segunda-feira, 29 de abril de 2013

Consciência temporal e transcendência absoluta



A totalidade cósmica integra a relação recíproca, instantânea, de todos os elementos componentes do universo. Neste contexto a consciência humana atua ao modo de um campo do universo em que se define a realidade mediante a consolidação de uma possibilidade entre muitas; não existe mundo sem consciência nem consciência sem o mundo. Essa conexão intrínseca mostra que o todo absoluto necessariamente harmônico inclui a consciência, anulando na sua estrutura unitária  totalizante o contraste entre as realidades física e psíquica, respectivamente, imanente e transcendente. Considere-se esta introdução obscura como uma tentativa de verbalizar o que não se pode descrever: a unidade absoluta.
Imerso no tempo, o homem fundamentado apenas em percepções sensoriais não pode enxergar sua dimensão transcendental sem reflexão profunda prolongada numa vivência mística. As percepções sensoriais lhe permitem lidar apenas com a realidade física mensurável.  A abordagem da dimensão transcendental que se revela no exercício da própria consciência reflexiva demanda abstração[1] do terceiro grau, num questionamento metafísico.  Neste nível de labor mental, a lógica da complexidade[2] permite vislumbrar,  ainda que de forma  tosca, a harmonia do Todo absoluto. Em linguagem mística a interação complexa universal corresponderia à “vontade de Deus” que tudo conduz para uma apoteose gloriosa por caminhos que escapam à compreensão da razão temporal.
No contexto da consciência reflexiva a dimensão temporal do homem revela-se no “agora” de onde ele entrevê intuitivamente o passado e o futuro separados pelo presente fugidio. Poder-se-ia representar o  “presente” como um cursor abstrato que se movimenta na linha do tempo. A consciência registra apenas o movimento, não se tem como aprisionar o momento exato em que o futuro se torna passado. Assim, a própria simultaneidade da situação vivida e de sua enunciação, se dilui em momentos rapidamente sucessivos; desse modo, a realidade percebida acaba sendo sempre uma atribuição da consciência pela escolha de um deles.
 O místico e o agnóstico assumem posturas opostas ante a realidade universal da qual apenas se comprova a dimensão temporal. Por sua fé, o místico vê no mundo visível, aparente, a presença permanente do Criador em Suas criaturas; enquanto o agnóstico limitado às possibilidades racionais concretas vê os acontecimentos evolucionários da matéria como simples determinações físico-químicas e biológicas anônimas. Do ponto de vista existencial, imediato, vivendo a sua crença, o místico exorciza o desamparo da consciência da própria finitude, enquanto o agnóstico não tem como defender-se da angústia de ser para a morte! Pois a coerência do vir a ser existencial do agnóstico limita-se ao horizonte temporal de um mundo que caminha inexoravelmente para um fim caótico medido pela entropia[3]! Na visão materialista as funções psíquicas superiores são apenas epifenômenos da matéria, e a morte biológica será o ponto final da jornada consciente. Detalhando as posturas opostas, enquanto o espiritualista é motivado por princípios éticos que transcendem o simples determinismo histórico, o materialista vê as práticas sociais, políticas e a própria solidariedade apenas como tentativas pragmáticas para disciplinar o egoísmo humano e viabilizar a organização social indispensável à sobrevivência da espécie. Mas sabe que o cosmo e a consciência pressupõem um “por que”, e como a matéria não pode explicar-se por si mesma, o agnóstico simplesmente ignora o princípio de tudo, até que a Ciência lhe dê a resposta (impossível para ela) de como tudo começou. Dessa forma a condição humana limitada ao tempo fica amputada na sua dimensão transcendental[4]. Para o Agnóstico o ideal humanístico se circunscreve ao melhor desempenho histórico da sociedade. Aliás, este ideal também faz parte da proposta do espiritualista. A diferença é que para este a realização histórica do homem apenas o prepara para uma experiência maior, intemporal. Em consequência, no foro íntimo do espiritualista o risco maior na sua existência histórica seria escorregar para um comportamento pragmático, cínico, em que bastasse “parecer ser”, em vez de “ser”. Isso representaria um descompromisso em relação ao exercício responsável da consciência, com implicações negativas na consumação da perfeição almejada. Deslize que, todavia, não sensibiliza o agnóstico pragmático comprometido apenas com seu desempenho histórico. Embora o espiritualista e o agnóstico humanista coincidam no comportamento formal, em algum momento. A ambos custa aceitar tacitamente a própria finitude biológica; no fundo todos anseiam transcender a condição temporal. Mas o materialista dá as costas à aconchegante possibilidade de integração numa transcendência absoluta providente e misericordiosa. E mesmo assim há agnósticos vivendo aparentemente em paz consigo mesmos! Um olhar imparcial sobre a questão mostra que, a existir, a paz estoica dos agnósticos materialistas, cuja espiritualidade se detém no horizonte temporal, é presunçosa e pouco convincente! A vitória do agnóstico materialista e do ateu sobre o Espírito é uma vitória de Pirro, dadas as perdas irreparáveis que impõe à realização plena da condição humana, por negar sua dimensão transcendental. A espiritualidade do agnóstico pode ser definida como um sentimento de identidade ideológica política, econômica e social sem envolvimento com valores transcendentais. É compreensível que essa postura cobre um custo existencial elevado, e empobreça o vir a ser consciente, mas não lhe rouba a dignidade quando é responsavelmente assumida. Todavia, confinar o fenômeno humano aos limites da realidade sensível, com certeza não atende integralmente a exigência de coerência da condição humana[5]. Analisado à luz da lógica da complexidade o devir humano ganha outra dimensão; abre-se um portal para o absoluto irrepresentável, que, não obstante verdadeiro, é indemonstrável. Realidade comparável às sentenças “indecidíveis” estudadas pelo matemático Kurt Gödel que afirma haver sentenças matemáticas verdadeiras que não se demonstram. Então é legítimo concluir que há um abismo entre a verdade e sua demonstração. Analogicamente, podemos afirmar que uma transcendência absoluta não é demonstrável, e nem por isso deixa de ser verdadeira.
Para concluir estas especulações lembro o esforço intelectual do genial Carl Gustav Jung, discípulo dissidente de Freud. Ele reconheceu a dimensão espiritual da condição humana. E tentou abordá-la como homem de ciência. Mergulhado em pesquisas psicológicas profundas através do estudo da simbologia das mandalas[6], no limite entre a ciência e o mito ele cunhou a locução “unos mundus” para  denominar uma realidade maior da qual os estados físico e psíquico são apenas aspectos diferentes.  Essa aventura intelectual provocou críticas da comunidade científica, porém mostrou a possibilidade de vincular a dimensão transcendental ao vir a ser consciente, mediante símbolos que estão vivos no inconsciente coletivo. 
Everaldo Lopes


[1] Ato de separar mentalmente um ou mais elementos de uma totalidade completa (coisa, representação, fato), os quais só mentalmente podem subsistir fora da totalidade.
[2] A lógica da complexidade diferentemente da lógica linear busca o diálogo em todas as direções e em todos os momentos. Tudo interage com tudo em todos os pontos e em todas as circunstâncias. Há uma circularidade e inclusão de todos os seres relacionados e de todas as relações.
[3] Medida da variação ou desordem em um sistema. Conforme o segundo princípio da Termodinâmica, num sistema fechado a impossibilidade de reaproveitar em trabalho parte do calor desprendido terminará por um esgotamento do sistema,


[4] Entende-se por condição humana a capacidade de ser consciente,  livre e responsável. Ora, a reflexão pessoal e a liberdade de escolher não se explicam  pelas interações sinápticas neuroniais! Logo, o exercício da condição humana exige aptidões que transcendem as possibilidades dos fenômenos fisiológicos abrindo espaço para a cogitação de uma intervenção sobrenatural.
[5] Capacidade de exercitar a consciência livre e responsavelmente
[6] Representação geométrica  da relação dinâmica entre o homem e o cosmo, composta de círculos e quadrados concêntricos. Segundo Jung, círculo mágico que representa simbolicamente a luta pela unidade total do “eu!.