terça-feira, 7 de março de 2017

Superação



Deparo uma foto na qual apareço entre alguns dos meus filhos e netos, numa festa familiar. Constato que cercado pela  juventude dos meus descendentes, amparado  pelo afeto  generoso dos entes queridos pareço mirrado, insignificante. Mas percebo-me ainda saudável e lúcido, uma bênção na minha idade já avançada. Agradeço, então, a Deus as reservas físicas e intelectuais que não me abandonaram ainda. Essa reflexão remete à tarefa nada fácil da humilde aceitação do envelhecimento sem perder a alegria de viver. Só há duas opções: viver amargurado com as marcas inevitáveis que o tempo vai imprimindo no perfil físico, ou encarar com bom humor  e criatividade o futuro incerto, apostando na possibilidade de enriquecê-lo de forma inteligente e esperançosa. Obviamente, é mais sensato fazer a segunda opção com ânimo combativo. Encorajado pela esperança, aceito o desafio, e predisponho-me a vivenciar a unidade da matéria e do espírito que me são constitutivos. Assim conto com assimilar intelectual e emocionalmente a mais perfeita intimidade entre ambos, convencido da vitória final do espírito, pela projeção da realidade psicossocial que experimento em minha vida temporal, transfigurada numa perfeição absoluta transtemporal. Dessa forma é possível apaziguar os temores habituais e viver as realidades cósmica e humana, integrando-as numa dimensão que transcende o tempo, convencido de, como homem, abrigar uma  alma imortal, perfectível. Essa contemplação coerente com especulações[1] transcendentais constitui a expressão cabal de uma espiritualidade que não se ressente das mudanças temporais. Nessa perspectiva vai se estruturando a superação dos temores e inquietações existenciais. Na verdade,  a vida e o equilíbrio psíquico alcançado como seres conscientes nos parecem verdadeiros milagres que refletem o espírito, princípio de tudo.
Há mais mistérios na sobrevivência de um organismo biológico do que pode supor nossa ciência circunscrita  a medições espaciais e temporais. O essencial, o que mantém  a integridade biológica funcional de  uma simples ameba não é analisável, escapa ao conhecimento objetivo, esconde a transcendentalidade do impulso criador absoluto. Os cientistas podem ser capazes de construir uma molécula original semelhante ao DNA, mas para fazê-la reproduzir-se (ter vida) e transmitir suas características individuais terão que usar um organismo vivo capaz de absorver o genoma artificial. Dessa forma, homens de ciência elaboram protocolos de experiências que se propõem criar vida no laboratório; todavia, ainda que fossem bem sucedidos, não teriam conseguido realizar este objetivo nos seus tubos de ensaio. Portanto, a incapacidade de a ciência produzir a vida em laboratório nos confere o direito de mergulhar mais fundo na contemplação de um absoluto criador intangível.
 Vivencio um profundo sentimento de admiração e reverência ao pensar que cada segundo de nossas vidas  depende do equilíbrio de alguns sextilhões de reações químicas integradas umas às outras num todo harmônico, renovando-se  continuamente  para que possamos existir. Seria impossível sequer imaginar o controle externo absoluto das relações funcionais entre as reações bioquímicas e os sistemas biológicos que garantem a vida, seja a de uma ameba seja a do homem. No complexo algoritmo de um organismo vivo há interações próximas e remotas tão caprichosas entre as reações físico-químicas inerentes aos vários órgãos dos sistemas aos quais pertencem, e dos próprios sistemas entre si,  que se torna impossível nesse nível elaborar um mapa da vida. Na origem de  tudo isso o sagrado anda de braços dados com o mistério que só se entremostra furtivamente no exercício da consciência reflexiva.
Na complexidade da estrutura molecular do universo estelar ocorrem transformações fantásticas; conversões da integração de partículas materiais insignificantes em organizações vitais com propriedades inteiramente diferentes da matéria bruta. Não obstante, é impossível distinguir onde termina a matéria e começa a vida. Tudo isso acontece, aparentemente, sem razão, mas, certamente, sob o comando da vontade absoluta de uma consciência universal; de outra forma seria necessário admitir o acaso que funcionaria na organização da matéria e da vida exatamente como um absoluto criador, como tal, também objeto de fé.
Mesmo incapazes de desenhar o mapa da vida, podemos entender que pequenas interferências num algoritmo de sobrevivência biológica tão complexo podem produzir efeitos  capazes de corrigir distúrbios iminentes destrutivos do organismo  vivo ou agravá-los. Que argumentos há para contradizer o poder sutil de intervenções ao nível bioquímico, capazes de interferir na dinâmica fisiológica responsável pela vida? Como negar que esta interferência seja capaz de influir  no conjunto das reações biológicas que garantem ou ameaçam a homeóstase[2] dos organismos vivos? No prolongamento dessas especulações, o poder da fé  na oração, e de influências benéficas decorrentes de fenômenos como a “ressonância límbica”[3] entre as pessoas tornam possibilidades reais o que parecia impossível. E uma postura rigidamente racional materialista deixa de fora muitas práticas sadias que enriqueceriam a vida consciente, livrando-nos de medos perturbadores.
Lamentavelmente não há uma didática convincente para ensinar a ter fé. Como o amor, a fé é um dom. Compete-nos apenas abrir a alma para a experiência da crença incondicional no espírito incriado para que este dom possa manifestar-se.
A consciência reflexiva também não se explica à luz da biologia neuronal. A complexidade do Sistema Nervoso Central que torna possível a manifestação das funções psíquicas superiores não  basta para justificar a natureza íntima destas funções; o homem, movido pela curiosidade é obrigado, então, a valer-se das verdades de fé  capazes de preencher com suposta entidade  imaterial (o espírito) as lacunas que resistem à análise cartesiana do processo psicobiológico da consciência reflexiva, do pensamento racional, da afetividade e da vontade.  A ciência não explica o ser consciente; para justifica-lo, o pensador utiliza-se, então, de uma plataforma especulativa da qual empreenderá o salto  transcendental   mediante introspecção iluminante apoiada pela  fé num absoluto criador.
No processo de percepção da consciência reflexiva introduz-se a intuição de verdades eternas que só a fé transforma  em realidades existenciais insofismáveis. Não podemos localizar na subjetividade do ser humano o ponto mágico dessas transformações, mas é evidente que só através da intimidade subjetiva espírito-matéria, pela fé,  nos conectamos com o próprio Criador do universo. Só num enlevo místico vislumbramos o toque deste Criador nas nossas vidas, conduzindo-nos docemente para o arremate de uma perfeição que se confunde com  a luminosidade do sagrado, fonte de tudo. A entrega a esta contemplação suaviza o temor incômodo de ser irremediavelmente suprimido da existência; e nos permite vislumbrar a possibilidade de uma transfiguração pessoal pela qual nos tornemos  participantes da eternidade.
Depois das ponderações feitas até aqui, razoáveis como possibilidades imagináveis, sinto que na minha subjetividade reforçam-se os laços inextrincáveis entre o espírito e a matéria que de fato são inseparáveis (a matéria não existe sem o espírito), e percebo que a angústia da finitude que me amofina se torna menos incômoda. Mas a consumação desse processo exige atitude de entrega confiante do ser consciente a um absoluto criador, experiência cujo caráter místico requer  a prática incondicional da fé, virtude que com a esperança e o amor (caridade[4]) dão sentido à existência. Essa realização é o arremate da verdadeira superação das contradições da existência[5].
Everaldo Lopes.


[1] Especulação - Investigação teórica, de natureza exploratória, sem apoio de evidência sólida
[2] Tendência à estabilidade do meio interno do organismo.

[3] Ressonância Límbica é uma capacidade dos mamíferos de entrar em sintonia com as  manifestações internas dos outros. É a capacidade de sentir e até mesmo entender o que o outro sente, é um fenômeno que podemos dizer físico, anatômico, psicológico e espiritual.
[4] No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de Deus. (Aurélio).
[5] Desejar ser eterno e sentir-se biologicamente limitado; desejar tudo conhecer e saber que terá sempre um conhecimento limitado; desejar realizar-se em plenitude e saber  que sua própria condição é de  ser criatura imperfeita, embora perfectível.