domingo, 4 de março de 2012

Sublimação da libido


 
As manifestações do amor humano envolvem peculiaridades culturais relacionadas aos grupos etários, ao nível de maturidade das pessoas envolvidas e suas idiossincrasias. O envelhecimento não anula o desejo, mas o seu deleite é inversamente proporcional às limitações físicas e funcionais que se vão instalando aos poucos com o passar dos anos.  A avaliação pessimista que os idosos fazem sobre a própria performance enseja certa ansiedade. É de esperar que o registro de expectativa desfavorável implique em prejuízo da autoestima dos que assimilam mal os sinetes da idade... e estes são uma maioria expressiva.  Não se pode minimizar este aspecto psicológico quando da auto reeducação do idoso no processo do seu amadurecimento pessoal. Na verdade, para superar as dificuldades inerentes ao envelhecimento o idoso terá que enfrentar a realidade de forma objetiva e inteligente. E isto requer autoconhecimento, flexibilidade afetiva e criatividade, além de muita determinação. Importa muito neste processo, o ambiente social no qual o indivíduo interage.
A experiência do homem maduro, crítico, adverte-o da fugacidade do prazer, e torna-o consciente do vazio existencial inerente ao período refratário[1] do ciclo sexual. Em função disso o homem adulto cioso de suas características psicobiológicas torna-se mais exigente na escolha da/o parceira/o libidinal. Consciente de que a sensualidade despertada pelo objeto do desejo esgota-se na intimidade física, sabe que para manter vivo o interesse pela/o parceira/o, a participação afetiva e terna é essencial. Compreende que para a satisfação plena da libido é imperiosa a coexistência de um sentimento mais profundo do que o de posse, relacionado ao desejo primário. O primarismo atávico alimenta a libido, e a interferência do sentimento terno purifica-o, contribuindo para a sublimação[2] da pulsão sensual. Aliás, as pessoas ciosas da dignidade humana sentem-se incompletas ao participar de uma experiência erótica sem a extensão afetiva indispensável aos contornos do amor humano. Não obstante esta perspectiva, o “nu” anônimo continua a despertar o desejo e as fantasias de intimidades eróticas entre pessoas supostamente amadurecidas. O que demonstra a força da libido originária, difícil de disciplinar, que alimenta a curiosidade erótica, e sugere a luta que cada um empreende na intimidade subjetiva para mantê-la submissa aos cânones culturais vigentes.  
O convite recíproco dos amantes, espontâneo, livre, que inclui potencialidades espirituais caracteriza a relação erótica adulta, amadurecida. Neste contexto a sensualidade é uma força construtiva da dignidade humana quando aplicada nos limites do auto-respeito que se prolonga no respeito ao outro e à Natureza. A libido é o nutriente afetivo arquetípico da espiritualidade encarnada do ser humano. A sensualidade e a espiritualidade não são excludentes. Na prática existencial equilibrada, a primeira é a energia que sustenta a segunda, e esta é o crisol no qual a sensualidade se purifica. Mas na medida em que os anos passam nada é tão fácil, nesta área. A maturidade psíquica e afetiva autoconfiante do homem está sempre aquém do ideal.  Daí porque a auto avaliação estética desfavorável do idoso cria-lhe um estorvo subjetivo ao encontro erótico ainda possível... Ao vivenciar sua incapacidade de seduzir com a própria imagem desfigurada, prudentemente resiste em expor-se ao risco de ser rejeitado numa abordagem eventual... Imaturidade? Incapacidade de assimilar naturalmente o perfil idoso?  Na verdade isso não é fácil para ninguém... é difícil imaginar um padrão estético para o contato sensual de corpos senis.  Tudo se passa como se do ponto de vista estético, o desejo sensual e seu objeto fossem sempre jovens. Na linguagem erótica, a atração entre corpos juvenis e belos é que é natural e promissora... já a aproximação de corpos envelhecidos não deixa margem a uma expectativa exuberante.O/a idoso/a lúcido/a, (vaidoso/a?) identifica no seu desfiguramento físico um obstáculo ao estímulo erótico da/o parceira/o. Todavia, cremos ser possível uma experiência satisfatória entre idosos... mas com uma condição: num contexto em que o envelhecimento do casal, excepcionalmente, decorresse numa convivência amorosa e cúmplice ao longo de muitos anos. Não seria desprezível, portanto, entre os amantes que, unidos emocionalmente, envelheceram juntos. Mas, fora deste detalhe favorável, o desejo erótico que irrompe na alma do/a idoso/a torna-se torturante. Por que na dinâmica deste desejo o alvo mais visado é sempre um corpo jovem, como tal, desejável, porém inalcançável pelo/a idoso/a. Pode parecer exagero, mas no fundo a realidade é esta. É difícil imaginar como um corpo senil possa satisfazer o componente estético do desejo erótico... a não ser, como dissemos antes, que uma relação intersubjetiva profunda construída ao longo de muitos anos de convivência feliz intervenha na dinâmica sensual. Situação que corresponde aos casos excepcionais de almas gêmeas. Fora deste contexto, não é natural que se espere estímulo libidinoso da visão de um corpo marcado pelo tempo. Poder-se-ia até, senso lato, considerar uma violência a imposição a um/a jovem do contato de um corpo idoso em busca de satisfazer a própria libido. Por tudo isso, melhor seria que o desejo envelhecesse também. Sem drama, seria menos problemático envelhecer! Mas é temível que a supressão da libido acabe por arrastar na sua derrocada o próprio desejo de viver, tornando a anosidade uma excrescência existencial insuportável. Quiçá, induzindo a precipitação da morte da criatividade, reduzindo o/a idoso/a, analogicamente, à condição de uma nau à deriva, de velas arriadas, em completa escuridão. Matar a libido no idoso por motivos estéticos e éticos seria como “jogar fora a criança junto com a água do banho”. Portanto é preciso não negar a libido, porém sublimá-la. Encarando-a no seu sentido mais amplo, ela é o substrato atávico do “instinto de vida”, suporte da sublimação e até da própria espiritualidade necessária para dar sustentação à experiência mística. Sublimar no sentido psicanalítico é a solução mais sábia... equivale a redirecionar a energia da libido para os valores humanísticos espirituais, inspirando a criação artística, e a solidariedade traduzida em gestos e obras comunitárias... finalmente, transcendendo-se na vivência mística consubstanciada na apoteose de todas as consciências integradas na unidade absoluta de Deus. Nisto afinal se resumiria a sublimação total da libido, justificando Raul de Leoni em “Ode a um Poeta Morto”, quando diz, falando ao homem: “Que o sentido da vida e o seu arcano / é a imensa aspiração de ser divino, / no supremo prazer de ser humano!” 
Everaldo Lopes


[1] Período que sucede o orgasmo, de total ausência de resposta sexual a qualquer estímulo físico.
[2] Processo inconsciente que consiste em desviar a energia da libido (q. v.) para novos objetos, de caráter útil.