A totalidade cósmica integra
a relação recíproca, instantânea, de todos os elementos componentes do universo.
Neste contexto a consciência humana atua ao modo de um campo do universo em que
se define a realidade mediante a consolidação de uma possibilidade entre muitas;
não existe mundo sem consciência nem consciência sem o mundo. Essa conexão intrínseca
mostra que o todo absoluto necessariamente harmônico inclui a consciência, anulando
na sua estrutura unitária totalizante o
contraste entre as realidades física e psíquica, respectivamente, imanente e
transcendente. Considere-se esta introdução obscura como uma tentativa de
verbalizar o que não se pode descrever: a unidade absoluta.
Imerso no tempo, o homem fundamentado
apenas em percepções sensoriais não pode enxergar sua dimensão transcendental sem
reflexão profunda prolongada numa vivência mística. As percepções sensoriais lhe
permitem lidar apenas com a realidade física mensurável. A abordagem da dimensão transcendental que se
revela no exercício da própria consciência reflexiva demanda abstração[1]
do terceiro grau, num questionamento metafísico. Neste nível de labor mental, a lógica da
complexidade[2]
permite vislumbrar, ainda que de
forma tosca, a harmonia do Todo absoluto.
Em linguagem mística a interação complexa universal corresponderia à “vontade
de Deus” que tudo conduz para uma apoteose gloriosa por caminhos que escapam à
compreensão da razão temporal.
No contexto da consciência
reflexiva a dimensão temporal do homem revela-se no “agora” de onde ele entrevê
intuitivamente o passado e o futuro separados pelo presente fugidio. Poder-se-ia
representar o “presente” como um cursor abstrato
que se movimenta na linha do tempo. A consciência registra apenas o movimento, não
se tem como aprisionar o momento exato em que o futuro se torna passado. Assim,
a própria simultaneidade da situação vivida e de sua enunciação, se dilui em momentos
rapidamente sucessivos; desse modo, a realidade percebida acaba sendo sempre
uma atribuição da consciência pela escolha de um deles.
O místico e o agnóstico assumem posturas
opostas ante a realidade universal da qual apenas se comprova a dimensão
temporal. Por sua fé, o místico vê no mundo visível, aparente, a presença
permanente do Criador em Suas criaturas; enquanto o agnóstico limitado às
possibilidades racionais concretas vê os acontecimentos evolucionários da matéria
como simples determinações físico-químicas e biológicas anônimas. Do ponto de
vista existencial, imediato, vivendo a sua crença, o místico exorciza o desamparo
da consciência da própria finitude, enquanto o agnóstico não tem como
defender-se da angústia de ser para a morte! Pois a coerência do vir a ser
existencial do agnóstico limita-se ao horizonte temporal de um mundo que
caminha inexoravelmente para um fim caótico medido pela entropia[3]!
Na visão materialista as funções psíquicas superiores são apenas epifenômenos
da matéria, e a morte biológica será o ponto final da jornada consciente. Detalhando
as posturas opostas, enquanto o espiritualista é motivado por princípios éticos
que transcendem o simples determinismo histórico, o materialista vê as práticas
sociais, políticas e a própria solidariedade apenas como tentativas pragmáticas
para disciplinar o egoísmo humano e viabilizar a organização social
indispensável à sobrevivência da espécie. Mas sabe que o cosmo e a consciência
pressupõem um “por que”, e como a matéria não pode explicar-se por si mesma, o
agnóstico simplesmente ignora o princípio de tudo, até que a Ciência lhe dê a
resposta (impossível para ela) de como tudo começou. Dessa forma a condição
humana limitada ao tempo fica amputada na sua dimensão transcendental[4].
Para o Agnóstico o ideal humanístico se circunscreve ao melhor desempenho
histórico da sociedade. Aliás, este ideal também faz parte da proposta do espiritualista.
A diferença é que para este a realização histórica do homem apenas o prepara
para uma experiência maior, intemporal. Em consequência, no foro íntimo do
espiritualista o risco maior na sua existência histórica seria escorregar para
um comportamento pragmático, cínico, em que bastasse “parecer ser”, em vez de
“ser”. Isso representaria um descompromisso em relação ao exercício responsável
da consciência, com implicações negativas na consumação da perfeição almejada. Deslize
que, todavia, não sensibiliza o agnóstico pragmático comprometido apenas com
seu desempenho histórico. Embora o espiritualista e o agnóstico humanista coincidam
no comportamento formal, em algum momento. A ambos custa aceitar tacitamente a
própria finitude biológica; no fundo todos anseiam transcender a condição
temporal. Mas o materialista dá as costas à aconchegante possibilidade de integração
numa transcendência absoluta providente e misericordiosa. E mesmo assim há
agnósticos vivendo aparentemente em paz consigo mesmos! Um olhar imparcial
sobre a questão mostra que, a existir, a paz estoica dos agnósticos materialistas,
cuja espiritualidade se detém no horizonte temporal, é presunçosa e pouco
convincente! A vitória do agnóstico materialista e do ateu sobre o Espírito é
uma vitória de Pirro, dadas as perdas irreparáveis que impõe à realização plena
da condição humana, por negar sua dimensão transcendental. A espiritualidade do
agnóstico pode ser definida como um sentimento de identidade ideológica política,
econômica e social sem envolvimento com valores transcendentais. É
compreensível que essa postura cobre um custo existencial elevado, e empobreça
o vir a ser consciente, mas não lhe rouba a dignidade quando é responsavelmente
assumida. Todavia, confinar o fenômeno humano aos limites da realidade sensível,
com certeza não atende integralmente a exigência de coerência da condição
humana[5].
Analisado à luz da lógica da complexidade o devir humano ganha outra dimensão;
abre-se um portal para o absoluto irrepresentável, que, não obstante verdadeiro,
é indemonstrável. Realidade comparável às sentenças “indecidíveis” estudadas
pelo matemático Kurt Gödel que afirma haver sentenças matemáticas verdadeiras
que não se demonstram. Então é legítimo concluir que há um abismo entre a
verdade e sua demonstração. Analogicamente, podemos afirmar que uma transcendência
absoluta não é demonstrável, e nem por isso deixa de ser verdadeira.
Para concluir estas
especulações lembro o esforço intelectual do genial Carl Gustav Jung, discípulo
dissidente de Freud. Ele reconheceu a dimensão espiritual da condição humana. E
tentou abordá-la como homem de ciência. Mergulhado em pesquisas psicológicas
profundas através do estudo da simbologia das mandalas[6],
no limite entre a ciência e o mito ele cunhou a locução “unos mundus” para denominar uma realidade maior da qual os
estados físico e psíquico são apenas aspectos diferentes. Essa aventura intelectual provocou críticas da
comunidade científica, porém mostrou a possibilidade de vincular a dimensão
transcendental ao vir a ser consciente, mediante símbolos que estão vivos no
inconsciente coletivo.
Everaldo Lopes
[1] Ato de separar mentalmente um ou mais
elementos de uma totalidade completa (coisa, representação, fato), os quais só
mentalmente podem subsistir fora da totalidade.
[2] A lógica da complexidade diferentemente da
lógica linear busca o diálogo em todas as direções e em todos os momentos. Tudo
interage com tudo em todos os pontos e em todas as circunstâncias. Há uma
circularidade e inclusão de todos os seres relacionados e de todas as relações.
[3] Medida da variação
ou desordem em um sistema. Conforme o segundo princípio da Termodinâmica, num
sistema fechado a impossibilidade de reaproveitar em trabalho parte do calor
desprendido terminará por um esgotamento do sistema,
[4] Entende-se por condição humana a
capacidade de ser consciente, livre e
responsável. Ora, a reflexão pessoal e a liberdade de escolher não se
explicam pelas interações sinápticas
neuroniais! Logo, o exercício da condição humana exige aptidões que transcendem
as possibilidades dos fenômenos fisiológicos abrindo espaço para a cogitação de
uma intervenção sobrenatural.
[5]
Capacidade de exercitar a consciência livre e responsavelmente
[6] Representação geométrica da relação dinâmica entre o homem e o cosmo,
composta de círculos e quadrados concêntricos. Segundo Jung, círculo mágico que
representa simbolicamente a luta pela unidade total do “eu!.