Recebi uma mensagem por
e-mail mostrando fotos de Brigitte Bardot nas várias fases da sua vida. As
fotografias denunciam a ação do tempo sobre o seu perfil corporal. No texto do
e-mail ao qual estava anexada a mensagem, um questionamento da minha filha:
- “O tempo é justo?”
- “Fisicamente,
definitivamente, acho que não”.
Projetei nesta
apreciação a minha própria relutância em aceitar a faina devastadora do
tempo... Fiquei matutando um pouco... A mente vagou, displicentemente, sobre o
envelhecimento. Lembrei-me das táticas de autoajuda que a título de compensação
tentam realçar as conquistas da idade avançada tais como o conhecimento, a
experiência de vida, a disciplina emocional, que coincidem com o aparecimento
das rugas e de outros sinais de decadência física... associação que não me
parece tão constante... E concentrei a
atenção na diferença essencial entre o tempo cósmico descontínuo (mensurável em
unidades) e o tempo subjetivo, contínuo, (in)delimitável... respectivamente, o
tempo do corpo (sujeito às leis da matéria) e o “tempo” (sem tempo) da alma,
sutil, vivido na intimidade subjetiva.
São dois momentos diferentes no todo existencial que tudo engloba. No tempo
interior o “eu” escolhe e decide, exerce o livre arbítrio, imprimindo colorido
estético e ético nas escolhas pessoais. As virtudes decantadas do idoso são
ecos espirituais desta experiência. Atentando para a (in)dissociabilidade
destes dois momentos não se pode deixar de reconhecer a intersecção da
imanência cósmica e da transcendência absoluta na intimidade subjetiva de cada
homem. Por conta disso o sujeito consciente reflexivo assiste do seu presente
eterno (atemporal em relação ao fluxo do tempo cósmico) ao envelhecimento do
servomecanismo biológico. O pensamento místico associa este referencial imóvel
à presença misteriosa do Espírito incriado (objeto de fé) que habita todas as
criaturas. Mas ao negar a perspectiva da atemporalidade, ou ignorando-a, o ser
humano reduz-se ao servomecanismo através do qual se manifesta a consciência...
e se descobre inexoravelmente tragado pela voragem do tempo físico, esmagado
pela finitude intransponível! Então, assim massacrado pela fragilidade do corpo
naturalmente sujeito ao envelhecimento e à morte, o homem diz que o tempo é
injusto. Tem uma intuição confusa da eternidade do espírito... e, participando existencialmente
das dimensões espiritual e cósmica sente dificuldade de contornar a tirania da
contingência muito mais dolorosa sem a ligação com seu fundamento
transcendental. É necessário um esforço especulativo para distinguir, na
“própria carne” as duas dimensões. O espírito não envelhece com a matéria
evanescente na qual se manifesta. Por isso o homem pode observar o caminhar do
tempo cósmico no próprio corpo. O grande desafio da condição humana é a
elaboração da antinomia: finitude x desejo de permanecer no ser, que coloca o
indivíduo diante da aparente contradição entre a eternidade e o tempo.
Contradição aparente porque `só a eternidade é real, o tempo e tudo que dele
depende são ilusões´. Esta visão cosmogônica monista espiritualista, absurda
para o Agnóstico, foi a grande intuição da espiritualidade hinduísta, sete
séculos antes de Cristo. Nesta perspectiva a matéria é uma projeção virtual do
Espírito eterno... Ideia que não passa de pura fantasia, do ponto de vista
materialista. Por outro lado, tomando por base este mesmo ponto de vista
materialista que nega qualquer transcendência não se pode dar uma explicação
racional para a origem do universo e para a ordem implícita, progressiva, no
micro e no macrocosmo. A Física Quântica oferece um respaldo teórico à tese da
cosmogonia monista espiritualista ao afirmar que os “seres” são possibilidades
tornadas realidades por escolha da “consciência não localizada”, admitindo
desta forma uma causalidade descendente que, a partir de um Todo absoluto induz
a complexificação da matéria, ressuscitando o velho conceito da consciência
universal, correspondente ao Deus Criador. Impulsionado por uma curiosidade
insistente, absorto nestas cogitações, comecei pensar nas duas formas de
encarar o tempo e na impertinência de julgar justo ou injusto o tempo que marca
a idade do corpo. Na verdade, o tempo cósmico é um fenômeno que em si mesmo
nada tem de justo ou injusto, é um acontecimento natural. No tempo interno da
experiência subjetiva é que se manifesta a consciência pessoal reflexiva que
permite ao “eu” pensante fazer atribuições pessoais assumindo a
responsabilidade inerente. Então a existência ingênua se permite achar que o
tempo é injusto. Todavia esta atribuição não resiste a uma análise
fenomenológica transcendental. A justiça e a injustiça são produtos do julgamento
humano sob a forma de atribuições inspiradas por afetos gratuitos. Na verdade,
o tempo cósmico não é réu de julgamento, ele não tem autonomia decisiva, é
apenas o caminho de uma sequência de fenômenos que obedecem a uma ordem sobre a
qual não tem controle. Como tal não pode ser considerado justo ou injusto.
A destruição da beleza
de Brigite ao longo dos anos é inerente à sua contingência material. Não foi o
tempo que a envelheceu, mas a fugacidade da própria realidade biológica da qual
o “tempo cósmico” e o “espaço” são os fundamentos fenomenológicos.
Everaldo Lopes