sábado, 27 de agosto de 2011

Construindo uma visão de mundo coerente


A observação dos dados conhecidos sobre a história do mundo mostra a coerência do processo evolutivo desde a matéria primitiva, objetivando a vida consciente. Este fato demonstrável constitui-se em base sólida para a construção de uma visão de mundo convincente.  Teilhard de Chardin[1] chamou a atenção, repetidamente, para a complexidade crescente da matéria em organizações cada vez mais complicadas, deste o “big bang”. Evolução que se comprova pelo estudo da trajetória evolutiva do cosmo até a emergência da vida e, finalmente, a eclosão da consciência.
Impõe-se, então a pergunta: como tudo isso começou? Os pensadores se dividem entre  o acaso e  a intervenção de um ordenador supremo – o Criador? Contra a primeira proposta explicativa levanta-se uma limitação de tempo.   Segundo estimativas estatísticas descritas por Lecomte du Nouy[2],  a Evolução do cosmo teria chegado, hoje, no máximo, à produção de uma molécula proteica das mais simples. Daí porque, tendo em vista o estádio evolutivo da matéria alcançado em nossos dias, aceitar que  tudo resultou da sucessão de acasos felizes altamente improváveis levaria a admitir a necessidade de um “anti acaso”[3] que, epistemologicamente, assumiria as características do Criador.  Diante disto, a lógica racional ratifica a hipótese criacionista. Embora a ideia de um Criador, necessariamente cifrado na própria criação [4] seja, aparentemente, tão fantástica quanto a geração casual do Universo ou a eternidade da matéria. Todavia a complexidade crescente da matéria revela, necessariamente, uma intenção implícita comandando o processo evolutivo que, de outra forma não teria caminhado bilhões de anos fiel ao projeto de uma consciência reflexiva. Como uma extensão desse raciocínio, sendo a “intenção” um fenômeno da esfera da consciência, a ordem crescente à qual obedeceu a organização da matéria pressupõe uma Consciência Absoluta (Deus), berço do Universo. Assim, a tese espiritualista, criacionista ganha corpo e a ela nos filiamos,  por coerência especulativa, embora não se possa prová-la, objetivamente.
Dado este primeiro passo surge outra questão. A afirmação de um Criador implica a necessidade de definir a Sua relação com a criatura consciente, o homem, e o lugar deste no plano da Criação.  A emergência da consciência conata da liberdade individual é o ponto crítico da Evolução. Não se pode entender liberdade sem consciência e vice-versa. No roteiro evolutivo, este ponto crítico se caracteriza pelo desvio processual, da linearidade determinista das reações físico-químicas e feedbacks biológicos indispensáveis, para a tomada de decisões livres e conscientes inerentes a uma complexidade que torna imprevisível o comportamento humano. O homem (ser consciente e responsável[5]) passou a ser o divisor de águas da Evolução, agora voltada para a organização social, política e econômica da sociedade. O papel do homem no contexto da Evolução é o de promover a comunidade humana, ou seja, a convivência comunitária alicerçada na solidariedade que é fundamental para a sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens. Mas, consciência livre e responsável implica no livre arbítrio. Em razão disto o homem tornou-se um ser problemático, de vez que pode desgarrar-se “momentaneamente” do plano do Criador. Para evitá-lo ele se impõe o dever de escolher o caminho do equilíbrio existencial, integrando-se, harmoniosamente, na consciência universal. Nesse perfil comportamental, para fazer suas escolhas o homem define uma estrutura de orientação ligada a uma visão de mundo correspondente à tese espiritualista criacionista. Nessa perspectiva a matéria não resume toda realidade, e a consciência não é apenas um epifenômeno dela dependente, mas uma manifestação do Espírito Eterno (criador) que manipula a matéria com propósitos que a transcendem e vão além do próprio homem. A relação entre a liberdade absoluta (do Criador) e a liberdade contingente (da criatura) é um dos capítulos mais árduos da Teologia e não tenho fôlego para mergulhar tão fundo,   embora reconheça que ambas se encontram no exercício da consciência responsável. Na trilha desse encontro se revela a ética da solidariedade  que garante a sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens.   Todo esforço normativo implícito na obediência a esse valor visa, em última análise, ajudar a resolver a problemática do ser consciente ao exercitar sua própria liberdade sem ferir a do “outro”, e sem sucumbir às incertezas do vir a ser, fonte da angústia existencial.
Impõe-se, portanto, indagar como consolidar a paz e a tranquilidade do homem (indivíduo) face à consciência da própria finitude e da inevitabilidade da morte. Seria  possível ao ser consciente conviver sem sobressaltos com sua condição de ser para a morte? A experiência milenar da humanidade demonstra que a consciência da finitude e o desejo de permanecer no “ser” são os polos de uma contradição inerente à condição humana. Como tal ela (a contradição) pode ser elaborada, mas nunca resolvida com naturalidade. Na busca de uma explicação que permitisse uma abordagem resolutiva para a problemática humana  criaram-se os mitos, as religiões e desenvolveu-se o pensamento filosófico metafísico. Mas só a experiência mística pode dar ao homem a verdadeira dimensão de suas  possibilidades existenciais, e uma resposta cabal aos seus anseios transcendentais.
Na maior parte do tempo temos de conviver com a consciência da precariedade da existência. Certamente, nesta perspectiva o estado de espírito acompanhante é influenciado pela ideia que fazemos da morte. Um sono eterno, sem sonhos(?), ou a possibilidade da vivência plena  da verdade, da beleza e da bondade com que sonhamos a vida inteira e sempre nos escaparam? São duas visões diferentes correspondentes, respectivamente, à mundividência materialista, e à espiritualista que fazem eco no “ser” consciente. De um lado, é comovente o desamparo do materialista ateu diante da aceitação tácita do fim inevitável. Para os espiritualistas criacionistas tudo depende do tipo de relação vivida na subjetividade individual, entre a criatura e o Criador. Neste grupo me incluo, participando da crença na “cosmogonia criacionista, espiritualista, monista” . Na verdade, não me parece compatível com a concepção de um Deus único, qualquer tipo de maniqueísmo, portanto, tudo deverá culminar, necessariamente, numa apocatástase[6] consistente na salvação final de todos os homens, ou seja, “...na restauração final de todas as coisas na unidade absoluta de Deus”. Tese proposta por Orígenes e condenada pelo Santo Ofício, como heresia, no século III da era cristã.
Não obstante o fundamento ontológico da espiritualidade assim concebida, não se está impedido de construir uma estrutura de orientação prática para o comportamento humano. Tomando a Evolução como um dos fundaments da realidade conhecida pode-se construir uma ética racional que garanta a sustentabilidade da Evolução. Mas o comportamento puramente ético apenas atende os requerimentos sociais, não satisfaz, plenamente, o desejo humano de transcendência absoluta que caracteriza o ser consciente. Por isso, a elaboração da angústia existencial  difere entre materialistas e espiritualistas. O materialista esbarra na postura estoica, convencido de que nada mais há depois da morte, enquanto o espiritualista alimenta a esperança de desfrutar a plenitude inexcedível do “ser”, depois da morte, mercê da misericórdia do Criador, necessariamente, fonte inesgotável de amor. 
Para a nossa visão espiritualista, não eclesiástica, a opção mais coerente do ser consciente é manter-se totalmente submisso à vontade do Criador impressa nas leis da Natureza, fiel à consciência da verdade e da justiça que devem presidir as relações humanas. Uma postura ética racional compatível com a responsabilidade do homem de cumprir o seu papel no processo evolucionário. Na sua precariedade contingente a criatura não tem como ganhar merecimento para cobrar do criador uma intervenção pessoal nas dificuldades inevitáveis que lhe sobrevêm durante a vida. Teoricamente, esta é a perspectiva da relação criatura / Criador no  catecismo humanista racional; tudo que a criatura recebe é por pura misericórdia divina, contrastando com a proposta eclesial que antropomorfiza Deus, e garante ao crente ganhar a interseção divina mediante suas  orações e pedidos. Não obstante, as Religiões ocupam lugar de destaque na história do homem. A opção por uma das posturas espiritualistas passa a depender da sensibilidade de cada um. Cabe aqui lembrar, a bem da verdade, a repercussão psicológica benéfica dos rituais religiosos na atitude psíquica afetiva do homem, e nas suas relações sociais (intersubjetivas). Há grandes experimentos coletivos que demonstram ser a convergência de muitas mentes no sentido de um objetivo colimado, determinante da sua concretização. Para os verdadeiros místicos, porém, é marcante a intimidade subjetiva, pacífica e enriquecedora com o Criador, sem intermediários, e através dele a comunhão com o Universo inteiro. Orar seria conversar com Deus. A forma como se desenvolve a relação criatura / Criador depende, então, do temperamento do crente, do seu quociente intelectual e emocional, bem como de fatores indeterminados que arrolamos como imponderáveis. No conjunto, estas atitudes subjetivas e as circunstâncias em que vivem as pessoas, delimitam sua espiritualidade. Há inclusive as que necessitam da caracterização simbólica da transcendência, a fim de exercitar sua espiritualidade mediante rituais institucionalizados. O papel das religiões convencionais é, exatamente, traduzir em sinais palpáveis, criados pela fé, o símbolo abstrato de um Poder superior incompreensível à luz da razão, mas vivenciado como presença sutil no mais íntimo da subjetividade.
Everaldo Lopes


[1] Pe. Jesuita, Teólogo, Filósofo e Paleontólogo francês.
[2] Biofísico francês e Filósofo.
[3] Artur Edington – Astrofísico inglês
[4] Sem o suporte de um “Dinamismo absoluto eternamente criativo” a matéria (contingência)não teria condições de subsistência.
[5] Esta é, a meu ver, a definição antropológica mais fiel à realidade.
[6] Retorno de todos os seres à sua condição original de ausência de culpa, esp., nas tradições judaico-cristãs, pela graça da redenção divina (Houauss 3)


[7] Que inspira “fascinação”, “terror” e “aniquilamento”... Sentimento numinoso, termo cunhado por Rudolph Otto Teólogo Alemão.