domingo, 24 de agosto de 2014

O neto curioso

As crianças brincavam no Parque sob o olhar atento dos pais e cuidadores. O corre-corre alegre da meninada contrastava com a disciplina dos adultos que caminhavam ou corriam para manter boa forma física e mental. Um homem idoso de aspecto saudável sentado num banco à margem da “pista de Cooper” interrompera por um instante a leitura que fazia. Tinha sobre a perna cruzada um livro entreaberto com o dedo indicador de uma das mãos marcando a última página lida. Olhando as árvores do Parque agora crescidas e frondosas que ele vira plantar há muitos anos, acudiram-lhe outras recordações. Absorto, entretinha-se com antigas lembranças quando um neto que fazia sua corrida habitual deteve-se beijou o avô na careca, cumprimentando-o, e sentou-se ao seu lado. Encorajado pela intimidade respeitosa característica da relação entre os dois, o jovem perguntou.
- Vô, sempre que o vejo nessa postura meditativa fico pensando nos assuntos que alimentam suas reflexões. Conhecendo-o como conheço não consigo imaginá-lo vazio de pensamentos nesses instantes de aparente alheamento.
-Meu neto. Fico feliz por despertar sua atenção.  Agradeço a Deus   haver-me conservado a lucidez necessária para satisfazer sua curiosidade e falar da minha experiência pessoal. Em verdade, avesso a lamentações eu prefiro viver minha precariedade existencial sem enganações. E para entender cada vez mais profundamente minha realidade mais íntima,  medito a natureza espiritual da consciência reflexiva, a liberdade e a responsabilidade que caracterizam a condição humana. Temas inesgotáveis de implicações fascinantes que esbarram nos limites da nossa temporalidade.
-Vô, você não acha doloroso insistir em refletir acerca da  angústia inerente à consciência da finitude? Não seria preferível fugir um pouco dessa ansiedade embaraçosa?
-Meu querido neto. Você tem razão, em parte. É bom que uma vez ou outra a gente se dê a oportunidade de um recreio espiritual. Mas o distanciamento da fonte principal de nossa ansiedade não ajuda a responder aos questionamentos impostos pela condição humana; embora essa distração tenha seu momento, a  intervalos, como um merecido repouso da mente cansada de pensar o mistério do mundo e da consciência.
            -Vô. Nessa perspectiva como você sente a velhice?
-Sinto-a como um declínio progressivo da possibilidade de experimentar os prazeres da juventude. Acho impossível adocicar o envelhecimento. A aceitação é a única forma de vivê-lo sem mistificações. Mas aceitar as próprias limitações com naturalidade e criatividade não é algo que a gente possa impor-se. Demanda mais do que autoconhecimento, disciplina emocional e uma leitura filosófica da realidade. Exige humildade para lidar com as perdas que acumulamos durante os anos vividos. A ruína do vigor físico e a redução ou supressão dos prazeres da cama e da mesa são alguns dos sinais indeléveis do declínio biológico. Todavia avalio esse processo na sua justa medida como um conjunto de eventos regressivos inevitáveis. Reconheço-os, dimensiono-os e os enfrento com os recursos interiores de que disponho. Imponho-me assistir ao meu próprio envelhecimento sem me deixar abater pelas  limitações da idade, e sem negá-las tão pouco. Procuro encarar cada novo dia como o primeiro dos que ainda  hei de viver, e não como o último dos que já vivi.  Mas não posso deixar de sentir a  melancolia de um fim de festa; preciso ficar alerta para não deixar este sentimento minar minha disposição de ir além.
-Vô. Vejo que envelhecer é um processo que exige compreensão profunda da realidade humana e grande determinação! Você faz muito esforço para levar adiante sua proposta?
-Meu neto. Não é fácil encarar com naturalidade a expectativa do fim previsível da jornada histórica pessoal. É desoladora a dificuldade de preencher o vazio de emoções e interesses absorventes que se amplia com a idade. A consciência da precariedade  temporal do ser biológico tem início muito cedo, torna-se cada vez mais desafiadora com o passar dos anos, e depois da oitava década de vida, por motivos óbvios, faz-se ameaçadora. A vivência acompanhante da expectativa de um futuro cujo limite está cada vez mais próximo é incômoda. As cogitações metafísicas que teorizam um destino transcendental para o homem amenizam a inquietação provocada pelo sentimento de finitude que constrange a existência, mas não suprime a angústia. Todavia, essa transcendência cogitada (necessariamente unificadora) é o desfecho mais compatível com o Universo totalmente integrado no qual tudo tem a ver com tudo e a morte é a transição da vida para a “vida”, uma vez que a criatura e o Criador são inseparáveis[1]. Comparo o tempo histórico em que as criaturas se movem a uma bolha no seio da eternidade que finalmente a absorve.
-Vô. Foi bom ouvi-lo tratar a questão por esse ângulo. O que você acaba de me dizer implica em admitir um absoluto. Diante desta implicação certamente a fé religiosa é o recurso mais poderoso para apaziguar a angústia da finitude vivenciada. Mas percebo em alguns textos postados no seu blog que para você as especulações metafísicas têm sido um suporte eficaz na construção de sua visão mística do mundo e da consciência!
-Correto. Todavia devo confessar que a experiência mística do amor à verdade que  abraça sem questionar o absoluto em cuja unidade (Deus) se desfazem todas as contradições é o melhor caminho para viver a esperança de vida plena. A pura especulação metafísica conquanto dê suporte a uma expectativa animadora não integra emocionalmente o pensador num todo significativo. Contando apenas com a abordagem filosófica algum esforço pessoal é sempre necessário para sobreviver com dignidade às perdas inerentes à idade, e à consciência da finitude. Seguramente, a “fé  ingênua”[2] é o que mais ajuda no combate à angústia existencial decorrente da vivência de ser perecível. Mas nas horas de crise, muitos dos que não possuímos a robustez da fé ingênua nos apoiamos em especulações metafísicas para dar suporte a aspirações transcendentais (fé crítica).
           
-Vô, você não imagina como sua postura diante da vida me inspira e tranquiliza. Ela me dá a certeza de que por pior que seja envelhecer ainda pode ser uma experiência excitante. Confirma que a existência é uma luta heroica que avalia a inteligência, a criatividade e o valor moral de cada um de nós.
            -Fico feliz de poder contribuir para que você pense assim. No processo de envelhecimento é preciso assumir atitudes muito firmes para superar as dificuldades que sobrevêm com a idade. No vir a ser do idoso restringem-se progressivamente a independência e a produtividade o que o expõe a crises existenciais que podem evoluir para a depressão psíquica ao lhe faltar a capacidade de aceitar as mudanças restritivas. Sem flexibilidade intelectual e afetiva para assumir os percalços do envelhecimento, o idoso percebe a realidade deficitária da velhice como uma tristeza rebelde que faz contraponto com reminiscências românticas perdidas no passado, e revolta-se. Falta-lhe a humildade necessária para assimilar sem constrangimento a dependência progressiva a que leva o envelhecimento, enquanto continua aceso o desejo de viver. É compreensível que o velho não deseje a morte, mas a verdade é que ela se torna cada vez menos mortal para os seus sonhos que estão fenecendo, ou já morreram. Obviamente, viver mais é um anseio espontâneo, o tempo todo ameaçado pela finitude biológica geneticamente programada.
            -Vô. Entendo que sua visão da velhice não oferece alternativa concreta de plenitude existencial aqui na Terra, mas não é pessimista. É uma postura comedida que associa o bom senso ao enfrentamento objetivo da realidade inerente ao “envelhecer”!
-Você é perspicaz meu rapaz. Não preciso enfatizar que para o idoso tudo se torna mais complicado. O equilíbrio biológico é mais delicado e a sensação de estar sadio nunca é completa; o equilíbrio psicológico diante dessa fragilidade é um desafio. Mas o Criador não nos propõe problemas que não possamos resolver, senão com ações, pelo menos com atitudes. Resumindo: o idoso lúcido que conserva intactas as funções psíquicas superiores sente que no plano biológico a vida útil tem um prazo de validade, e constata que o seu já expirou, mas não perde a esperança de aproveitar as virtudes e os talentos remanescentes para arrematar sua existência com dignidade.
    Everaldo Lopes




[1] A criatura não tem a força da subsistência; para existir precisa manter-se unida ao absoluto criador.
[2] De quem nega, preliminarmente, qualquer dúvida quanto à existência de um Absoluto criador; diferente da “fé crítica” de  quem analisa a dúvida inerente à crença no objeto de fé e encontra na realidade evolutiva do mundo e do homem argumentos racionais para refutá-la (a dúvida).