domingo, 30 de junho de 2019

Roteiro espiritual



           
            Ter fé é mais do que fazer uma simples opção, racionalmente justificada. Há que ser uma escolha radical, envolvendo inteligência e sentimento; é crer em algo ainda que seja absurdo. Sendo um absoluto o objeto intangível da crença, logicamente, não se encontra na razão o instrumento mais eficaz de abordagem do objeto de fé; há que lembrar a afirmação pascaliana[1]. Como as outras virtudes, a fé não é uma construção, é uma dádiva. Pode-se, como se costuma dizer, cultivá-la. Mas, evidentemente, para  cultivá-la, é preciso que ela exista. E é minha convicção que o embrião da fé existe sempre no íntimo de todos nós. Ninguém conseguiria viver diante das incertezas da vida e do mundo, sem alguma âncora para confiar em um dos eventos prováveis ou improváveis da existência. A própria natureza assintótica[2] da verdade imobilizar-nos-ia em dúvidas não fora a crença na veracidade do que percebemos através dos sentidos. Talvez, os que admitem ter perdido a fé, apenas se neguem a cultivá-la! É este cultivo que as igrejas tentam implementar. Mas na medida em que se institucionaliza, a mensagem eclesial empacotada em dogmas rígidos, amesquinha-se como vivência existencial; ainda que se pretenda exaltá-la pela revelação contida nos livros sagrados e pelo apoio na credibilidade das instituições que assumiram a missão evangelizadora. Assim, o cristão, por exemplo, crê em Deus, mas em cada caso específico (católico romano, protestante, copta, grego, etc) precisa acreditar na sua Igreja que, por suposto, encampou a exclusividade da origem divina como Instituição. Todavia, as Igrejas são organizações religiosas históricas. Como tais, têm um pé na falibilidade humana. A fé em Deus tem raízes existenciais, as Igrejas como instituições históricas, amarram-se em incidentes temporais; são úteis para assegurar a transmissão catequética  da mensagem salvífica, mas não são necessárias para a contextualização do indivíduo numa “gestalt”[3] existencial teocêntrica, embora possam facilitá-la para as almas simples carentes de autonomia.
            Para muitos de nós, a imposição de um credo seria traumática. É verdade que esta forma de reagir implica no orgulho humano ou, pelo menos, na falta de humildade. Em face disso, entre muitos de nós, a fé praticada não é tão pura (inspirada, ingênua) quanto seria desejável.  Constitui-se num estado de espírito do qual participa a dúvida superada instante a instante por uma profissão da crença no testemunho da própria realidade num Ser superior, absoluto criador. Lucubrações filosóficas sobre o objeto de fé assim como as peculiaridades  de uma crença podem jogar alguma luz sobre a questão, aproximando mais o postulante, de uma visão compreensiva da sua convicção de fé. Correlacionando o ato de fé com as demandas transcendentais da alma humana, pode-se abrir uma nova frente de abordagem. Não mais, a partir da discussão sobre a veracidade do objeto transcendental da fé, inalcançável pela razão; mas a partir da necessidade de transcendência absoluta, premente no ser consciente, portanto, muito próxima e nossa conhecida. O dogma de fé pretende preencher a lacuna perturbadora existente entre a demanda de um absoluto pela consciência emergente, e  este mesmo absoluto (objeto de fé); entre o homem (contingente), e o Ser Necessário (Criador); entre  a eternidade e o tempo, entre a realidade que transcende os limites da razão e a que conhecemos e podemos comprovar. Nesta perspectiva, o dogma passará a se justificar como forma de atender a uma necessidade ontológica da existência consciente; se assim se pode falar, a necessidade de uma âncora absoluta para a subjetividade. O objeto da fé (o absoluto) já não será, então, um elemento estranho, totalitário, que se põe autoritário diante do crente, mas uma necessidade  da existência anelante, desamparada, “desassossegada”. Embora inabordável pela razão, o objeto de fé será assim melhor “assimilado”, pelos que não gozamos o privilégio da simplicidade, como opção amparada por uma visão compreensiva da realidade carente e misteriosa que envolve o “ser consciente”. Visão compreensiva no sentido da aceitação, no contexto existencial da necessidade do dogma, para fechar uma “gestalt” pessoal. A outra opção é deixar a gestalt aberta, cultivando  a atitude estoica, na qual o indivíduo se consome em desassossego sem assumir a responsabilidade de afirmar seu objeto de fé. Há testemunho histórico de que muitos já conseguiram fechar com sucesso sua “gestalt” pessoal, seguindo as pegadas da primeira opção (a aposta da fé); não será  muito inteligente, pois, desdenhar dessa possibilidade e deixar-se afundar no desespero. Chegar a Deus através de uma visão racional do Universo que, embora parcial, se completa numa tese coerente, compreensiva, da realidade pessoal sedenta de absoluto, é também um caminho. Acredito que o livro “La Gnose de Princeton” escrito por Raymond Ruyer foi o primeiro esforço sistematizado nesse sentido. Não obstante as lições de catecismo recebidas na infância, esta foi a minha trilha, abandonada e retomada tantas vezes... Nessa busca descobri que a solução do “problema humano” não é da ordem intelectual, metafísica, mas uma experiência mística – expressão vivenciada da participação na unidade do todo universal. O clímax da conversão é a viragem interior orientada pelo vislumbre intelectual da necessidade de um absoluto, para a participação existencial nesse absoluto. Neste ponto é que entra a graça – o empurrãozinho misericordioso no contexto de uma experiência de fé. Depois disso, presumo que a repercussão existencial seja a mesma, para o crente comprometido com sua verdade interior sem rodeios intelectuais caprichosos, que aceitou com simplicidade o seu objeto de fé, ou para aquele que palmilhou as trilhas íngremes de lucubrações filosóficas preparatórias. Qualquer que tenha sido o caminho percorrido, o importante é a aceitação incondicional de Deus (Espírito absoluto, causa e finalidade de tudo quanto existe), e da ordem inerente ao Espírito cifrado no universo.
            Nesta gnose, se assim podemos falar, a espiritualidade trans-intelectual a que chegamos pelo caminho da abordagem compreensiva da realidade universal incluída a consciência pessoal, as noções de graça, merecimento, virtude, adquirem conotações que se afastam um pouco das interpretações  beatas. Na nossa abordagem se torna evidente o caráter assimétrico da  relação criatura  / Criador, não obstante a parceria virtual de ambos. O Criador jamais poderia ser influenciado por sua criatura. Consequência disso é  a certeza de que não podemos influir nas decisões divinas, e a ideia de que as conquistas vantajosas que fazemos, não são o fruto do nosso mérito, mas extensões práticas de uma ordem divina da qual passamos a ser obreiros entusiasmados, comprometendo nessa direção o nosso quefazer histórico, como colaboradores da criação divina. No seguimento da nossa experiência existencial, chegamos, todavia, a compreender que a   distância imensurável que separa a criatura do Criador se dissipa ao calor da “certeza” inquestionável, tranquilizadora, da infinita misericórdia de Deus. Dessa forma, numa visão metafísica e espiritual da existência encontramos o suporte para uma psicologia dinâmica que preside os ajustes da subjetividade e suavizam o fragor da luta entre os elementos contraditórios da humana condição. Nesta linha do pensamento, confirma-se a ideia de que o homem é um ser intrinsecamente religioso.


[1] “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.
[2] Assíntota- Reta que é tangente a uma curva no infinito; reta limite da família de tangentes a uma curva quando o ponto de tangência tende para o infinito.



[3] Um todo que justifica as suas partes.