um convívio civilizado, supostamente em benefício da instituição familiar e da boa norma cultural, sem desconsiderar a influência do alto custo material e moral de um comportamento radical. Nesta situação de relações claudicantes, existencialmente pobres, não obstante todos os tropeços, quando os amantes decepcionados conseguem sobreviver emocionalmente irrealizados, alcançarão pelo menos alguma paz em suas consciências se forem suficientemente íntegros e criativos para impedir que os filhos sejam desencaminhados na sua formação pelo desencontro dos pais. Não viveram em vão se tiverem conseguido  passar para seus filhos os valores éticos que dignificam a existência. Nessa perspectiva, uma análise de suas histórias pregressas revela aos membros suficientemente críticos do casal emocionalmente carente, que lhes faltaram virtudes ou falharam as circunstâncias  para uma escolha ideal, fundamento de um encontro existencial consistente; mas confirma a convicção de que honraram as exigências mínimas da responsabilidade implícita no exercício da condição humana.
            É isso aí... De um modo geral, o casamento, salvo raríssimas exceções não é um namoro permanente. Isso é lamentável, mas verdadeiro. Provavelmente poucos casais conseguirão extrair todas as vantagens emocionais e existenciais que se possam tirar do matrimônio, exatamente porque o melhor resultado é, necessariamente, um trabalho a quatro mãos, calcado num encontro maiúsculo que é raro. Depende da sintonia participativa do par humano, que não é totalmente administrável isoladamente por cada membro do casal. A saúde de uma relação de gênero, mormente  quando envolve atividade sexual depende da participação efetiva, inteligente, equilibrada e criativa do homem e da mulher, simultaneamente; uma engenharia social extremamente complexa. É cativante a ideia de uma parceria verdadeira, ou seja, um casamento que enriqueça a existência do par conjugal. Mas quando esta ventura não acontece, o que é mais freqüente, sempre é possível sobreviver, arranhado, mas inteiro. Contanto que os cônjuges se comportem como adultos, realistas, centrados na responsabilidade pessoal que no caso implica minimamente no respeito mútuo, e aos filhos. Obviamente, haverá casos em que o desentendimento é tão profundo e causa tanto mal estar que a separação será inevitável!
            Para concluir, lembramos que apesar de todos os percalços um crítico existencial maduro e sábio não aconselharia o celibato. Porque tem como certo o ganho existencial possível da parceria exemplar de um casal compatível no contexto da instituição matrimonial, embora reconheça a raridade do acontecimento.
            A relação de gênero envolvendo atividade sexual serve à espécie, garantindo sua perpetuação. Neste processo os pares são seduzidos pelo ideal de prazer e felicidade, estados subjetivos associados à satisfação libidinal. Porém a máxima realização pessoal demanda relação intersubjetiva profunda e verdadeira cuja natureza espiritual transcende a satisfação da libido pura e simplesmente.      
            Everaldo Lopes                            


[1] Energia motriz dos instintos de vida e de toda conduta ativa criadora do homem.
[2] Figura mitológica de divindade campestre, sempre à caça de ninfas ( divindade  representada por bela donzela) na floresta.