As crianças brincavam no Parque sob o olhar atento dos pais e
cuidadores. O corre-corre alegre da meninada contrastava com a disciplina dos
adultos que caminhavam ou corriam para manter boa forma física e mental. Um
homem idoso de aspecto saudável sentado num banco à margem da “pista de Cooper”
interrompera por um instante a leitura que fazia. Tinha sobre a perna cruzada
um livro entreaberto com o dedo indicador de uma das mãos marcando a última
página lida. Olhando as árvores do Parque agora crescidas e frondosas que ele
vira plantar há muitos anos, acudiram-lhe outras recordações. Absorto,
entretinha-se com antigas lembranças quando um neto que fazia sua corrida
habitual deteve-se beijou o avô na careca, cumprimentando-o, e sentou-se ao seu
lado. Encorajado pela intimidade respeitosa característica da relação entre os dois,
o jovem perguntou.
- Vô, sempre que o vejo nessa postura meditativa fico pensando nos
assuntos que alimentam suas reflexões. Conhecendo-o como conheço não consigo
imaginá-lo vazio de pensamentos nesses instantes de aparente alheamento.
-Meu neto. Fico feliz por despertar sua atenção. Agradeço a Deus haver-me
conservado a lucidez necessária para satisfazer sua curiosidade e falar da
minha experiência pessoal. Em verdade, avesso a lamentações eu prefiro viver
minha precariedade existencial sem enganações. E para entender cada vez mais
profundamente minha realidade mais íntima, medito a natureza espiritual da consciência
reflexiva, a liberdade e a responsabilidade que caracterizam a condição humana.
Temas inesgotáveis de implicações fascinantes que esbarram nos limites da nossa
temporalidade.
-Vô, você não acha doloroso insistir em refletir acerca da angústia inerente à consciência da finitude?
Não seria preferível fugir um pouco dessa ansiedade embaraçosa?
-Meu querido neto. Você tem razão, em parte. É bom que uma vez ou outra
a gente se dê a oportunidade de um recreio espiritual. Mas o distanciamento da
fonte principal de nossa ansiedade não ajuda a responder aos questionamentos
impostos pela condição humana; embora essa distração tenha seu momento, a intervalos, como um merecido repouso da mente
cansada de pensar o mistério do mundo e da consciência.
-Vô. Nessa perspectiva como você
sente a velhice?
-Sinto-a como um declínio progressivo da possibilidade de experimentar
os prazeres da juventude. Acho impossível adocicar o envelhecimento. A
aceitação é a única forma de vivê-lo sem mistificações. Mas aceitar as próprias
limitações com naturalidade e criatividade não é algo que a gente possa
impor-se. Demanda mais do que autoconhecimento, disciplina emocional e uma
leitura filosófica da realidade. Exige humildade para lidar com as perdas que
acumulamos durante os anos vividos. A ruína do vigor físico e a redução ou
supressão dos prazeres da cama e da mesa são alguns dos sinais indeléveis do
declínio biológico. Todavia avalio esse processo na sua justa medida como um
conjunto de eventos regressivos inevitáveis. Reconheço-os, dimensiono-os e os
enfrento com os recursos interiores de que disponho. Imponho-me assistir ao meu
próprio envelhecimento sem me deixar abater pelas limitações da idade, e sem negá-las tão pouco.
Procuro encarar cada novo dia como o primeiro dos que ainda hei de viver, e não como o último dos que já
vivi. Mas não posso deixar de sentir a melancolia de um fim de festa; preciso ficar
alerta para não deixar este sentimento minar minha disposição de ir além.
-Vô. Vejo que envelhecer é um processo que exige compreensão profunda
da realidade humana e grande determinação! Você faz muito esforço para levar
adiante sua proposta?
-Meu neto. Não é fácil encarar com naturalidade a expectativa do fim
previsível da jornada histórica pessoal. É desoladora a dificuldade de
preencher o vazio de emoções e interesses absorventes que se amplia com a idade.
A consciência da precariedade temporal do
ser biológico tem início muito cedo, torna-se cada vez mais desafiadora com o
passar dos anos, e depois da oitava década de vida, por motivos óbvios, faz-se
ameaçadora. A vivência acompanhante da expectativa de um futuro cujo limite está
cada vez mais próximo é incômoda. As cogitações metafísicas que teorizam um
destino transcendental para o homem amenizam a inquietação provocada pelo
sentimento de finitude que constrange a existência, mas não suprime a angústia.
Todavia, essa transcendência cogitada (necessariamente unificadora) é o
desfecho mais compatível com o Universo totalmente integrado no qual tudo tem a
ver com tudo e a morte é a transição da vida para a “vida”, uma vez que a
criatura e o Criador são inseparáveis[1].
Comparo o tempo histórico em que as criaturas se movem a uma bolha no seio da
eternidade que finalmente a absorve.
-Vô. Foi bom ouvi-lo tratar a questão por esse ângulo. O que você acaba
de me dizer implica em admitir um absoluto. Diante desta implicação certamente
a fé religiosa é o recurso mais poderoso para apaziguar a angústia da finitude
vivenciada. Mas percebo em alguns textos postados no seu blog que para você as
especulações metafísicas têm sido um suporte eficaz na construção de sua visão mística
do mundo e da consciência!
-Correto. Todavia devo confessar que a experiência mística do amor à
verdade que abraça sem questionar o absoluto
em cuja unidade (Deus) se desfazem todas as contradições é o melhor caminho
para viver a esperança de vida plena. A pura especulação metafísica conquanto
dê suporte a uma expectativa animadora não integra emocionalmente o pensador
num todo significativo. Contando apenas com a abordagem filosófica algum esforço
pessoal é sempre necessário para sobreviver com dignidade às perdas inerentes à
idade, e à consciência da finitude. Seguramente, a “fé ingênua”[2]
é o que mais ajuda no combate à angústia existencial decorrente da vivência de
ser perecível. Mas nas horas de crise, muitos dos que não possuímos a robustez
da fé ingênua nos apoiamos em especulações metafísicas para dar suporte a
aspirações transcendentais (fé crítica).
-Vô, você não imagina como sua postura diante da vida me inspira e
tranquiliza. Ela me dá a certeza de que por pior que seja envelhecer ainda pode
ser uma experiência excitante. Confirma que a existência é uma luta heroica que
avalia a inteligência, a criatividade e o valor moral de cada um de nós.
-Fico feliz de poder contribuir para
que você pense assim. No processo de envelhecimento é preciso assumir atitudes
muito firmes para superar as dificuldades que sobrevêm com a idade. No vir a
ser do idoso restringem-se progressivamente a independência e a produtividade o
que o expõe a crises existenciais que podem evoluir para a depressão psíquica ao
lhe faltar a capacidade de aceitar as mudanças restritivas. Sem flexibilidade
intelectual e afetiva para assumir os percalços do envelhecimento, o idoso percebe
a realidade deficitária da velhice como uma tristeza rebelde que faz
contraponto com reminiscências românticas perdidas no passado, e revolta-se. Falta-lhe
a humildade necessária para assimilar sem constrangimento a dependência progressiva
a que leva o envelhecimento, enquanto continua aceso o desejo de viver. É
compreensível que o velho não deseje a morte, mas a verdade é que ela se torna
cada vez menos mortal para os seus sonhos que estão fenecendo, ou já morreram. Obviamente,
viver mais é um anseio espontâneo, o tempo todo ameaçado pela finitude biológica
geneticamente programada.
-Vô. Entendo que sua visão da
velhice não oferece alternativa concreta de plenitude existencial aqui na Terra,
mas não é pessimista. É uma postura comedida que associa o bom senso ao
enfrentamento objetivo da realidade inerente ao “envelhecer”!
-Você é perspicaz meu rapaz. Não preciso enfatizar que para o idoso
tudo se torna mais complicado. O equilíbrio biológico é mais delicado e a
sensação de estar sadio nunca é completa; o equilíbrio psicológico diante dessa
fragilidade é um desafio. Mas o Criador não nos propõe problemas que não
possamos resolver, senão com ações, pelo menos com atitudes. Resumindo: o idoso
lúcido que conserva intactas as funções psíquicas superiores sente que no plano
biológico a vida útil tem um prazo de validade, e constata que o seu já expirou,
mas não perde a esperança de aproveitar as virtudes e os talentos remanescentes
para arrematar sua existência com dignidade.
Everaldo Lopes
[1]
A criatura não tem a força da subsistência; para existir precisa manter-se
unida ao absoluto criador.
[2]
De quem nega, preliminarmente, qualquer dúvida quanto à existência de um
Absoluto criador; diferente da “fé crítica” de
quem analisa a dúvida inerente à crença no objeto de fé e encontra na
realidade evolutiva do mundo e do homem argumentos racionais para refutá-la (a dúvida).