domingo, 28 de junho de 2015

Tudo tem sentido



O Universo é o conjunto de tudo quanto existe. Portanto, sendo uma totalidade absoluta nada pode haver fora dele. Esta totalidade dinâmica, unitária representa um universo complexo que inclui o ser consciente capaz de influir nas transformações evolutivas da sociedade, e do mundo físico.  Seu dinamismo criativo manifesta-se na integração harmônica de todas as coisas. Sem esta harmonia o todo universal se dissiparia sem deixar rastro. Mas a incapacidade de o observador humano relacionar cada momento com a unidade do todo universal significativo dificulta sua compreensão da coerência deste todo. O estreito ângulo de visão do observador finito cria a falsa impressão de situações segmentadas desarmônicas. E essa aparência desconexa da realidade suscita dúvida sobre a perfeição unitária da totalidade que ela representa. Exemplificando: sem o conhecimento dos antecedentes que originaram cada fato, como explicar neste todo perfeito as injustiças criminosas, os acontecimentos trágicos envolvendo inocentes, guerras e assassinatos? Estas experiências são incompreensíveis para a visão limitada do processo, levando o observador a visualizar nelas imperfeições que são incompatíveis com a total harmonia da unidade do todo absoluto. Dessa forma, face às limitações cognitivas do homem, a afirmação do arremate final perfeito da história humana exige fé. De outro modo o observador finito desesperaria da harmonia deste remate.
O homem existe no desdobramento dos acontecimentos históricos cuja matéria prima é a relação “eu-tu” envolvida por circunstâncias específicas. Tendo-se em vista a multiplicidade de fatores que interagem  na evolução do fenômeno social, é óbvia a complexidade implícita na elaboração intersubjetiva das manifestações dos indivíduos em sociedade. As diferenças a serem equacionadas entre mundividências, desejos e projetos dos protagonistas da realidade social exigem arranjos, acomodações de propósitos e de manifestações afetivas que variam caso a caso na convivência das pessoas. É impossível para o homem conhecer tudo que ao longo do tempo direta ou indiretamente tenha influenciado na emergência de um fato isolado. A falta de clareza no conhecimento das nuances psicossociais influentes na gênese dos acontecimentos pontuais limita a inteireza dos julgamentos que fazemos no nosso dia a dia. Todavia, confirmando o caráter humano das relações interindividuais, os protagonistas sociais bem estruturados reconhecem os seus interlocutores com suas diferenças, e confiados na força transformadora do diálogo se disporão a interagir com eles de forma objetiva e fidedigna. Apesar das dificuldades possíveis de interação imediata com o seu “tu”, não se anula a predisposição originária no “eu” de estar diante de um Tu transcendental que é a manifestação subjetiva do “dinamismo absoluto eternamente criativo” presente na intimidade do ser consciente, reflexivo. Ser consciente, afinal, é ser capaz de elevar-se acima de si mesmo (transcender) para criar um distanciamento subjetivo em relação ao mundo, indispensável à compreensão da realidade. E ao transcender-se o homem se adverte de sua finitude em contraste com o desejo de ser, o que suscita nele a necessidade de crer numa transcendência absoluta, espiritual, da qual faz parte e na qual se realiza numa dimensão transtemporal. Crença que encontra respaldo em especulações metafísicas, mas será muito mais aquietadora quando, ingenuamente, não pede explicações.
A deformação das posturas humanas no processo de socialização pode ameaçar a integridade das relações interindividuais (eu-tu). Porém, no conjunto do “todo” perfeito por sua natureza absoluta esta ameaça necessariamente não prevalecerá. O dinamismo criativo do todo absoluto alcançará sempre o equilíbrio perfeito.
A emergência da consciência e do livre arbítrio é o elemento crucial na evolução humana. Não se pode determinar quando e como as reações bioquímicas dos neurônios corticais cerebrais se transformam em pensamentos, intuições, enfim, vivências espirituais. Analogicamente essa transformação assemelha-se ao “salto quântico”, conceito que revolucionou a Física clássica. Todavia, a evolução da matéria mediante complexificação crescente, desde o big-bang até a vida consciente reflexiva tornou possível no auge desta complexificação (Sistema Nervoso Central) a manifestação do espírito ordenador universal que permeia toda Natureza. A ordem que presidiu a evolução da matéria inerte até os seres vivos e à consciência, pressupõe este ordenador universal cuja natureza absoluta é incompatível com um desfecho imperfeito da sua obra.
A Filosofia do encontro entre as pessoas aborda a constante procura do verdadeiro, dimensionando a compreensão do sentido da liberdade pessoal na doação recíproca inerente à relação ideal “eu-tu”. Nesta relação a “existência” se manifesta no homem pelo exercício consciente da “liberdade de” e da “liberdade para”, elementos indispensáveis à criatividade humana. Na prática da “liberdade de” o sujeito consciente se supera vencendo resistências internas a fim de confirmar, voluntária e inteligentemente, os princípios éticos humanísticos superiores; no exercício da “liberdade para” ele forja, criativamente, uma conjuntura coerente com estes princípios vencendo resistências externas psicossociais, políticas e econômicas para criar novas formas de convivência. No espaço intersubjetivo (interpessoal) é que se instala a luta para vencer tais resistências. Neste espaço o pensamento de Martim Buber [1] abre uma janela para o vislumbre da união paradoxal dos opostos (bem / mal; unidade / dualidade) na plenitude do encontro humano. A unidade dos contrários permanece um mistério na intimidade subjetiva do diálogo. A razão conduz apenas uma parte desse processo, o resto fica por conta da intuição e da fé. A compreensão da realidade toda exige que a razão e a fé sejam os dois olhos da alma, enquanto a verdade e a crença abrangem os dois polos do mundo.[2]
Ultrapassando os limites da lógica linear, a lógica da complexidade deixa entrever a unidade de tudo quanto existe, o que dá suporte à afirmação de que tudo tem a ver com tudo. Esta afirmação obscura e inexplicável para o senso crítico impregnado da lógica linear de causa e efeito é absorvida pelo ser consciente num ato de fé cujas raízes são intuitivas e místicas.
A incapacidade de crer no encaixe da existência humana na perfeição evolutiva do cosmos, cria uma dualidade incompatível com o monismo filosófico[3] e leva à descrença na perfeição do todo absoluto em face dos deslizes comportamentais que enodoam a história humana. Contra este descrédito opõe-se a lição da reprovação de Jesus à conduta impetuosa de Pedro quando tentou defendê-lo dos soldados romanos que o foram prender no Monte das Oliveiras. Jesus adverte seu discípulo de que o cálice que Lhe está reservado e anunciado nas Escrituras seria sorvido completamente até o final.” Com essa intervenção Jesus situa-se num contexto histórico amplo e significativo comprometido com a salvação do próprio homem. Dessa forma assume naquele instante a sua missão histórica de preservar a perfeição do Todo absoluto.  Estamos cada momento participando da construção deste todo perfeito quando decidimos “sorver até o final” mesmo com algum sofrimento a missão histórica que nos foi confiada durante nossa peregrinação neste mundo.
As ideias expostas neste texto não se coadunam com a tese apocalíptica do final dos tempos. Aliás, no primeiro século da era cristã, Orígenes de Alexandria[4] propôs que no fim dos tempos haverá o resgate de todos os seres do universo na unidade perfeita de Deus. No segundo concílio de Constantinopla, porém, a tese de Orígenes foi considerada herética pela Igreja católica. Hoje a maioria das denominações cristãs cultiva a ideia apocalíptica do fim dos tempos que separa os bons e os maus, destinando os primeiros ao Céu e os segundos à condenação eterna. Todavia, com todo respeito à autoridade das Igrejas, acho a tese de Orígenes mais compatível com a misericórdia infinita de Deus.   Afinal a perfeição da unidade absoluta é incompatível com a dualidade apocalíptica.
Na perfeição da realidade unitária tudo tem sentido. Everaldo Lopes


[1] Filósofo, escritor e pedagogo austríaco, de origem judaica e inspiração sionista .
[2] Ideia expressa em A Velhice do Padre Eterno de Abílio Manuel Guerra Junqueiro, escritor e poeta.
[3] Doutrina filosófica segundo a qual o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade, quer do ponto de vista de sua substância, quer do ponto de vista das leis pelas quais o Universo se ordena.
[4] Teólogo e filósofo neoplatônico, um dos padres da Igreja grega. Foi um prolífico escritor cristão de grande erudição.