quarta-feira, 18 de maio de 2011

Espiritualidade transparente


Antecedentes.
A consciência reflexiva é uma função de natureza indefinível que só se identifica quando o sujeito pensante toma consciência de algo. A consciência se reconhece, sempre, como consciência de alguma coisa. Dobrando-se sobre si mesma (reflexão) ela se depara com o “nada”. Mas este “nada” não corresponde ao “não ser”, e sim à potência de ser capaz de registrar, simbolicamente, o mundo objetivo na subjetividade do sujeito do conhecimento. Na leitura deste registro, representação da realidade apreendida na relação consciência – mundo, a consciência se recaptura ao reconhecer sua própria subjetividade. Dessa forma, a consciência se identifica a si mesma, transcendendo o servomecanismo neural (córtex cerebral) através do qual se manifesta como função psíquica superior, lastro do conhecimento e do livre arbítrio[1]. Na ação mútua entre a consciência e o “mundo”, o homem constrói a si mesmo exercitando, livremente, suas escolhas pessoais, embora, comece esta jornada heróica a partir de uma situação já estabelecida - a facticidade[2]. Isso faz do homem um “ser para si”[3]. Diferentemente, o “ser em si” [4](ou coisa) é pura determinação de tempo e espaço só percebida como objeto pelo sujeito do conhecimento.
Por outro lado, o cosmo inaugura o espaço e o tempo, mas não sendo responsável por sua própria origem, aponta, retrospectivamente, para um “antes absoluto”. Concepção sem base fenomenológica sustentável, porém logicamente indispensável para justificar o Universo em que vivemos.
Outrossim, desde o Big-bang os mecanismos físico-químicos e biológicos proveram, mediante um “determinismo misterioso”, a “ferramenta” para a construção de uma ordem complexa crescente. Ordem que permite supor uma intenção, um plano deliberado que demanda, necessariamente, atividade consciente. Pois não há ordem sem intenção de alcançar um objetivo consciente! Assim, o ser humano é, naturalmente, conduzido a conviver com a idéia da “consciência absoluta”[5] que presidiu a Evolução, da matéria primitiva à vida consciente. Os físicos quânticos dão o nome de “Consciência Cósmica” a esta “transcendência absoluta” que na linguagem mística é associada à ideia de Deus[6].
Como sinto Deus...
Só consigo simbolizá-Lo como um “Dinamismo Absoluto, eternamente criativo”. Existencialmente, Ele é meu Alter ego mais radical, o totalmente outro, e, todavia, minha realidade mais profunda. Meu destino é reconhecer e cumprir Sua vontade, ou não terei nenhum. Não obstante privo da liberdade na medida em que não sou totalmente condicionado. Deus me transcende ao infinito e, ao mesmo tempo, me é inerente, ao realizar comigo minha própria essência, confirmando-me no exercício do livre arbítrio inerente à condição humana. Sinto que não posso influir no meu Deus, mas, trabalhando, consciente e responsavelmente minha própria realidade psicofísica estou fruindo o Seu poder, ao receber d´Ele  tudo de que preciso para minha máxima realização pessoal.
Sendo Deus totalmente desconhecido, reconheço, todavia, Sua presença, momento a momento, na interação do meu núcleo mais pessoal com os meus semelhantes e com a Natureza. Nesta intimidade solidária com as demais “criaturas” exercito o meu amor a Deus sem conhecê-Lo, assumindo a responsabilidade de prolongar sua Criação, ao contribuir para a construção da “comunidade humana”.  Assim integro-me num “Todo” significativo, exercitando a verdade e a justiça que me transcendem, centrado na coerência existencial do meu “agora” responsavelmente inserido nesta comunidade[7].
Não posso fazer cobranças àquele que me transcende ao infinito, mas, quando caio em desgraça posso suplicar a intervenção divina na minha intimidade respeitosa com o Criador, submetendo-me à Sua vontade.
“- Senhor! Se for possível afastai de mim este cálice!”
Com esta exclamação, submeto-me à Vontade do Criador sem, contudo, desistir da minha própria individualidade. Rendo-me à onipotência misericordiosa de Deus, fazendo um apelo humilde e confiante. E, mesmo não sendo atendido, sem perder a confiança concluo:
“- Senhor! Está tudo consumado; em Vossas mãos entrego a minha alma!”.
A espiritualidade que se desenvolve a partir do contexto relacional consciente e solidário entre as criaturas consiste em vivenciar a experiência ímpar de estar em conexão com um TODO absolutamente confiável, harmônico, completo e inexcedível que se revela numa “presença” universal absorvente. Nesta perspectiva a criatura sabe-se inteiramente à mercê da Vontade do Criador e não tem como modificá-La mediante apelo piedoso, mas não se sente abandonada. Esforçando-se para coadjuvar sua invocação com vivências e ações sociais integrativas, o “ser consciente” cria no seu devir condições para absorver as projeções da Consciência Universal, tornando-se veículo da vontade divina. A interlocução com o “Dinamismo Absoluto eternamente criativo” é existencial, envolvendo escolhas pessoais (consciência local), sempre criativas, organicamente entrelaçadas na unidade sistêmica da Consciência Cósmica[8], e fortalecedoras da comunidade humana universal.
O Dinamismo Absoluto eternamente criativo não depende das Suas criações. Portanto, o homem, por seus supostos “merecimentos” não pode induzi-Lo ao que quer que seja. A sintonia da existência pessoal com o dinamismo divino (consciência cósmica) é que proporciona à criatura a realização do seu destino histórico e transcendental. A interpretação semântica do encontro entre a criatura e o Criador diverge processualmente, quer seja o mesmo (encontro) contextualizado numa perspectiva (espiritualidade) “quântica” como resultado da coincidência da “consciência local” e da “Consciência Cósmica”, quer seja visto do ponto de vista da “espiritualidade tradicional”. Enquanto esta antropomorfiza Deus para um encontro devoto; na “espiritualidade quântica” o encontro é numinoso[9], implícito na experiência da presença de um Deus totalmente desconhecido, mas absolutamente confiável, do qual nos tornamos parceiros, em fazendo bom uso dos dons que d´Ele recebemos.
O fato de ser consciente e livre[10] distingue o homem das demais criaturas, tornando-o responsável por suas escolhas pessoais. Por isso ele precisa dispor de critérios baseados em valores referenciais absolutamente confiáveis. Neste sentido necessita contextualizar-se numa cosmovisão na qual possa ancorar, com total segurança, os valores que nortearão seu vir a ser. Todavia, para construir uma mundividência totalmente confiável teria que arrimá-la numa “transcendência absoluta”. Mas a transcendência absoluta” é inacessível à razão. Sob o ponto de vista estritamente racional, dela nada se pode afirmar ou negar. Portanto, na prática do vir a ser cotidiano, para vencer as incertezas de seu devir, o “ser para si” necessita apoiar-se na “razão e na fé como os dois olhos da alma; na verdade[11] e na crença[12]  como os dois pólos da vida”[13].                                  
Everaldo Lopes


[1] O poder que as pessoas têm de escolher suas ações, no sentido que o “agente”, embora limitado por sua contingência, não é totalmente condicionado por fatores antecedentes, e tem vontade própria.
[2] No heideggerianismo, situação característica da existência humana que, lançada ao mundo, está submetida às injunções e necessidades dos fatos.

[3] Ser que implica na consciência, conhecimento a seu próprio respeito e a respeito do mundo. (Sartre)
[4] Podemos entender um Em-si como qualquer objeto existente no mundo e que possui uma essência definida. (Sartre
[5] Que não depende de ninguém, de coisa alguma; independente, soberano            que não sofre nem comporta restrição ou reserva; inteiro, infinito    que não admite condições, limites; incondicional.

[6] . Princípio supremo de explicação da existência, da ordem e da razão universais, e garantia dos valores morais.
[7]  Agrupamento de todos os homens que se caracteriza por forte coesão baseada no consenso espontâneo dos indivíduos. 
[8] Amit Goswami in “O Ativista Quântico”. Segundo a Teoria Quântica, a realidade são probabilidades que se materializam mediante escolhas da Consciência Cósmica (não localizada) e da consciência pessoal (local). Ed. Aleph.
[9] Segundo Rudolf Otto (1869-1927), teólogo e filósofo alemão, o sentimento único vivido na experiência religiosa, a experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o aniquilamento.  Aurélio Sec.XXI
[10] Liberdade limitada pela própria contingência humana, obviamente.
[11] Produto da razão
[12] Produto da fé
[13] Guerra Junqueiro em “A velhice do Padre Eterno”.