sexta-feira, 4 de março de 2016

Qual a justificativa da opção materialista?



Especulações baseadas no conhecimento que já temos sobre a evolução do mundo físico, biológico e social me levaram a abraçar conscientemente uma cosmovisão monista espiritualista criacionista. Obviamente a causa primeira de tudo continua impermeável à razão humana; é matéria  de cogitações metafísicas que abrem espaço para a crença num absoluto objeto de fé e não de conhecimento. Mas a este absoluto transcendental somos conduzidos pelo pensamento lógico. Senão vejamos. É evidente que houve uma complexificação crescente da matéria desde a desorganização caótica nos primeiros segundos após o “Big-bang” até a complicada estrutura do córtex cerebral no homem. Isso implica no reconhecimento de uma ordenação progressiva da matéria. Ora, não há ordem sem intenção, e não há intenção sem consciência. Logo, o intento evolutivo desta ordenação progressiva da matéria no cosmo pressupõe uma consciência universal. 
Encampando esta constatação, amparado em raciocínio coerente, sinto-me à vontade para justificar, teoricamente, o primado do espírito[1]. Segundo esta proposta, o homem não é um animal que se espiritualiza, mas a manifestação do espírito pré-existente que promove a organização da matéria e através dela se manifesta. A consciência não é um epifenômeno da matéria, porém o cerne do ser humano, autônomo, livre, criativo, capaz de influir nos rumos da sua própria evolução. Dessa forma o homem emerge do anonimato material, e exercitando sua liberdade  criativa é capaz de colaborar com o princípio absoluto que o criou.
À luz da lógica da complexidade, a visão do universo desvela um vislumbre da integração perfeita de todos os seus elementos entre si compondo a harmonia final de um todo significativo.  A totalidade absoluta anula, na sua estruturação totalizante, todos os contrastes que são o background das especulações investigativas sobre a unidade consciência-mundo cuja consumação excede as limitações do entendimento racional. Em linguagem mística esta perspectiva harmônica corresponde à perfeição da vontade de Deus que tudo conduz para uma apoteose na Sua glória inexcedível. Nesse contexto o místico  distingue-se por sua fé através da qual ele vivencia os lances discretos de cada passo do seu vir a ser pessoal como resultado de um diálogo permanente que a criatura consciente busca estabelecer com o Criador. Ao contrário, o agnóstico entende os acontecimentos do dia a dia como simples determinações culturais alheias à intervenção paternal de um ordenador supremo.
Sabemos, porém, que há agnósticos, materialistas, que vivem dignamente em paz consigo mesmos, convivendo com as restrições existenciais que a visão de mundo materialista lhes impõe. Sem fé, eles não podem conviver com uma transcendência absoluta providente e misericordiosa com a qual pudessem estabelecer um diálogo confiante. Mas os que analisam imparcialmente a própria postura existencial vivenciam sua limitação, aceitando-a estoicamente. Nisso o agnóstico autocrítico difere dos que se dizem ateus, afirmando, ingenuamente,  sua descrença na transcendência absoluta com a mesma leviandade com que os crentes ingênuos alardeiam uma fé espiritualizada sem se darem conta de que apenas trocam favores com um Deus totêmico. Em outras palavras diríamos que o agnóstico ingênuo executa os pacotes culturais que regem seu comportamento social, pragmaticamente, sem discuti-los.
 Obviamente, para sobreviver, os homens terão que se organizar em sociedade. Nesta organização se definirão os valores éticos que balizam o comportamento coletivo. Mas enquanto convenção social estes valores estão limitados pela própria condição humana, caracterizando um nível ético de existência. Os mesmos valores ganham, porém, dimensão transcendental quando associados a uma cosmovisão espiritualista criacionista.  Então, eles (os valores) têm a garantia de uma transcendência absoluta para legitimá-los, caracterizando o nível ético-religioso de existência[2].
Os materialistas negam a espiritualidade e associam as manifestações religiosas e artísticas, respectivamente a compulsões e a exacerbações dos sentidos, rebaixando a criatividade à mera exaltação sensorial. Dissociados de uma visão mística, os comportamentos sociais e políticos seriam apenas tentativas práticas de disciplinar o egoísmo humano, uma vez que deixado ao seu talante inviabilizaria a sobrevivência da espécie. Nessas circunstâncias os comportamentos inerentes à prática humanística teriam como fundamento básico o desejo de sobrevivência.
Segundo a visão espiritualista, a “existência” pressupõe um porquê transcendental abrangente que a envolve e lhe dá um sentido superior definitivo. Por outro lado, numa perspectiva agnóstica, materialista, o homem teria que ser a medida de si mesmo. À falta de um ideal supremo, além do horizonte histórico pragmático, cada homem deverá ser a razão última dos seus valores éticos, e dessa forma poderiam facilmente escorregar para um comportamento dúbio em que seria suficiente  “parecer”, em vez de “ser”.
Diante deste confronto entre o espiritualista e o materialista autocrítico, fica evidente que o primeiro dá suporte racional ao seu anseio de transcendência escudando-se em especulações inteligentes; enquanto o segundo simplesmente se nega a avaliar a realidade sob a ótica criacionista, porque exclui qualquer possibilidade de uma transcendência absoluta, embora não saiba explicar a ordem que a própria Ciência constata na realidade palpável. De qualquer forma, em negando a transcendência absoluta, o materialista é também um crente. Uma vez que do ponto de vista estritamente racional é impossível provar ou negar uma transcendência absoluta, ele “crê” na não existência de um absoluto criador. Tendo em vista a incerteza decorrente da falta de uma prova cabal desta transcendência absoluta é que falo da justificativa de uma opção materialista, no título desse texto.  Diferentemente do espiritualista cujas especulações coerentes apontam  para o primado do espírito, o agnóstico aposta num anti-acaso que teria, aliás, o mesmo peso epistemológico de um absoluto, um Deus sem repercussões no confronto subjetivo do homem ao vivenciar suas contradições existenciais.
Everaldo Lopes


[1] Evoco o testemunho bíblico em João 1:  “No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus.”
[2] Sören Kierkegaard em sua definição dos 3 níveis de existência.