terça-feira, 15 de novembro de 2011

Caminho da humanização


É evidente a coerência do processo evolutivo da vida no sentido da organização de uma estrutura cerebral complexa compatível com a manifestação do psiquismo humano. Na história da Evolução, a complexidade estrutural neuroendócrina resultante deste processo dá suporte à emergência da consciência reflexiva. E a análise fenomenológica deste evento leva ao reconhecimento da subjetividade[1].  
A fenomenologia da consciência ultrapassa as possibilidades espaciais e temporais da matéria... Envolve uma distância virtual entre o “saber” (conhecimento imediato das coisas), e o “saber que sabe” (avaliação crítica do saber imediato), que supõe a capacidade de a consciência transcender-se, ou seja, de sair de si mesma (evento insólito no mundo físico) para ver-se no ato de conhecer, e deliberar sobre o que fazer com a realidade conhecida. Este distanciamento virtual subjetivo permite o exercício do livre arbítrio mediante escolha da ação transformadora do homem sobre o continuum da Evolução da qual ele próprio faz parte. A condição humana se apresenta, assim, com predicados ilimitáveis e intemporais que, todavia, se integram no real sensível como uma alternância, digamos, incorpórea (espiritual) e inseparável da dimensão material do Universo. Quando falamos da alternância espiritual da matéria no nível da condição humana, nos referimos às duas possibilidades inscritas na fenomenologia biopsicológica na qual se alternam, “o ego como função (não como identidade estruturada), e o self "quântico" como hierarquia entrelaçada de possibilidades mais amplas”[2]... dessa forma, a liberdade e espontaneidade criativas dominam a deliberação egoica  e a submissão a condicionamentos passados. Na segunda alternativa está implícita a descontinuidade entre a experiência condicionada, e a confirmação de possibilidades novas. Este hiato (racionalmente ininteligível entre o antes e o depois no encadeamento das idéias) é a marca registrada da descoberta do “novo” (original, inédito). O ato criativo é a manifestação mais ostensiva da alternância incorpórea (espiritual) da matéria, na unidade ontológica do “ser” consciente no mundo. Nesta alternância se inclui a reflexão e o autoconhecimento próprios da consciência reflexiva pessoal[3], contemporânea da capacidade de escolher (liberdade), aptidão que a complexidade cerebral sozinha não é capaz de reproduzir.  Embora impossível de prová-lo, este fato reflete a presença no mundo de um dinamismo absoluto eternamente criativo que transcende a matéria... aliás, pressuposto necessário uma vez que o Universo não se explica por si mesmo.  Este “dinamismo” se prolonga nos predicados específicos do homem que assume um papel transformador do mundo a partir da mudança do vetor da Evolução[4]. Desde então, o homem torna-se co-autor do Universo, redirecionando as ações socioculturais... No homem, portanto, se dá o salto evolutivo mais radical. O esforço evolucionário focado até então no indivíduo adicionará, agora, através do ser consciente, a responsabilidade de construir uma sociedade solidária inspirada no ideal comunitário.   Assim, a inserção do homem nesta escalada implica num processo de socialização que o inclui como sistematizador e objeto da ordem proposta por ele mesmo.  Nesta linha, a individuação[5] será marcada por interdições dos impulsos egoicos, e pela aprendizagem da prática solidária que deve presidir a comunidade humana. No contexto comunitário, a consciência reflexiva ética, responsável, e a liberdade pontificam como fatores determinantes das ações sociais.
 Emergindo com a capacidade de escolher, a condição humana[6] obriga o homem a tomar decisões que, responsavelmente, devem obedecer a critérios...  e para fundamentá-los (os critérios), ou mobiliza os recursos racionais e intuitivos a fim de construir uma visão de mundo na qual se configuram os valores[7] éticos que guiam as escolhas, ou faz um ato de fé na “Palavra Revelada”, inserindo tais valores num contexto religioso. Em cada momento o ser humano atualiza a existência a partir de antecedentes que se refletem no “agora”[8]. Atualização que para ser coerente e solidária, envolve a afirmação voluntária destes valores comportamentais, definindo o caráter pessoal.
Vivendo as etapas evolutivas do seu ciclo vital, enquanto não for vítima de degeneração senil, do nascimento à idade madura, o homem vai se esculpindo existencialmente. Isto significa que as situações que pontuam a existência exigem criatividade do sujeito consciente para manter o equilíbrio social problemático... um permanente devir que deverá ser partilhado com o “outro”, também um ser querente com um projeto próprio.   Daí a sutileza da “Arte de Conviver” (título de uma de nossas postagens anteriores) que se resolve da melhor forma na prática da solidariedade comunitária.
Fazendo bom uso de sua racionalidade, para dirimir os conflitos interpessoais, o sujeito consciente deverá dimensionar a situação problema que se lhe apresentar na sua relação com os outros e com o mundo, confrontando as respostas elaboradas com os valores existenciais assumidos. Assim definirá seu comportamento eticamente correto, obrigando-se a executá-lo, mediante intermediação da vontade. Todos sabem por experiência própria, que a exatidão e confiabilidade das propostas racionais podem conflitar com uma inclinação afetiva divergente relacionada com as chamadas razões do coração... É o momento, então, em que a vontade, ora aliciada pelo argumento racional, ora seduzida pelo sentimento motivador, desempenha o seu papel na escolha... sabendo-se que a afetividade exaltada pela paixão ameaça  as ponderações racionais, e  pode levar a erros comportamentais.
Teoricamente, de escolha em escolha o indivíduo delimita as ações nas relações sociais e define seu caráter pessoal. Lamentavelmente, em muitas situações, a liberdade está cerceada por desvios psíquicos individuais e/ou sociais, que obstruem a escolha livre... criando-se distorções no processo de humanização.
Na intimidade da consciência reflexiva livre e criativa é que se desenha a “dobra”[9] conceito essencial para a compreensão da mudança da seta evolutiva, do aperfeiçoamento biológico[10] para a organização social exemplar[11]. Esta mudança é que transforma o mundo no palco do espetáculo épico da construção da humanidade. O script desta odisséia será redigido pelo próprio homem com as tintas da intuição, da razão, do sentimento e da vontade. Assim caminha a humanidade e nós todos somos atores obrigatórios deste drama portentoso. O melhor desempenho está vinculado à criatividade pessoal, monitorada pela autenticidade no exercício da consciência livre e responsável... prática que se desenvolve ao arrepio de inclinações naturais e conta com a mobilização da vontade no direcionamento das escolhas decisivas para a construção da comunidade humana. Percorrendo esta trilha, o homem deverá construir sua existência em torno de valores universais que propiciem a todos a plenitude da vida coletiva. A autenticidade pessoal se reflete na coerência entre a prática social e os valores comunitários pessoalmente assumidos. Esta concordância depende de um processo complexo de aculturação que vai demarcando trilhas na psique até consolidar um perfil comportamental bem definido. O que dá efetividade ao valor que comanda a ação é a assimilação da prática social comunitária pelas forças vivas da personalidade, contra os desejos egoístas que forcejam numa outra direção. Sem esta compenetração imponderável na dinâmica sutil da humanização, a simples determinação voluntariosa de fazer valer um princípio ético não será bastante, embora constitua um bom começo. Esta consideração nos leva a pensar no dimensionamento do caráter autônomo da “vontade” que não seria apenas uma força cega a serviço da razão, ou do sentimento, como antes proposto, mas o substrato último de toda realidade. Assim pensava Schopenhauer que considerava a vontade o princípio norteador da vida humana, unidade das aspirações e paixões que induzem o homem à ação.
 Potencialmente o homem pode agir como Anjo ou como Demônio. Não é radicalizando, porém, num ou noutro sentido que se alcança a hominalidade. Para ser homem o sujeito consciente há que ultrapassar a dicotomia anjo / demônio numa síntese humanizadora elaborada a partir da “condição humana”[12], através de escolhas consistentes elaboradas por inspiração de valores universais.
O futuro da Humanidade depende do exercício da consciência livre e responsável como força modeladora no processo de “individuação”[13] segundo o modelo do homem sábio e justo...  Esta orientação não é uma decorrência natural, mas implica na ação deliberada do sujeito consciente aplicada ao processo de individuação que para ser eficaz precisa estar comprometido com a integridade da vida coletiva... compromisso que exige do homem escolhas elaboradas  contrarias ao egoísmo atávico. Esta construção corresponde a uma leitura compreensiva do papel do homem no contexto evolutivo. O que Rita Kehl[14] disse em relação à “delicadeza” aplica-se aqui. Substituindo na alocução original “delicadeza” por “sabedoria” e “justiça”, dir-se-ia: “A Sabedoria e a Justiça não fazem parte essencial da condição humana; elas não são a causa da nossa humanidade e sim o efeito dela.”
A “dobra” existencial  já mencionada implícita na mudança de direção do vetor evolutivo, não decorre de um determinismo genético, é o resultado de uma elaboração privilegiada da “condição humana”[15], indispensável à sobrevivência do Homo Sapiens sapiens. Corroborando e ampliando esta afirmação, assim como a confiança a ser depositada no homem, não posso perder a oportunidade de transcrever os quatro últimos períodos do livro de Eduardo Gianetti[16] intitulado “O valor do amanhã”: “Quando a criação do novo está em jogo, resignar-se ao provável e ao exequível é condenar-se ao passado e à repetição. No universo das relações humanas, o futuro responde à força e à ousadia do nosso querer. A capacidade de sonhar fecunda o real, (re)embaralha as cartas do provável e subverte as fronteiras do possível.” Faço apenas um lembrete: “sonhar” de forma ética, coerente com um desfecho significativo da existência pessoal coextensiva da estrutura social comunitária requer um esforço permanente de auto-conhecimento e disciplina emocional.
Everaldo Lopes



[1] Domínio das atividades psíquicas (intelectivas, emocionais, volitivas); espaço virtual interior do sujeito consciente, ao qual só ele tem acesso.
[2] Amit Goswami no livro “Criatividade Quântica”
[3]Faculdade por meio da qual o ser humano se apercebe daquilo que se passa dentro dele ou em seu exterior . Houaiss3

[4] Desvio do vetor evolutivo, do aprimoramento biológico do indivíduo, para a e elaboração de formas cada vez mais perfeitas de organização social. Vide texto anterior.
[5] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961)

[6] Consciência livre e responsável.
[7] Caráter do que, de modo relativo (ou para um só ou para alguns) ou de modo absoluto (para todos), é tido ou deve ser tido como objeto de estima ou de desejo.  Dic. Aurélio sec.XXI.
[8] O momento que reúne as influências imediatas e remotas entre o antes e o depois.
[9] Termo usado por Deleuse para definir o caráter coextensivo do dentro e do fora no território subjetivo onde se dá a mudança pela “curvatura” das forças psicossociais que atravessam a História dando-lhe um sentido particular.
[10] Estruturação extremamente complexa do  Sistema Nervoso Central (SNC) que propicia a manifestação da consciência reflexiva.
[11] Estabelecimento de elos sociais solidários.
[12] Capacidade de agir, consciente, livre  e responsavelmente
[13] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961) Aur, Sec.XXI.

[14] Psicanalista, Analista, Ensaísta.
[15]  O conjunto das características físicas e orgânicas, mentais, psicológicas, afetivas, etc., que, nos seres humanos, são supostamente comuns a toda a espécie e invariáveis, isto é, independentes da influência das sociedades ou culturas específicas em que os indivíduos nascem e se desenvolvem.


[16] Economista, Cientista Social.