terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Experiência marcante



Diante do cadáver de um ente querido vive-se a experiência mais  chocante que um homem pode vivenciar; solitária porque jamais partilhada, e silenciosa porque não há como traduzi-la. Depois do primeiro impacto psíquico emocional projetam-se na memória do protagonista desta experiência lembranças boas ou más da convivência que mantivera em vida com aquela pessoa, agora falecida. Lembranças misturadas com a terrível certeza de que o silêncio da morte é para sempre. E muitas vezes é nesses momentos que nos damos conta, os que ficamos, de quanto aquela pessoa é importante para nós. E como gostaríamos de tê-la de volta!
A expectativa de um fim inevitável acompanha e faz sofrer os pobres mortais! O medo da morte afeta de muitas formas todos os homens. Não cremos ser possível a um ser consciente em condições normais não temer a própria morte. Mas nada há que se possa fazer para anular a resistência em aceitar o envelhecimento e o medo de morrer. A finitude inevitável quando se torna consciente cria expectativas dolorosas.  Aceitar, pois, o envelhecimento e a morte é a atitude mais razoável que o homem pode desenvolver. Não obstante resistimos à ação demolidora do tempo e sofremos ingenuamente porque não podemos mudar o nosso destino biológico.
Assuntando sobre o medo mais difundido entre os humanos imaginei analisar como seríamos afetados se não estivéssemos biologicamente condenados a morrer. E se não fôssemos mortais? Cairíamos numa outra situação igualmente embaraçosa.  Viver, indefinidamente, dias e noites as mesmas experiências que acabariam se tornando cansativas pela repetição, dadas as limitadas possibilidades de inovação que, finalmente, se esgotariam! Prolongar o tempo de vida não garante incrementar a criatividade renovadora, e então afundaríamos numa rotina exasperante tão ou mais desagradável do que a expectativa da morte. A morte ainda pode ser a transição para uma forma mais evoluída de vida. Passagem para uma experiência inédita de perfeição inatingível por seres biológicos limitados a uma realidade temporal, apenas assistidos pelos cinco sentidos cuja acuidade seria sempre empobrecida por mais perfeita que fosse a nossa organização neuronal. Esta sim seria uma condenação semelhante à de Sísifo considerado o mais astuto dos mortais pela mitologia grega. Sísifo foi condenado por toda eternidade a empurrar, dia após dia, uma enorme pedra de mármore montanha acima. Quando chegava no topo da montanha a pedra rolava de volta para o sopé atraída por força irresistível. Pode-se imaginar destino pior? Não seria essa uma condenação do homem, a de carregar dia após dia o fardo de experiências repetidas, interminavelmente, dada a inevitável limitação da própria criatividade no âmbito da temporalidade?
O estado de consciência mais avançado, o êxtase, alcançado por alguns iogues não é constante. Isso sugere ao observador                      atento que para chegar à sua plenitude o homem deve escapar da temporalidade a que está acorrentado. Portanto a morte biológica seria necessária para a realização da experiência humana mais radical e permanente, ou seja, a união do amor, da alegria, da gratidão e da bondade divinas numa transfiguração radical de cada ser consciente.
Depois de confrontar os elementos da análise que vimos de fazer com o medo de morrer salta à vista o equívoco deste temor. Numa perspectiva evolucionária é evidente que a morte biológica não deve ser encarada como o fim da jornada humana, porém como uma transição da vida temporal para a vida transtemporal, definitiva, livre dos riscos da finitude, sem conflitos consagrada à unidade perfeita do amor infinito. Afinal, há um resíduo imaterial no homem que se esconde na sua capacidade de pensar e no requinte da criatividade artística. Se percebermos a coerência desta análise já não será tão arrasadora a experiência descrita no início deste texto. A morte não seria então uma fatalidade terminal, mas uma necessidade evolutiva do ser consciente. Nessa perspectiva será compreendida no sentido legítimo de sua função como parte de um processo indispensável para a Evolução do próprio homem.

Everaldo Lopes