sexta-feira, 29 de julho de 2011

Um esclarecimento oportuno.

          
            Imagino que o comentário de Ruth sobre “devaneio Especulativo II” deu voz a muitos leitores desejosos de uma compreensão mais objetiva do assunto em pauta. Seu depoimento me mostrou ser necessário um adendo explicativo do objetivo do texto em referência e da metodologia utilizada.
Todas as dificuldades da leitura em questão giram em torno da impossibilidade lógica de unir, funcionalmente, conceitos antitéticos como transcendência e imanência, eternidade e tempo. O “senso comum”[1] separa radicalmente estes opostos. De fato, a compreensão unitária destes termos contrapostos é inacessível à razão humana.  Esta impossibilidade lógica é, certamente o motivo, por exemplo, da crença num Deus Criador (transcendência absoluta) “separado da sua criação”, reinando sobre as criaturas (imanência) como uma entidade distante!... Crença que varou os séculos e continua viva no espírito dos homens!... A contradição semântica, implícita nesta crença é ignorada pelo senso comum que não questiona a ilogicidade da existência de um Deus (transcendência absoluta), dialogando com suas criaturas (imanência), como realidades distintas. Nesta perspectiva, a convicção religiosa subentende, sem analisar, que a imanência, uma vez criada assume o “caráter de ser por si mesma” o que faria dela um absoluto... e isto é, logicamente, inaceitável porque não pode haver dois “absolutos”, um transcendental (espiritual – criador) e outro imanente (material - criado)... Por definição, o absoluto é inclusivo e nada deixa de fora... desta forma configura-se e pratica-se a incoerência de separar o Criador, da sua obra.
Do ponto de vista racional, o problema começa com o reconhecimento da impossibilidade lógica de explicar o Universo por ele mesmo. Como explicá-lo, então? Nestas circunstâncias desponta a necessidade lógica especulativa de um Dinamismo Criativo Absoluto (DCA) que existe em si e por si, responsável pela criação do Universo (imanência) e, logicamente, por sua subsistência... pois, entregue à sua própria sorte depois de criada, a imanência  não subsistiria como tal. Então, teoricamente, o Absoluto Criativo original deve incluir a imanência como sua extensão... A criação é, pois, necessariamente, um processo contínuo original e eterno...
A admissão da inseparabilidade da transcendência e da imanência no Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo leva a devanear sobre a “continuidade misteriosa do Criador na criatura, não obstante a descontinuidade essencial entre ambos!” Situação contraditória, misteriosa, que se espelha em expressões poéticas como: “Alma, estado divino da matéria!...”[2] ou, invertendo os termos deste verso: Matéria, estado temporal de Deus!
Na impossibilidade de explicar a unidade das antíteses, inerente à realidade humana (espírito e matéria centrados pela consciência do eu) valemo-nos do artifício de justificá-la como uma situação ilógica (absurda) embutida em outra de cuja lógica formal não se pode duvidar, qual seja a impossibilidade de dois absolutos... Nesta perspectiva se alinham outras afirmações assimiláveis a abstrações de abstrações como as que se seguem: “O `espírito´ e o corpo físico não são entidades diferentes, mas uma alternância criadora na qual o Espírito eterno ora projeta, virtualmente, uma imagem corporal no tempo, ora a recolhe no Seu seio onde se realiza a unidade de tudo quanto existe...” ... “O Espírito (eterno) já está presente aqui e agora neste corpo, o meu, o seu, e o dos entes que povoam o mundo. É-lhes imanente e transcendente... e esta diferença formal pode ser experienciada pelo homem, como uma unidade ao identificar-se como um “eu”, sem que se tenha uma explicação racional da alquimia psíquica desta vivência. Eis o mistério que a Teologia[3] enfeixa num conjunto de conhecimentos fundamentados no ato de fé.” ...“Para o homem, a morte seria a porta que comunica o mundo `virtual´ (visível, aparente), e o mundo Espiritual, o universo real das essências das quais o mundo visível é apenas uma projeção (recapitulando a intuição platônica)![4] Por outro lado, considerando a impossibilidade de traduzir conceitos abstratos em linguagem objetiva, recorro nos “devaneios especulativos” ao recurso de analogias, contradições, palavras e expressões em sentido figurado, metáforas, representando realidades complexas que não comportam definições perfeitas... A intenção não é transmitir um “conhecimento, mas despertar no espírito do leitor a emergência de símbolos que levem à intuição sugestiva de uma realidade indescritível”. Nesta perspectiva, permitimo-nos pensar o espaço e o tempo como Projeções virtuais do Espírito Eterno. Numa leitura linear, este linguajar é inconsistente para uma lógica dualista, enquanto tributário de um monismo espiritual... Mas, deixando solta a verve imaginativa, pode-se esperar, no sujeito pensante, a eclosão de uma intuição ou vivência de integração cuja raiz simbólica é a “unidade” Criador/criação, Consciência/mundo. Consideramos estas experiências equivalentes à da unidade Criador/criatura (integração mística num todo significativo) e a da auto-referência do “eu”. Na primeira não se pode estabelecer o limite entre a transcendência e a imanência; na segunda é igualmente impossível estabelecer o limite entre o ser biológico e o “espírito” que o transcende, reflexionando, para a identificação do “eu” pessoal.
“Todos reconhecemos no homem, aptidões sutis (intuição criadora, inteligência linguístico matemática...) que não se explicam, linearmente, pelas funções biológicas...” De que forma, estas aptidões sutis (espirituais), se manifestam funcionalmente através do Sistema Nervoso Central com participação decisiva do córtex cerebral (servomecanismo biológico)?... Jamais se entenderá, como se processa a transdução[5] da energia bioquímica do Sistema Nervoso, operando na intimidade do neurônio, em atividades psíquicas específicas como o pensamento, a intuição criadora e a vontade. Neste sentido pode-se afirmar que “Jamais se poderá estabelecer na intimidade biopsíquica o limite entre o espírito e a matéria...”
A Física Quântica afirma que os objetos não são coisas determinadas; os objetos são certas possibilidades escolhidas pela “consciência” dentre as inúmeras que fluem na onda permanente e infinita de possibilidades. Esta visão dá suporte a uma compreensão da realidade que dispensa o dualismo, porque ao escolher, sendo o cérebro escolha da consciência, estaria escolhendo as possibilidades da própria consciência. O que corresponderia dizer, numa linguagem mística: DEUS É CONSCIÊNCIA.[6]
Quando falo do presente como uma brecha no tempo refiro-me a um ponto móvel que separa no “agora”, as lembranças (passado), das expectativas (futuro)... O “agora” passa a ser o presente “temporal” no qual a gente vive (experimenta o tempo). O “presente”, aquele ponto móvel no “agora”, que não se esgota nunca... este “presente” é a própria escolha, não o fisgamos jamais porque não é mensurável temporalmente... Como uma manifestação espiritual é percebido sob a forma de uma vivência da disponibilidade total permanente de liberdade de escolha dentro do “agora” em que está contextualizado... “liberdade” e “consciência” se confundem na escolha. Não podemos descrever este lance fundamental da existência, uma vez que não tem expressão temporal, mas podemos rastreá-lo pela ação transformadora da “existência” (consciência responsável – reflexo da consciência cósmica) que vai deixando uma trilha de atos concretos alinhados, memorizados como passado. Ora, o que é intemporal é eterno! Logo, a eternidade permeia o “agora” no “presente”.
Nestes “Devaneios Especulativos”, não pretendemos alcançar um conhecimento objetivo (impossível, no caso), mas tão somente sensibilizar a criatividade intuitiva e vivencial do leitor. E para esta sensibilização usamos uma linguagem simbólica que busca arrimo na lógica especulativa, sem o apoio de evidência sólida. Creio que esta especulação sobre as verdades de fé foi uma forma que encontrei de domar a minha índole racionalista, sensibilizando-me a mim mesmo para o exercício da fé num Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo que cuide da Sua “criatura”. Crença difícil de cultivar quando a gente perde a ingenuidade infantil. Na verdade, as especulações metafísicas não substituem a ingenuidade, porém ajudam a mostrar a necessidade de ser humilde para participar da convicção íntima de um absurdo lógico... esta é a verdadeira essência da fé: crer num Absoluto (Princípio constitutivo e explicativo de toda realidade) que, obviamente, não se enquadra nas categorias racionais.
Mas não basta numa primeira etapa reconhecer, intelectualmente, a existência de “Deus” mediante a ajuda de lucubrações especulativas... algumas fundamentadas em dados científicos tirados da pesquisa quântica. É preciso senti-Lo como guia e protetor na peregrinação existencial que cada um de nós faz ao longo do ciclo biológico. Esta segunda etapa da evolução espiritual envolve sentimentos que a razão não controla... demanda disposição psíquica afetiva peculiar que não se ensina... resulta de experiências pessoais intransferíveis. Amparado pela lógica discursiva vivi a primeira etapa da caminhada mística, existencial, com certa facilidade. Porém, marcado por experiências emocionais arcaicas, vividas nos primórdios do meu ciclo biológico, que inscreveram as pautas comportamentais do meu caráter, sinto dificuldade de superar a segunda etapa, para colher os frutos de uma verdadeira fé. Preso às tendências inscritas na minha psique, simplesmente, não consigo sentir-me cuidado e protegido por um poder maior (senão pontualmente, em momentos especiais), mas gostaria de experimentar esta proteção... Embarafustado nos meus medos, incertezas e angústias, esforço-me, consciente e voluntariamente, para me tornar receptivo à proteção transcendental que, inconscientemente, não me permito ter... É assim que funciona o inconsciente influindo dissimuladamente no vir a ser consciente. Nada me garante que alcançarei realizar a entrega mística, mas continuarei tentando até o fim... não há outra solução para o problema humano!
Everaldo
[1]  Conjunto de opiniões e modos de sentir que, por serem impostos pela tradição aos indivíduos de uma determinada época, local ou grupo social, são ger. aceitos de modo acrítico como verdades e comportamentos próprios da natureza humana.  (Aurélio sec.XXI)
[2] Raul de Leoni no poema, “De um Fantasma”.
[3] Ciência ou estudo que se ocupa de Deus, de sua natureza e seus atributos e de suas relações com o homem e com o universo (Houaiss3)

[4] Vide “O Mito da Caverna, de Platão, descrito por Marilena Chaui no seu livro Convite à Filosofia... Ler o anexo ao fim do texto.


[5] Processo pelo qual uma energia se transforma em outra de natureza diferente.

[6] Vide  ao “Ativista Quântico” de Amit Goswami


O mito da caverna.
“Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem locomover-se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do Sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras na parede do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais cujas sombras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são os seres vivos que se movem e falam atrás do muro. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna, e no primeiro instante fica totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco, habitua-se à luz e começa ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e só voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que habituar-se à luz. De volta à caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna.
A caverna, diz Platão, é o mundo sensível onde vivemos. A réstia de luz que projeta as sombras na parede é um reflexo da luz verdadeira (as ideias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis que tomamos pelas verdadeiras. Os grilhões são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos sentidos e opiniões. O instrumento que quebra os grilhões e faz a escalada do muro é a dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. A luz que ele vê é a luz plena do Ser, isto é, o Bem, que ilumina o mundo inteligível como o Sol ilumina o mundo sensível. O retorno à caverna é o diálogo filosófico. Os anos despendidos na criação do instrumento para sair da caverna são o esforço da alma, descrito na Carta Sétima, para produzir a “faísca” do conhecimento verdadeiro pela “fricção” dos modos de conhecimento. Conhecer é um ato de libertação e de iluminação.
O Mito da Caverna apresenta a dialética como movimento ascendente de libertação do nosso olhar que nos libera da cegueira para vermos a luz das ideias. Mas descreve também o retorno do prisioneiro para ensinar aos que permaneceram na caverna como sair dela. Há, assim, dois movimentos: o de ascensão (a dialética ascendente), que vai da imagem à crença ou opinião, desta para a matemática e desta para a intuição intelectual e à ciência; e o de descensão (a dialética descendente), que consiste em praticar com outros o trabalho para subir até a essência e a ideia. Aquele que contemplou as ideias no mundo inteligível desce aos que ainda não as contemplaram para ensinar-lhes o caminho. Por isso, desde o “Menon”, Platão dissera que não é possível ensinar o que são as coisas, mas apenas ensinar a procurá-las.
Os olhos foram feitos para ver; a alma, para conhecer. Os primeiros estão destinados à luz solar; a segunda, à fulguração da ideia. A dialética é a técnica liberadora dos olhos do espírito.
O relato da subida e da descida expõe a paideia como dupla violência necessária: a ascensão é difícil, dolorosa, quase insuportável; o retorno à caverna, uma imposição terrível à alma libertada, agora forçada a abandonar a luz e a felicidade. A dialética, como toda a técnica, é uma atividade exercida contra uma passividade, um esforço (pónos) para concretizar seu fim forçando um ser a realizar sua própria natureza. No mito, a dialética faz a alma ver sua própria essência (eidos) – conhecer – vendo as essências (ideia) – o objeto do conhecimento –, descobrindo seu parentesco com elas. A violência é libertadora porque desliga a alma do corpo, forçando-a a abandonar o sensível pelo inteligível.”