Faz
muitos anos, numa conversa informal entre amigos, fui desafiado a tecer alguns
comentários sobre a proposta aparentemente extravagante contida no título deste
texto. Não me senti intimado a aceitar o desafio, mas fiquei curioso de
descobrir ao que me levaria um ensaio sobre o tema sugerido. Com este espírito
comecei a escrever sobre o assunto, sem qualquer pretensão de transformar em
tese um simples exercício intelectual. E por falta de maior motivação, esqueci no
computador uma minuta alinhando algumas ideias que me surgiram na primeira
tentativa de escrever sobre “amar com a cabeça e pensar com o coração.” A
postagem anterior neste blog, sobre a “Essência do homem” me fez escarafunchar
os arquivos salvos no meu micro, em busca do rascunho esquecido, para retomar o
tema proposto anos atrás. Comecei indagando-me: Que sentido se poderia atribuir
a este disparate? Percebi então que as resposta às dúvidas subentendidas nesta
pergunta ecoavam no fundo da minha alma, sinalizando a ideia de amar sem paixão e de pensar generosa e
solidariamente. Situações que não se definiriam claramente numa linguagem
dialética, mas poderiam ser expressas em alegorias
significativas de uma realidade psíquica indescritível, porém indiscutível. No
ensaio iniciado à época do desafio tentara representar alegoricamente, e com
algum sucesso, a unidade essencial do
sentimento e do pensamento. Reescrevo, portanto, e amplio as anotações
resgatadas, supondo que a metalinguagem utilizada na tentativa de anular as
contradições da “proposta extravagante” facilite o entendimento do texto precedente
neste blog - a essência do homem.
A
experiência sugere, e o uso consagrou a ideia de ser a cabeça o lugar do pensamento, e o coração o do sentimento. Por definição, o “pensamento é metódico, objetivo, busca
responder dialeticamente aos questionamentos do ser consciente, e seu
desempenho impõe fidelidade a um algoritmo lógico na avaliação da realidade;
enquanto o “sentimento” é caprichoso,
responde aos estímulos percebidos com flutuações do humor, que se acompanham de
repercussões corporais agradáveis ou desagradáveis. Usando uma linguagem literária,
dir-se-ia que o “pensamento” é mais ordenado,
espiritual, estável, e o “sentimento” é
mais dispersivo, visceral, inconstante. A verdade do pensamento é lógica, apoia-se numa realidade metodológica,
portanto virtual; a verdade do sentimento é ontológica apoia-se em si mesma, é uma expressão imediata, livre,
do “ser em si”.
Nas
relações do homem com os “outros” e com o mundo, nem sempre o “cérebro” e o “coração” estão de acordo, porém não são, obrigatoriamente, polos de
uma contradição irreconciliável. Em verdade, o “pensamento” e o “sentimento”
se misturam e se refletem simultaneamente no comportamento pessoal; ambos são indispensáveis
à construção da existência. Admitido esse pressuposto, a proposta de “pensar com o coração e amar com a cabeça” satisfaz,
simbolicamente à aspiração de harmonizar o sentimento e a razão, fazendo-os
fecundarem-se mutuamente na construção de uma unidade existencial.
No
momento atual, assumimos que a Evolução[1] caminha
no sentido de harmonizar as funções do “cérebro”
e do “coração” nas relações
intersubjetivas e objetais do homem com os outros e com o mundo. Na verdade, não há pensamento que não esteja associado a um sentimento; nem sentimento
que não possa ser pensado, ou analisado racionalmente. O produto da síntese da razão e do sentimento, sob o império da coerência lógica e da disciplina
emocional, respectivamente, deverá corresponder a uma decisão responsável, coerente e transparente.
Na prática, porém, respeitando o compromisso ético do vir a ser pessoal e a liberdade existencial, esta decisão guarda uma intimidade maior, ora
com a razão, ora com o sentimento; e quando prevalece o sentimento rebelde,
ocorrem conflitos existenciais difíceis de resolver.
As
lentes da afetividade e da racionalidade revelam nuances diferentes
de uma mesma realidade, acentuando e ampliando, ora o colorido emocional, ora a transparência
racional das relações interpessoais e objetivas de que o homem é capaz. No primeiro caso, o
paradigma é o poeta, levado a exprimir
o encantamento diante do mundo, manipulando o signo verbal na construção de
analogias e metáforas sugestivas da realidade conceitualmente indescritível que
o inspira. Utilizando a linguagem simbólica ele tenta desvelar a intuição de uma
face da realidade oculta aos olhos da razão, apenas pressentida pela
sensibilidade exaltada do artista que a descreve alegoricamente através de uma criação
original. No segundo caso, o racionalista
curioso de compreender o mundo ensaia a análise da realidade objeto de sua
atenção, e a coerência lógica deste ensaio fundamenta a verdade assegurada pela
precisão do exame crítico e pela clareza das conclusões alcançadas.
De
acordo com o senso comum, pensar com a
cabeça e amar com o coração é o
que todo mundo faz espontaneamente, o coração e o cérebro atuando simultaneamente
na elaboração da conduta humana. Uma análise mesmo superficial do comportamento
pessoal revela que nenhuma resposta à realidade que se apresenta a cada um dispensa
a participação simultânea da razão e da emoção. De certo modo, na coerência da intelecção conceitual
já existe uma beleza que produz alguma emoção; assim como no comprometimento emocional
do sujeito consciente com a realidade, a razão discerne um conhecimento
implícito cuja extensão e clareza a emoção despertada amplia ou restringe. Analisadas,
fenomenologicamente, estas situações se implicam numa complexidade dinâmica
surpreendente. Nesta perspectiva, amar
com a cabeça seria mergulhar de forma tão profunda na realidade
fragmentada pela análise que, no limite da razão, o pensamento se ultrapassa
numa vivência intuitiva que consegue amalgamar na mesma experiência um todo
unitário significativo, recuperando a realidade fragmentada pela análise
racional. Diante da impossibilidade de o pensamento atingir a essência das
coisas, amplia-se o compromisso entre a razão e o sentimento, mediante a intuição
que recompõe a realidade pulverizada pela análise num todo cuja beleza significativa deslumbra o coração. Por outro lado,
pensar com o coração, seria
amar tão profundamente que o sentimento, numa tentativa desesperada de fixar o
momento do êxtase estético implode a racionalidade, cobrando do pensamento uma
descrição do momento inspirador, para fixar no tempo a experiência ímpar; e esta
cobrança acaba criando uma aura de
encantamento estético. O “coração”,
sensibilizando o pensamento e sendo por
ele sensibilizado inspira uma descrição simbólica estética do objeto arrebatador,
e a beleza da descrição acaba emocionando, na prosa poética, num poema, numa
tela, numa escultura. Assim, o intelecto atende ao apelo do coração participando
da intuição artística para construir um nicho que abrigue a verdade
apaixonante que irradie uma beleza divinal.
Dessa
forma, a cabeça e o coração se associam na construção da
verdade existencial, embora a “cabeça”
fique sempre devendo ao “coração” a
generosidade da beleza que não consegue representar integralmente numa linguagem
simbólica aliciante que tenta descrever com fidelidade a verdade do coração. É evidente que as duas formas de abordar a
verdade, amando-a, e pensando-a coexistem em proporções
variáveis no mesmo indivíduo com predominância em cada experiência, ora da razão,
ora do sentimento. E a criação artística é a expressão potencializada desta
coexistência inextrincável. Fala-nos disso, com muito talento poético, o
segundo terceto do soneto de Raul de Leoni intitulado “Sabedoria”: “Vê que a
vida afinal, - sombras, vaidades - / É bela, é louca e bela, e que a Beleza / É
a mais generosa das verdades...”
As
operações psíquicas inerentes à interação entre o sentimento e o pensamento, convergindo
ambos para uma síntese transcendental além dos limites funcionais do “coração” e da “cabeça” apontam para o
caráter metafísico da essência do homem.
Everaldo Lopes
[1] Segundo Spencer (1820-1903) e Bergson (1859- 1941),
processo de desenvolvimento natural, biológico e espiritual em que toda a
natureza, com seus seres vivos ou inanimados, se aperfeiçoa progressivamente
(Dic.de Houaiss)