segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A hora da decisão

            Embora boa parte do comportamento humano seja culturalmente estabelecida, a todo instante cada um é desafiado a escolher e a agir criativa e coerentemente. Coerência inspirada no autorrespeito, no respeito ao próximo e à natureza tendo em vista a consecução de uma meta humanística nobre. A hora da decisão está sempre no presente psicológico definido em texto anterior como o “agora”. Ou seja, o intervalo que abrange os segmentos imediatos do passado e do futuro,  separados por um corte no tempo - o presente  ontológico[1] - janela da eternidade. As decisões maiores se referem ao que cada indivíduo pode e deve fazer da própria existência, como realizar as potencialidades pessoais, como comportar-se diante de questões econômicas, políticas e sociais, harmonizando objetivos pessoais e coletivos. As decisões menores estão relacionadas ao modo como aproveitar as horas ociosas no vir a ser pessoal. Mas todas as decisões envolvem algum tipo de responsabilidade inerente ao exercício da condição humana[2]. As escolhas e decisões definem o modo de ser próprio de cada um.
Ao confrontar sua realidade existencial o homem pode ser otimista ou pessimista, objetivo, racional, ou entregue a fantasias românticas, senhor do seu próprio nariz ou dependente da opinião alheia, confiante ou falto de esperança. Mas não pode fugir da responsabilidade inerente ao exercício da liberdade inseparável da condição humana. A tarefa de existir não é fácil, ao contrário é exigente. Basta lembrar que construímos nossa existência em torno de valores éticos que são preceitos capazes de guiar a ação humana, e que de modo relativo ou absoluto são tidos ou  devem ser tidos como objetos de estima ou desejo. Nesta perspectiva, a menos que esteja embasado no amor, o comportamento ético não ocorre naturalmente no vir a ser pessoal. Sem amor, o homem se impõe agir eticamente por dever. Pivô da existência, o valor ético constitui-se no referencial do caráter pessoal. A existência está sempre referida à contextualização cultural do vir a ser humano num todo significativo, à sombra dos valores éticos assumidos. Nesse sentido é indispensável o exercício coerente da consciência livre e responsável fundamentada em princípios éticos. Princípios que são impessoais e exigem a disciplina da tendência egoica dos indivíduos. O equilíbrio do comportamento humano nas relações psicossociais que não se inserem num contexto amoroso  fica, portanto, na dependência de uma prática voluntariamente adotada. Diante das alternativas entre as quais necessita fazer sua opção, o indivíduo vivencia não raro o conflito íntimo de suas dimensões racional e afetiva. Neste momento torna-se necessário o esforço voluntário para agir corretamente. E como grande parte do psiquismo humano funciona abaixo do plano consciente, para salvaguardar a ordem social é fundamental a interdição dos impulsos inconscientes egoísticos conflitantes com os valores assumidos. Sem a interdição necessária das pulsões egoísticas antissociais não há civilização.
Para os que creem, Deus se revela através de intuições que também emergem dos planos inconscientes da psique. E em parceria com o homem seu Criador o conduz equilibrado sobre o fio da navalha de um vir a ser incerto em busca da realização suprema que encerra a expectativa de felicidade plena. A sabedoria e a santidade evoluem com o reconhecimento e superação ou aceitação criativa das limitações impostas pela contingência da condição humana. Na verdade, o homem sobrevive milagrosamente no meio da impermanência de tudo. É muito estreita a faixa de segurança do seu devenir, no qual ele conta apenas com um poder limitado de controlar as vicissitudes da contingência circunstancial. Do ponto de vista biológico, o equilíbrio instável é necessário ao dinamismo da vida; deve-se pois cultivar este equilíbrio e não a expectativa da estabilidade que no processo vital corresponde à morte do organismo vivo. Nestes termos algum controle é sempre possível, mas não se podem descartar os imprevistos, e muitas situações imutáveis. Por outro lado como ser consciente o homem precisa transcender-se permanentemente, e neste processo existencial o limite é o absoluto. A necessidade humana de transcender só se satisfaz na completude unitária do absoluto. O controle do equilíbrio fisiológico instável e a administração da capacidade de transcender exigem respectivamente autonomia da vontade e criatividade. Virtudes essenciais para atender aos cuidados sanitários biologicamente requeridos, e à inovação pessoal mediante superação individual dos próprios limites.
            A paz cai mansamente sobre quem reconhece sua impotência como ser contingente, e mergulha de olhos fechados no porvir desconhecido, arrimado nos valores assumidos e confiante na misericórdia divina. O suporte racional mais forte para esta aceitação repousa na compreensão de que no âmbito do absoluto (por definição, único) se consuma a solução de todos os problemas existenciais. Usando o vocabulário teológico diríamos que de Deus (absoluto) tudo provém e a Ele tudo retorna num movimento infinito no qual tudo se integra, anulando-se todas as contradições existenciais. Este background especulativo ampara a confiança na consumação harmoniosa da realidade universal embora se ignorem os detalhes imponderáveis do percurso até esse desfecho. Esta seria a única forma de o ser consciente ficar mais à vontade diante do seu destino histórico incerto, fortalecido pela certeza de fé num arremate glorioso para a existência.  Nas horas de crise nas quais não se vislumbra como integrar a existência numa realidade significativa confortável, a afirmação especulativa da consumação harmoniosa da existência alimenta a fé no arremate perfeito da realidade temporal no horizonte da eternidade.  Amparado nesta crença, nos momentos difíceis da vida resta pedir humildemente o amparo transcendental. Nesse instante crucial ajuda muito o saber especulativo de uma ordem suprema inerente à perfeição do Absoluto criador. Aqui vale lembrar o comportamento exemplar que o Mestre dos mestres nos deixou. Em situação de extrema vulnerabilidade Ele suplicou: “Senhor, se for possível afastai de mim este cálice!” Não negou seu desejo de aliviar-se da dor moral e física, mas permaneceu confiante e submisso à vontade divina. No percurso da existência o homem constrói um protocolo que lhe permita controlar com mais segurança o devir existencial sobreposto ao puro dinamismo vital. Mas há sempre limites inerentes à própria contingência humana. Diante do último limite (a morte) mais uma vez o Mestre dos mestres na sua imensa sabedoria, colocou-se ante o Absoluto criador e orou: “Senhor, está tudo consumado. Em Tuas mãos entrego a minha alma.” Uma lição de humildade e confiança que aconchega a contingência humana sob o manto do Deus pai misericordioso. Nos dois momentos em que Jesus invocou o amparo do Pai não assumiu apenas uma postura piedosa, mas um gesto profundamente humano de confiança na perfeição e no amor do Criador.
Homem como qualquer um de nós, Jesus deu testemunho de que podemos ser verazes, justos e generosos, e só palmilhando este roteiro existencial alcançaremos conduzir o processo da perfectibilidade humana na plenitude de um contexto comunitário. O homem não precisa ser fisicamente crucificado, mas terá de carregar a sua cruz com dignidade.
 A grande missão de Jesus foi desafiar o brio dos homens de todas as épocas a descobrir e professar as verdades sintetizadas no Sermão da Montanha[3], o único caminho para a realização plena da humanidade.
De tudo que ficou dito nesse resumo despretensioso do vir a ser humano, depreende-se que a salvação da espécie Homo Sapiens sapiens depende das decisões pessoais livres e responsáveis de cada indivíduo, fundadas na prática da cooperação e da partilha, voltadas para a construção da comunidade humana!   
  Everaldo Lopes.



[1] O “presente” nunca passa, é sempre o mesmo. No vir a ser histórico os acontecimentos é que passam  por ele. O corte no tempo corresponde à própria atemporalidade assimilável à ideia de eternidade. Ponto fixo, referencial para a sucessão de segundos, minutos, horas, dias etc. que marcam o tempo cósmico.
[2] Ser consciente e responsável.
3- “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
Bem-aventurados os que tem fome e sede de Justiça, porque serão  fartos.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão a Misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a face e Deus.
Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da Justiça, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem, perseguirem e mentirem, dizendo todo mal contra vós por minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque é grande vosso galardão nos céus, porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós."

                                                                                        Mateus 5, 1-12