Ter fé é mais do que fazer uma simples opção,
racionalmente justificada. Há que ser uma escolha radical, envolvendo
inteligência e sentimento; é crer em algo ainda que seja absurdo. Sendo um
absoluto o objeto intangível da crença, logicamente, não se encontra na razão o
instrumento mais eficaz de abordagem do objeto de fé; há que lembrar a afirmação
pascaliana[1].
Como as outras virtudes, a fé não é uma construção, é uma dádiva. Pode-se, como
se costuma dizer, cultivá-la. Mas, evidentemente, para cultivá-la, é preciso que ela exista. E é
minha convicção que o embrião da fé existe sempre no íntimo de todos nós. Ninguém
conseguiria viver diante das incertezas da vida e do mundo, sem alguma âncora
para confiar em um dos eventos prováveis ou improváveis da existência. A
própria natureza assintótica[2]
da verdade imobilizar-nos-ia em dúvidas não fora a crença na veracidade do que
percebemos através dos sentidos. Talvez, os que admitem ter perdido a fé,
apenas se neguem a cultivá-la! É este cultivo que as igrejas tentam
implementar. Mas na medida em que se institucionaliza, a mensagem eclesial
empacotada em dogmas rígidos, amesquinha-se como vivência existencial; ainda
que se pretenda exaltá-la pela revelação contida nos livros sagrados e pelo apoio
na credibilidade das instituições que assumiram a missão evangelizadora. Assim,
o cristão, por exemplo, crê em Deus, mas em cada caso específico (católico
romano, protestante, copta, grego, etc) precisa acreditar na sua Igreja que,
por suposto, encampou a exclusividade da origem divina como Instituição. Todavia,
as Igrejas são organizações religiosas históricas. Como tais, têm um pé na
falibilidade humana. A fé em Deus tem raízes existenciais, as Igrejas como
instituições históricas, amarram-se em incidentes temporais; são úteis para
assegurar a transmissão catequética da
mensagem salvífica, mas não são necessárias para a contextualização do
indivíduo numa “gestalt”[3]
existencial teocêntrica, embora possam facilitá-la para as almas simples carentes
de autonomia.
Para muitos de nós, a
imposição de um credo seria traumática. É verdade que esta forma de reagir
implica no orgulho humano ou, pelo menos, na falta de humildade. Em face disso,
entre muitos de nós, a fé praticada não é tão pura (inspirada, ingênua) quanto
seria desejável. Constitui-se num estado
de espírito do qual participa a dúvida superada instante a instante por uma
profissão da crença no testemunho da própria realidade num Ser superior,
absoluto criador. Lucubrações filosóficas sobre o objeto de fé assim como as
peculiaridades de uma crença podem jogar
alguma luz sobre a questão, aproximando mais o postulante, de uma visão
compreensiva da sua convicção de fé. Correlacionando o ato de fé com as
demandas transcendentais da alma humana, pode-se abrir uma nova frente de
abordagem. Não mais, a partir da discussão sobre a veracidade do objeto
transcendental da fé, inalcançável pela razão; mas a partir da necessidade de
transcendência absoluta, premente no ser consciente, portanto, muito próxima e
nossa conhecida. O dogma de fé pretende preencher a lacuna perturbadora
existente entre a demanda de um absoluto pela consciência emergente, e este mesmo absoluto (objeto de fé); entre o
homem (contingente), e o Ser Necessário (Criador); entre a eternidade e o tempo, entre a realidade que
transcende os limites da razão e a que conhecemos e podemos comprovar. Nesta
perspectiva, o dogma passará a se justificar como forma de atender a uma necessidade
ontológica da existência consciente; se assim se pode falar, a necessidade de
uma âncora absoluta para a subjetividade. O objeto da fé (o absoluto) já não
será, então, um elemento estranho, totalitário, que se põe autoritário diante
do crente, mas uma necessidade da
existência anelante, desamparada, “desassossegada”. Embora inabordável pela
razão, o objeto de fé será assim melhor “assimilado”, pelos que não gozamos o
privilégio da simplicidade, como opção amparada por uma visão compreensiva da
realidade carente e misteriosa que envolve o “ser consciente”. Visão compreensiva
no sentido da aceitação, no contexto existencial da necessidade do dogma, para
fechar uma “gestalt” pessoal. A outra opção é deixar a gestalt aberta,
cultivando a atitude estoica, na qual o
indivíduo se consome em desassossego sem assumir a responsabilidade de afirmar
seu objeto de fé. Há testemunho histórico de que muitos já conseguiram fechar
com sucesso sua “gestalt” pessoal, seguindo as pegadas da primeira opção (a
aposta da fé); não será muito
inteligente, pois, desdenhar dessa possibilidade e deixar-se afundar no
desespero. Chegar a Deus através de uma visão racional do Universo que, embora
parcial, se completa numa tese coerente, compreensiva, da realidade pessoal
sedenta de absoluto, é também um caminho. Acredito que o livro “La Gnose de Princeton” escrito
por Raymond Ruyer foi o primeiro esforço sistematizado nesse sentido. Não
obstante as lições de catecismo recebidas na infância, esta foi a minha trilha,
abandonada e retomada tantas vezes... Nessa busca descobri que a solução do “problema
humano” não é da ordem intelectual, metafísica, mas uma experiência mística –
expressão vivenciada da participação na unidade do todo universal. O clímax da
conversão é a viragem interior orientada pelo vislumbre intelectual da
necessidade de um absoluto, para a participação existencial nesse absoluto.
Neste ponto é que entra a graça – o empurrãozinho misericordioso no contexto de
uma experiência de fé. Depois disso, presumo que a repercussão existencial seja
a mesma, para o crente comprometido com sua verdade interior sem rodeios
intelectuais caprichosos, que aceitou com simplicidade o seu objeto de fé, ou
para aquele que palmilhou as trilhas íngremes de lucubrações filosóficas preparatórias.
Qualquer que tenha sido o caminho percorrido, o importante é a aceitação
incondicional de Deus (Espírito absoluto, causa e finalidade de tudo quanto
existe), e da ordem inerente ao Espírito cifrado no universo.
Nesta gnose, se assim podemos falar, a espiritualidade
trans-intelectual a que chegamos pelo caminho da abordagem compreensiva da
realidade universal incluída a consciência pessoal, as noções de graça,
merecimento, virtude, adquirem conotações que se afastam um pouco das
interpretações beatas. Na nossa
abordagem se torna evidente o caráter assimétrico da relação criatura / Criador, não obstante a parceria virtual de
ambos. O Criador jamais poderia ser influenciado por sua criatura. Consequência
disso é a certeza de que não podemos
influir nas decisões divinas, e a ideia de que as conquistas vantajosas que
fazemos, não são o fruto do nosso mérito, mas extensões práticas de uma ordem
divina da qual passamos a ser obreiros entusiasmados, comprometendo nessa
direção o nosso quefazer histórico, como colaboradores da criação divina. No
seguimento da nossa experiência existencial, chegamos, todavia, a compreender
que a distância imensurável que separa a criatura do
Criador se dissipa ao calor da “certeza” inquestionável, tranquilizadora, da
infinita misericórdia de Deus. Dessa forma, numa visão metafísica e espiritual
da existência encontramos o suporte para uma psicologia dinâmica que preside os
ajustes da subjetividade e suavizam o fragor da luta entre os elementos
contraditórios da humana condição. Nesta linha do pensamento, confirma-se a ideia
de que o homem é um ser intrinsecamente religioso.
[1]
“O coração tem razões que a própria razão desconhece”.
[2]
Assíntota- Reta que é tangente a uma curva no infinito; reta limite da
família de tangentes a uma curva quando o ponto de tangência tende para o
infinito.
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[3]
Um todo que justifica as suas partes.