quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Amar com a cabeça e pensar com o coração



Faz muitos anos, numa conversa informal entre amigos, fui desafiado a tecer alguns comentários sobre a proposta aparentemente extravagante contida no título deste texto. Não me senti intimado a aceitar o desafio, mas fiquei curioso de descobrir ao que me levaria um ensaio sobre o tema sugerido. Com este espírito comecei a escrever sobre o assunto, sem qualquer pretensão de transformar em tese um simples exercício intelectual. E por falta de maior motivação, esqueci no computador uma minuta alinhando algumas ideias que me surgiram na primeira tentativa de escrever sobre “amar com a cabeça e pensar com o coração.” A postagem anterior neste blog, sobre a “Essência do homem” me fez escarafunchar os arquivos salvos no meu micro, em busca do rascunho esquecido, para retomar o tema proposto anos atrás. Comecei indagando-me: Que sentido se poderia atribuir a este disparate? Percebi então que as resposta às dúvidas subentendidas nesta pergunta ecoavam no fundo da minha alma, sinalizando a ideia de amar sem paixão e de pensar generosa e solidariamente. Situações que não se definiriam claramente numa linguagem dialética, mas poderiam ser expressas em alegorias significativas de uma realidade psíquica indescritível, porém indiscutível. No ensaio iniciado à época do desafio tentara representar alegoricamente, e com algum sucesso, a unidade essencial do sentimento e do pensamento. Reescrevo, portanto, e amplio as anotações resgatadas, supondo que a metalinguagem utilizada na tentativa de anular as contradições da “proposta extravagante” facilite o entendimento do texto precedente neste blog - a essência do homem.
A experiência sugere, e o uso consagrou a ideia de ser a cabeça o lugar do pensamento, e o coração o do sentimento. Por definição, o “pensamento é metódico, objetivo, busca responder dialeticamente aos questionamentos do ser consciente, e seu desempenho impõe fidelidade a um algoritmo lógico na avaliação da realidade; enquanto o “sentimento” é caprichoso, responde aos estímulos percebidos com flutuações do humor, que se acompanham de repercussões corporais agradáveis ou desagradáveis. Usando uma linguagem literária, dir-se-ia que o “pensamento” é mais ordenado, espiritual, estável, e o “sentimento” é mais dispersivo, visceral, inconstante. A verdade do pensamento é lógica, apoia-se numa realidade metodológica, portanto virtual; a verdade do sentimento é ontológica apoia-se  em si mesma, é uma expressão imediata, livre, do “ser em si”.
Nas relações do homem com os “outros” e com o mundo, nem sempre o “cérebro” e o “coração” estão de acordo, porém não são, obrigatoriamente, polos de uma contradição irreconciliável. Em verdade, o “pensamento” e o “sentimento” se misturam e se refletem simultaneamente no comportamento pessoal; ambos são indispensáveis à construção da existência. Admitido esse pressuposto, a proposta de “pensar com o coração e amar com a cabeça” satisfaz, simbolicamente à aspiração de harmonizar o sentimento e a razão, fazendo-os fecundarem-se mutuamente na construção de uma unidade existencial.
No momento atual, assumimos que a Evolução[1] caminha no sentido de harmonizar as funções do “cérebro” e do “coração” nas relações intersubjetivas e objetais do homem com os outros e com o mundo. Na verdade, não há pensamento que não esteja associado a um sentimento; nem sentimento que não possa ser pensado, ou analisado racionalmente. O produto da síntese da razão e do sentimento, sob o império da coerência lógica e da disciplina emocional, respectivamente, deverá corresponder a uma decisão responsável, coerente e transparente. Na prática, porém, respeitando o compromisso ético do vir a ser pessoal e a liberdade existencial, esta decisão guarda uma intimidade maior, ora com a razão, ora com o sentimento; e quando prevalece o sentimento rebelde, ocorrem conflitos existenciais difíceis de resolver.
As lentes da afetividade e da racionalidade revelam nuances diferentes de uma mesma realidade, acentuando e ampliando, ora o colorido emocional, ora a transparência racional das relações interpessoais e objetivas de que o homem é capaz. No primeiro caso, o paradigma é o poeta, levado a exprimir o encantamento diante do mundo, manipulando o signo verbal na construção de analogias e metáforas sugestivas da realidade conceitualmente indescritível que o inspira. Utilizando a linguagem simbólica ele tenta desvelar a intuição de uma face da realidade oculta aos olhos da razão, apenas pressentida pela sensibilidade exaltada do artista que a descreve alegoricamente através de uma criação original. No segundo caso, o racionalista curioso de compreender o mundo ensaia a análise da realidade objeto de sua atenção, e a coerência lógica deste ensaio fundamenta a verdade assegurada pela precisão do exame crítico e pela clareza das conclusões alcançadas.
De acordo com o senso comum, pensar com a cabeça e amar com o coração é o que todo mundo faz espontaneamente, o coração e o cérebro atuando simultaneamente na elaboração da conduta humana. Uma análise mesmo superficial do comportamento pessoal revela que nenhuma resposta à realidade que se apresenta a cada um dispensa a participação simultânea da razão e da emoção.  De certo modo, na coerência da intelecção conceitual já existe uma beleza que produz alguma emoção; assim como no comprometimento emocional do sujeito consciente com a realidade, a razão discerne um conhecimento implícito cuja extensão e clareza a emoção despertada amplia ou restringe. Analisadas, fenomenologicamente, estas situações se implicam numa complexidade dinâmica surpreendente. Nesta perspectiva, amar com a cabeça seria mergulhar de forma tão profunda na realidade fragmentada pela análise que, no limite da razão, o pensamento se ultrapassa numa vivência intuitiva que consegue amalgamar na mesma experiência um todo unitário significativo, recuperando a realidade fragmentada pela análise racional. Diante da impossibilidade de o pensamento atingir a essência das coisas, amplia-se o compromisso entre a razão e o sentimento, mediante a intuição que recompõe a realidade pulverizada pela análise num todo cuja beleza significativa deslumbra o coração. Por outro lado, pensar com o coração, seria amar tão profundamente que o sentimento, numa tentativa desesperada de fixar o momento do êxtase estético implode a racionalidade, cobrando do pensamento uma descrição do momento inspirador, para fixar no tempo a experiência ímpar; e esta cobrança acaba criando uma  aura de encantamento estético. O “coração”, sensibilizando o pensamento e sendo por ele sensibilizado inspira uma descrição simbólica estética do objeto arrebatador, e a beleza da descrição acaba emocionando, na prosa poética, num poema, numa tela, numa escultura. Assim, o intelecto atende ao apelo do coração participando da intuição artística para construir um nicho que abrigue a verdade apaixonante que irradie uma beleza divinal. 
Dessa forma, a cabeça e o coração se associam na construção da verdade existencial, embora a “cabeça” fique sempre devendo ao “coração” a generosidade da beleza que não consegue representar integralmente numa linguagem simbólica aliciante que tenta  descrever com fidelidade a verdade do coração.   É evidente que as duas formas de abordar a verdade, amando-a, e pensando-a coexistem em proporções variáveis no mesmo indivíduo com predominância em cada experiência, ora da razão, ora do sentimento. E a criação artística é a expressão potencializada desta coexistência inextrincável. Fala-nos disso, com muito talento poético, o segundo terceto do soneto de Raul de Leoni intitulado “Sabedoria”: “Vê que a vida afinal, - sombras, vaidades - / É bela, é louca e bela, e que a Beleza / É a mais generosa das verdades...”
As operações psíquicas inerentes à interação entre o sentimento e o pensamento, convergindo ambos para uma síntese transcendental além dos limites funcionais do “coração” e da “cabeça” apontam para o caráter metafísico da essência do homem.     
                       
            Everaldo Lopes


[1] Segundo Spencer (1820-1903) e Bergson (1859- 1941), processo de desenvolvimento natural, biológico e espiritual em que toda a natureza, com seus seres vivos ou inanimados, se aperfeiçoa progressivamente (Dic.de Houaiss)