quarta-feira, 16 de maio de 2012

Cogitações sobre o tempo


Recebi uma mensagem por e-mail mostrando fotos de Brigitte Bardot nas várias fases da sua vida. As fotografias denunciam a ação do tempo sobre o seu perfil corporal. No texto do e-mail ao qual estava anexada a mensagem, um questionamento da minha filha:
- “O tempo é justo?”
- “Fisicamente, definitivamente, acho que não”.
Projetei nesta apreciação a minha própria relutância em aceitar a faina devastadora do tempo... Fiquei matutando um pouco... A mente vagou, displicentemente, sobre o envelhecimento. Lembrei-me das táticas de autoajuda que a título de compensação tentam realçar as conquistas da idade avançada tais como o conhecimento, a experiência de vida, a disciplina emocional, que coincidem com o aparecimento das rugas e de outros sinais de decadência física... associação que não me parece tão constante...  E concentrei a atenção na diferença essencial entre o tempo cósmico descontínuo (mensurável em unidades) e o tempo subjetivo, contínuo, (in)delimitável... respectivamente, o tempo do corpo (sujeito às leis da matéria) e o “tempo” (sem tempo) da alma, sutil,  vivido na intimidade subjetiva. São dois momentos diferentes no todo existencial que tudo engloba. No tempo interior o “eu” escolhe e decide, exerce o livre arbítrio, imprimindo colorido estético e ético nas escolhas pessoais. As virtudes decantadas do idoso são ecos espirituais desta experiência. Atentando para a (in)dissociabilidade destes dois momentos não se pode deixar de reconhecer a intersecção da imanência cósmica e da transcendência absoluta na intimidade subjetiva de cada homem. Por conta disso o sujeito consciente reflexivo assiste do seu presente eterno (atemporal em relação ao fluxo do tempo cósmico) ao envelhecimento do servomecanismo biológico. O pensamento místico associa este referencial imóvel à presença misteriosa do Espírito incriado (objeto de fé) que habita todas as criaturas. Mas ao negar a perspectiva da atemporalidade, ou ignorando-a, o ser humano reduz-se ao servomecanismo através do qual se manifesta a consciência... e se descobre inexoravelmente tragado pela voragem do tempo físico, esmagado pela finitude intransponível! Então, assim massacrado pela fragilidade do corpo naturalmente sujeito ao envelhecimento e à morte, o homem diz que o tempo é injusto. Tem uma intuição confusa da eternidade do espírito... e, participando existencialmente das dimensões espiritual e cósmica sente dificuldade de contornar a tirania da contingência muito mais dolorosa sem a ligação com seu fundamento transcendental. É necessário um esforço especulativo para distinguir, na “própria carne” as duas dimensões. O espírito não envelhece com a matéria evanescente na qual se manifesta. Por isso o homem pode observar o caminhar do tempo cósmico no próprio corpo. O grande desafio da condição humana é a elaboração da antinomia: finitude x desejo de permanecer no ser, que coloca o indivíduo diante da aparente contradição entre a eternidade e o tempo. Contradição aparente porque `só a eternidade é real, o tempo e tudo que dele depende são ilusões´. Esta visão cosmogônica monista espiritualista, absurda para o Agnóstico, foi a grande intuição da espiritualidade hinduísta, sete séculos antes de Cristo. Nesta perspectiva a matéria é uma projeção virtual do Espírito eterno... Ideia que não passa de pura fantasia, do ponto de vista materialista. Por outro lado, tomando por base este mesmo ponto de vista materialista que nega qualquer transcendência não se pode dar uma explicação racional para a origem do universo e para a ordem implícita, progressiva, no micro e no macrocosmo. A Física Quântica oferece um respaldo teórico à tese da cosmogonia monista espiritualista ao afirmar que os “seres” são possibilidades tornadas realidades por escolha da “consciência não localizada”, admitindo desta forma uma causalidade descendente que, a partir de um Todo absoluto induz a complexificação da matéria, ressuscitando o velho conceito da consciência universal, correspondente ao Deus Criador. Impulsionado por uma curiosidade insistente, absorto nestas cogitações, comecei pensar nas duas formas de encarar o tempo e na impertinência de julgar justo ou injusto o tempo que marca a idade do corpo. Na verdade, o tempo cósmico é um fenômeno que em si mesmo nada tem de justo ou injusto, é um acontecimento natural. No tempo interno da experiência subjetiva é que se manifesta a consciência pessoal reflexiva que permite ao “eu” pensante fazer atribuições pessoais assumindo a responsabilidade inerente. Então a existência ingênua se permite achar que o tempo é injusto. Todavia esta atribuição não resiste a uma análise fenomenológica transcendental. A justiça e a injustiça são produtos do julgamento humano sob a forma de atribuições inspiradas por afetos gratuitos. Na verdade, o tempo cósmico não é réu de julgamento, ele não tem autonomia decisiva, é apenas o caminho de uma sequência de fenômenos que obedecem a uma ordem sobre a qual não tem controle. Como tal não pode ser considerado justo ou injusto.
A destruição da beleza de Brigite ao longo dos anos é inerente à sua contingência material. Não foi o tempo que a envelheceu, mas a fugacidade da própria realidade biológica da qual o “tempo cósmico” e o “espaço” são os fundamentos fenomenológicos.
Everaldo Lopes