Mais cedo ou mais tarde o
homem tem a consciência clara de sua
finitude. Não creio que de posse das faculdades mentais alguém seja totalmente
indiferente ao incômodo de assumir o envelhecimento e o limite da morte. É
notório que o medo de morrer, nem sempre confessado com humildade, é o maior
dentre todos os medos despertados na subjetividade humana; isso vale para todo
mundo, porém, por motivos óbvios, se torna mais aflitivo depois dos oitenta
anos. A elaboração[1]
da expectativa de ser vulnerável às doenças, às perdas inerentes à idade
avançada e à morte, bem como a força necessária para vivê-la (a expectativa)
sem deprimir exigem alto nível de integração pessoal.
A degringolada, física, da memória, da
criatividade e da disposição de enfrentar o novo reduz a atividade
do idoso a rotinas repetitivas, e intensifica sua preocupação com o que está
por vir de pior no futuro imediato. Na medida em que a idade avança cresce o
interesse pelo destino depois da morte intensificando-se a angústia existencial.
Para reagir aos estragos deixados na esteira do tempo as pessoas adotam diferentes formas de conduta. Todos sabem que a plenitude da
experiência mística é a fórmula infalível para uma existência sem medo, rica de
sentido. Esta plenitude é alcançada através da doação pessoal incondicional à
vontade do Criador, que coincide com a forma radical de praticar o amoroso
desapego à vida. Lamentavelmente, muitas Igrejas transformam a prática
religiosa numa relação ética disciplinar em que o descumprimento das normas que preconizam levaria
o fiel à condenação eterna. Além do que os
pregadores insistem em associar o progresso material à obediência à palavra de
Deus revelada nos livros sagrados. Essa associação coloca o crente numa relação
de troca em que a obediência aos preceitos recomendados o torna credor da graça
divina (benefícios). Embora pressuposta
teoricamente, nesta relação não é enfatizada a solidariedade, virtude que
preside a comunidade universal dos homens, fulcro da verdadeira religiosidade. Todavia
a experiência religiosa autêntica é movida pelo amor-caridade[2] e não por uma troca de
favores entre Deus e a criatura humana. O diálogo místico se realiza através da
relação entre os irmãos de fé unidos em comunidade. Nesse sentido, particularizando,
a missa não simbolizaria um face a face de cada pessoa com o Criador, mas uma
reunião de homens de boa vontade na qual
Deus se faz presente,[3] ou seja revela-se na
sua criatura. O conteúdo sacramental da missa é a confraternização ou comunhão
dos fieis solidários reunidos em caráter comunitário. O padre oficiante, o
templo, o cerimonial seguido à risca são apenas detalhes da confraternização
festiva entre os fieis, refletindo a solidariedade vivida no dia a dia da
comunidade cristã. Em resumo o compromisso com a solidariedade comunitária é o
fundamento de todos os sacramentos. Com isso queremos enfatizar que religião é
vida e não um ritual apenas.
Sabemos que muitos
homens de boa vontade, justos e solidários não estão filiados formalmente a uma
igreja. Para estes, aparentemente
desligados de uma visão mística da realidade, a relação respeitosa e solidária
com o próximo é uma extensão da afirmação de sua própria dignidade ao exercitar
a condição humana. Nas suas relações com as pessoas eles se esforçam para entender
o outro
imaginando-se sob sua pele (fazendo empatia). Igualmente, sabem que não
é razoável a pretensão de ter merecimento diante de Deus. Isso seria admitir
que a criatura humana tivesse o poder de influir na vontade do criador, quando
não passamos de receptores de Sua misericórdia gratuita e generosa. Os que
vivem com dignidade a condição humana reproduzem, pois, um comportamento laico
compatível com a conduta religiosa dos que se dizem crentes. Como os que
professam autenticamente um credo religioso, fazem a sua parte priorizando a
solidariedade que deve presidir a comunidade humana.
A capacidade de cultivar o amoroso desapego à
vida está implícita na prática da solidariedade comunitária. Este desapego
caminha na direção da doação mística incondicional inerente ao amor caridade que
é o antídoto eficaz contra o desalento do envelhecimento e o medo de morrer. É
oportuno salientar que o comportamento solidário exige do sujeito consciente um
redimensionamento psíquico que não se pode impor. Acontece como uma graça que
supera o ranço egoísta de nossa ancestralidade animal. Todavia para recebê-la é
preciso estar aberto à experiência caridosa. Tendo em vista facilitar a
caminhada existencial nessa direção é
salutar que o indivíduo se condicione a algumas atitudes indispensáveis às
relações solidárias. Inicialmente impõe-se a predisposição determinada para
dialogar sem preconceitos visando a convivência pacífica com as diferenças
acidentais entre as pessoas, sem desrespeitar os princípios básicos (lógicos e
éticos) do humanismo integral. Ao mesmo tempo isso implica em disciplinar as
emoções.
A vida comunitária por
si mesma é capaz de dissipar muitos medos mas ante a inquietação despertada
pela consciência da finitude é preciso desenvolver um esforço racional no
sentido de conceber a morte como transição e não como fim. O nascimento também
é uma transição. Somos o que somos em função de muitos fatores desconhecidos
que precederam a nossa entrada no mundo. Fatores biológicos, sociais e
econômicos (facticidade[4]) alheios à nossa
vontade, que se anteciparam ao nascimento,
influíram nas características biotipológicas que possuímos, além de delimitar
nosso caráter através do tipo de família em que nascemos, da educação
intelectual e emocional que recebemos e das condições sanitárias e culturais
nas quais vivemos a infância e a
adolescência. Contudo, ao desconhecido antes do nascimento segue-se o ser
humano problemático mas real, possuidor dos instrumentos necessários
(consciência, razão e vontade) para administrar o seu vir a ser; e por isso o
nascimento não é tão questionado. O mesmo não acontece com o passamento pela
morte da vida para o desconhecido, visto que depois dela nada podemos afirmar
com rigor. Por isso mesmo nos angustiamos diante da certeza implacável de
sermos finitos, e a morte é tão questionada.
No encalço da superação
da ressaca moral deixada pela consciência da finitude é fundamental poder desenvolver o amoroso
desapego à vida, e é auspiciosa a percepção de que a própria existência é parte
de um “todo absoluto” no qual temos a missão de integrá-la. Não menos
importante para alcançar o objetivo colimado é visualizar a morte, também, como
possibilidade de libertação da dor física, de toda hesitação e sofrimento
moral, de todo desencanto estético, e do próprio sentimento doloroso de
finitude. Ao mesmo tempo é sábio enfrentar a existência com otimismo crítico, convicto
de que ninguém perde o que nunca teve. Se amou e foi amado guardará disto
imorredoura lembrança. No caso contrário não adianta lamentar experiências existenciais
capengas vividas no passado. Elas deixaram
desgosto, mas proporcionaram oportunidades de crescimento pessoal para
os seus protagonistas. Afinal a verdade é que em grande parte somos o fruto das
nossas escolhas. E não teremos muito a lamentar se nos empenharmos em viver o
momento que flui, com autenticidade, respeitando o compromisso assumido com um
projeto humanístico integral que dê sentido à existência. Nesse patamar existencial
a plenitude interior resulta na serenidade inerente à intuição da unidade do todo absoluto no qual estamos
contextualizados. Na unidade divina que
nos inclui se anulam todas as diferenças e conflitos.
Ao
assimilar essas propostas estamos disciplinando os nossos medos, ao tempo em
que criticamente conscientes da fugacidade
de tudo que é temporal nos predispomos a não ficar presos às experiências
efêmeras do nosso vir a ser pessoal. O que não significa desprezá-las, porém
vive-las com intensidade e dignidade, desfrutando-as enquanto duram sem a
pretensão de eternizá-las.
Everaldo Lopes
[1] Elaboração – Processo
mental de reorganização e ajuste dos aspectos psíquicos de uma experiência existencial.
[2] No vocabulário cristão, o
amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem.
[3] Pois onde se reunirem dois
ou mais em meu nome, aí estarei entre eles. Hebreus 10:25
[4] Facticidade – Caráter
próprio da condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já
comprometido com uma situação não escolhida.