segunda-feira, 2 de março de 2015

Desenvolvendo o amoroso desapego à vida


Mais cedo ou mais tarde o homem tem a consciência  clara de sua finitude. Não creio que de posse das faculdades mentais alguém seja totalmente indiferente ao incômodo de assumir o envelhecimento e o limite da morte. É notório que o medo de morrer, nem sempre confessado com humildade, é o maior dentre todos os medos despertados na subjetividade humana; isso vale para todo mundo, porém, por motivos óbvios, se torna mais aflitivo depois dos oitenta anos. A elaboração[1] da expectativa de ser vulnerável às doenças, às perdas inerentes à idade avançada e à morte, bem como a força necessária para vivê-la (a expectativa) sem deprimir exigem alto nível de integração pessoal.
             A degringolada, física, da memória, da criatividade e da disposição de enfrentar o novo reduz a atividade do idoso a rotinas repetitivas, e intensifica sua preocupação com o que está por vir de pior no futuro imediato. Na medida em que a idade avança cresce o interesse pelo destino depois da morte intensificando-se a angústia existencial. Para reagir aos estragos deixados na esteira do tempo as  pessoas adotam diferentes formas de  conduta. Todos sabem que a plenitude da experiência mística é a fórmula infalível para uma existência sem medo, rica de sentido. Esta plenitude é alcançada através da doação pessoal incondicional à vontade do Criador, que coincide com a forma radical de praticar o amoroso desapego à vida. Lamentavelmente, muitas Igrejas transformam a prática religiosa numa relação ética disciplinar em que  o descumprimento das normas que preconizam levaria o  fiel à condenação eterna. Além do que os pregadores insistem em associar o progresso material à obediência à palavra de Deus revelada nos livros sagrados. Essa associação coloca o crente numa relação de troca em que a obediência aos preceitos recomendados o torna credor da graça divina (benefícios).  Embora pressuposta teoricamente, nesta relação não é enfatizada a solidariedade, virtude que preside a comunidade universal dos homens, fulcro da verdadeira religiosidade. Todavia a experiência religiosa autêntica é movida pelo amor-caridade[2] e não por uma troca de favores entre Deus e a criatura humana. O diálogo místico se realiza através da relação entre os irmãos de fé unidos em comunidade. Nesse sentido, particularizando, a missa não simbolizaria um face a face de cada pessoa com o Criador, mas uma reunião de homens de boa vontade  na qual Deus se faz presente,[3] ou seja revela-se na sua criatura. O conteúdo sacramental da missa é a confraternização ou comunhão dos fieis solidários reunidos em caráter comunitário. O padre oficiante, o templo, o cerimonial seguido à risca são apenas detalhes da confraternização festiva entre os fieis, refletindo a solidariedade vivida no dia a dia da comunidade cristã. Em resumo o compromisso com a solidariedade comunitária é o fundamento de todos os sacramentos. Com isso queremos enfatizar que religião é vida e não um ritual apenas.
Sabemos que muitos homens de boa vontade, justos e solidários não estão filiados formalmente a uma igreja.  Para estes, aparentemente desligados de uma visão mística da realidade, a relação respeitosa e solidária com o próximo é uma extensão da afirmação de sua própria dignidade ao exercitar a condição humana. Nas suas relações com as pessoas eles se esforçam para entender o  outro  imaginando-se sob sua pele (fazendo empatia). Igualmente, sabem que não é razoável a pretensão de ter merecimento diante de Deus. Isso seria admitir que a criatura humana tivesse o poder de influir na vontade do criador, quando não passamos de receptores de Sua misericórdia gratuita e generosa. Os que vivem com dignidade a condição humana reproduzem, pois, um comportamento laico compatível com a conduta religiosa dos que se dizem crentes. Como os que professam autenticamente um credo religioso, fazem a sua parte priorizando a solidariedade que deve presidir a comunidade humana.
 A capacidade de cultivar o amoroso desapego à vida está implícita na prática da solidariedade comunitária. Este desapego caminha na direção da doação mística incondicional inerente ao amor caridade que é o antídoto eficaz contra o desalento do envelhecimento e o medo de morrer. É oportuno salientar que o comportamento solidário exige do sujeito consciente um redimensionamento psíquico que não se pode impor. Acontece como uma graça que supera o ranço egoísta de nossa ancestralidade animal. Todavia para recebê-la é preciso estar aberto à experiência caridosa. Tendo em vista facilitar a caminhada existencial  nessa direção é salutar que o indivíduo se condicione a algumas atitudes indispensáveis às relações solidárias. Inicialmente impõe-se a predisposição determinada para dialogar sem preconceitos visando a convivência pacífica com as diferenças acidentais entre as pessoas, sem desrespeitar os princípios básicos (lógicos e éticos) do humanismo integral. Ao mesmo tempo isso implica em disciplinar as emoções.
A vida comunitária por si mesma é capaz de dissipar muitos medos mas ante a inquietação despertada pela consciência da finitude é preciso desenvolver um esforço racional no sentido de conceber a morte como transição e não como fim. O nascimento também é uma transição. Somos o que somos em função de muitos fatores desconhecidos que precederam a nossa entrada no mundo. Fatores biológicos, sociais e econômicos (facticidade[4]) alheios à nossa vontade, que se anteciparam ao  nascimento, influíram nas características biotipológicas que possuímos, além de delimitar nosso caráter através do tipo de família em que nascemos, da educação intelectual e emocional que recebemos e das condições sanitárias e culturais nas quais  vivemos a infância e a adolescência. Contudo, ao desconhecido antes do nascimento segue-se o ser humano problemático mas real, possuidor dos instrumentos necessários (consciência, razão e vontade) para administrar o seu vir a ser; e por isso o nascimento não é tão questionado. O mesmo não acontece com o passamento pela morte da vida para o desconhecido, visto que depois dela nada podemos afirmar com rigor. Por isso mesmo nos angustiamos diante da certeza implacável de sermos finitos, e a morte é tão questionada.
No encalço da superação da ressaca moral deixada pela consciência da finitude  é fundamental poder desenvolver o amoroso desapego à vida, e é auspiciosa a percepção de que a própria existência é parte de um “todo absoluto” no qual temos a missão de integrá-la. Não menos importante para alcançar o objetivo colimado é visualizar a morte, também, como possibilidade de libertação da dor física, de toda hesitação e sofrimento moral, de todo desencanto estético, e do próprio sentimento doloroso de finitude. Ao mesmo tempo é sábio enfrentar a existência com otimismo crítico, convicto de que ninguém perde o que nunca teve. Se amou e foi amado guardará disto imorredoura lembrança. No caso contrário não adianta lamentar experiências existenciais capengas vividas no passado. Elas deixaram  desgosto, mas proporcionaram oportunidades de crescimento pessoal para os seus protagonistas. Afinal a verdade é que em grande parte somos o fruto das nossas escolhas. E não teremos muito a lamentar se nos empenharmos em viver o momento que flui, com autenticidade, respeitando o compromisso assumido com um projeto humanístico integral que dê sentido à existência. Nesse patamar existencial a plenitude interior resulta na serenidade inerente à intuição da  unidade do todo absoluto no qual estamos contextualizados.  Na unidade divina que nos inclui se anulam todas as diferenças e conflitos.
            Ao assimilar essas propostas estamos disciplinando os nossos medos, ao tempo em que criticamente conscientes da fugacidade de tudo que é temporal nos predispomos a não ficar presos às experiências efêmeras do nosso vir a ser pessoal. O que não significa desprezá-las, porém vive-las com intensidade e dignidade, desfrutando-as enquanto duram sem a pretensão de eternizá-las. 
 
Everaldo Lopes



[1] Elaboração – Processo mental de reorganização e ajuste dos aspectos psíquicos  de uma experiência existencial.
[2] No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem.
[3] Pois onde se reunirem dois ou mais em meu nome, aí estarei entre eles. Hebreus 10:25
[4] Facticidade – Caráter próprio da condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já comprometido com uma situação não escolhida.