sexta-feira, 5 de abril de 2013

O homem peregrino no seu ninho



“Quem sabe faz, quem não sabe ensina”[1]. Diz-se sentenciosamente das pessoas com relação ao seu desempenho nas atividades que envolvem conhecimento e habilidade. Quanto à construção da existência dir-se-ia analogicamente: Quem sabe vive (faz a sua hora), quem não sabe segue o rebanho, ou filosofa.
Ao descobrir a precariedade do seu próprio vir a ser, o homem se empenha na busca de orientação existencial que lhe dê alguma segurança. E tenta elaborar proposta pessoal a fim de exercitar-se nas práticas conscientes e responsáveis. Mas defronta dificuldade em fundamentar um princípio dinâmico para construir sua existência. Ora, o exercício pleno da consciência é inextrincável da liberdade. Portanto, o equacionamento da existência implica necessariamente na adoção de valores escolhidos e eleitos. Todavia, para eleger responsavelmente uma postura existencial ética é preciso ter critérios de escolha e estes são elaborações humanas, falíveis, pelo que o “eu agente” por mais cauteloso que seja corre sempre o risco de errar. O homem vive assim o drama de ser responsável por suas escolhas, assumindo  as incertezas inevitáveis. Empolgado por essa responsabilidade intransferível é desafiado a viver em função dos seus valores éticos e sofre turbulências subjetivas que no texto bíblico foram tão bem sintetizadas pelas tentações que Jesus sofreu no deserto[2]. Todos padecemos provações semelhantes, e diante das dúvidas que nos assaltam vivemos momentos críticos e sentimentos inquietantes. Não de desilusão, continuamos esperando uma inspiração decisiva... Não de indiferença, continuamos curiosos de qual seja a melhor escolha... Não de abulia, sentimos o espírito indócil à cata de razão válida para justificar uma opção... Não de depressão, sentimo-nos inteiros, diante dos estímulos que nos incitam... Irritação? Sim, um pouco, diante da incompetência e da dissimulação no entorno social descomprometido com a grande responsabilidade de ser homem. Cansaço? Talvez, de tanto ver frustrados os esforços mais entusiásticos pela causa da verdade, da competência e da justiça, ingredientes indispensáveis para o exercício exemplar da condição humana. Aqui, acolá um desânimo passageiro de poder encarnar afinal o perfil exemplar da existência ética e construtiva. Num momento assim, é vital não perder a perspectiva dos valores universais da existência[3], para seguir adiante. Todavia, muitas vezes,  “como ingênuos peregrinos, parece-nos que foi sempre por um passo distraído  que começaram todos os destinos...”[4] Talvez, passado algum tempo, depois de haver explorado muitos caminhos, sobrevenha um langor, de mistura com o anseio do retornar em busca de algo que ficou perdido no caminho e agora já seria tarde demais para recuperá-lo... uma vivência melancólica, agravada pela certeza da irreversibilidade do tempo, e pela expectativa do desfecho inevitável da vida. Vivência que se prolonga na nostalgia da evocação de algo além da realidade do mundo visível, aparente!...  De concreto o homem íntegro guarda apenas a certeza de que os seus atos no passado não o envergonham, e deixaram marcas nas páginas da história que vem escrevendo com sua existência. Alimenta a esperança de que tudo faz sentido no contexto de um todo absoluto no qual está inserido. Necessita dessa crença amparada, aliás, em especulações consistentes[5], para situar-se numa perspectiva evolutiva do mundo. Um autoengano? Nunca se saberá com certeza racional cristalina. Mas esta convicção íntima é estruturante na medida em que ajuda  o “eu” pensante a sentir-se um elo no processo evolutivo do qual participa em parceria com a Natureza.  Nas suas vitórias, por vezes inesperadas, o homem sente-se pequeno nesta parceria. Reconhecendo sua pequenez, porém, deixa-se ficar “... distraído / do enigma eterno sobre que repousa, / sem nunca interpretar o seu sentido”[6]... e espera ter “...de harmonia  com a alma, / essa felicidade ingênua e calma, / que é a tendência recôndita das coisas!...”[7]. Luta para concretizar seus projetos, mas com o passar dos anos reconhece que escasseia a expectativa excitante de um intento desejável que lhe esteja ao alcance. A criatividade empobrece com a idade e torna-se difícil, mas não impossível, manter acesa a chama do élan vital. Ameaça-o uma penumbra apática. Mesmo assim não morre a esperança de um acontecimento revitalizante, embora como disse Drummond de Andrade, “em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos[8]”. Todavia o homem não se rende enquanto, “...exausto, contudo, /  resta a vontade  que ainda ordena: persiste!”[9] Estas citações revelam quanto a problemática existencial  afeta a sensibilidade dos Poetas.
Meditar e especular ajudam a compreender a dinâmica existencial do equilíbrio interior do individuo consciente de sua realidade precária, sempre ameaçada. Esse conhecimento favorece a implementação de posturas adequadas no vir a se pessoal. Limitado por sua natureza temporal, movendo-se em direção a uma meta, o homem precisa transcender-se a cada instante em constante transformação, atualizando a necessidade permanente de ultrapassar-se. Para atender a essa exigência existencial precisa situar-se na cadeia evolutiva da vida de modo a objetivar o sentido da sua existência. Precisa acalentar a esperança de ser para algo significativo. A consciência do tempo que foge perdendo-se para sempre é uma experiência desagradável difícil de elaborar... até o advento de uma vivência mística!
Na sua trajetória o homem imaturo busca encontrar na repetição do prazer transitório a felicidade completa jamais alcançada nesta vida. Na maturidade da sua existência acaba reconhecendo que só uma vivência de participação na unidade do todo absoluto no qual está contextualizado apazigua a consciência sedenta de eternidade. E luta por harmonizar os prazeres sensuais com a imensa aspiração de ser divino, tentando consumar a harmonia interior numa vivência excepcional de comunidade com todas as consciências, cuja leitura mística corresponde à experiência de existir participando da unidade divina. Nessa vivência mística se resume a instância mais elevada da aspiração humana.
Everaldo Lopes


[1] Corruptela de uma velha piada acadêmica inglesa.
[2] Concupiscência da carne; soberba da vida(fascínio pelo poder); concupiscência do espírito(insubmissão às verdades eternas).
[3] Verdade, ação correta (conformidade com a consciência ética), amor, paz, não violência
[4] Ideia implícita no soneto  de Raul de Leoni -“Vivendo”
[5] Vide neste blog “devaneio especulativo I”
[6] Raul de Leoni – no soneto Exortação
[7] Raul de Leoni -                      
[8] Drummond de Andrade – no poema “ A Máquina do Mundo”
[9] Idéia contida no  poema “Se”, de Rudyard Kipling.