quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Vamos pensar um pouco


No processo de humanização, o ser consciente se transcende amando a Verdade, a Beleza e a Justiça. Embora saiba que é problemático o dimensionamento da verdade, é simbolicamente sutil a caracterização da beleza, e muito complexa a dinâmica da justiça possível. Comprometido com a realização pessoal, o homem conduz seu vir a ser valendo-se de referenciais racionais, emocionais e intuitivos, representadas por valores lógicos, estéticos e ético-religiosos em torno dos quais constrói a existência[1]. A caminhada é longa, penosa, e não raro o indivíduo se perde em atalhos enganosos, tomando-os,equivocadamente, como objetivos finais. Uma dessas armadilhas é a prática acrítica de módulos culturais que o arrastam nas correntezas do “mundo errante e vário”; outra esparrela é a ilusão de felicidade montada sobre o prazer sensual.
Heroica é a busca da convergência da sensualidade e da espiritualidade, na qual (convergência) se empenha o homem sedento de verdade, beleza e justiça. Palmilhando sendas estreitas e íngremes, ele busca incansavelmente esta convergência, consubstanciada no equilíbrio existencial consistente entre o anelo do espírito reto e a demanda licenciosa dos sentidos. E se for bem sucedido vivenciará uma plenitude que tangencia o êxtase místico.
As forças biológicas instintuais estão sempre em confronto com as forças espirituais, transcendentes. A sombra animal é mais forte antes da maturidade biopsíquica, situação em que o homem, nas suas relações de gênero, lembra, mesmo, um fauno com veleidades éticas. Mas no caminho da maturidade, vão de sedimentando as interdições que forjam o caráter, e cresce a necessidade de compreender a dinâmica pessoal, comunitária, induzindo o respeito ao outro, humanizando as relações entre indivíduos de sexos opostos. Em outras palavras, num primeiro momento da individuação, com a personalidade ainda mal definida, o jovem é um amontoado de vivências desconexas, soterrando o desejo inespecífico, irrealizado, de existir para algo apaixonadamente significativo. Desejo incômodo enquanto não encontra o seu objeto em circunstâncias muitas vezes hostis. Na maturidade, ainda insatisfeito, o homem busca seu ponto de equilíbrio para fechar um projeto existencial, enfrentando dificuldades que se ampliam para os que ousam traçar seu próprio caminho nem sempre alinhado com as normas estabelecidas. Até que por força do seu arbítrio diz para si mesmo, sem outro apoio ou incentivo além de uma necessidade insólita de auto definição e coerência, peculiares à consciência reflexiva: - Basta! Esta é a minha verdade, o meu padrão de beleza, a minha forma de fazer justiça!  Assim o faz por necessidade, para não soçobrar num caos existencial. Mas, fica sempre por um triz a consumação da paz, da tranquilidade, da resolução das antinomias da existência.
O “basta” que o homem se diz não tem outra sustentação além do afã de dar coerência e consistência ao comportamento escolhido, firmado na capacidade decisória que, em última instância, tira sua força de um ato de fé. Entrementes, ele cultiva a esperança de que ao fim de sua jornada existencial, o fechamento dos ideais assumidos há de ratificar o acerto das escolhas feitas, garantindo a participação na harmonia universal. Agora entendo o poeta quando diz: “E a nossa alma é a expressão fugitiva das coisas. E a vida somos nós, que sempre somos outros. Se as coisas têm espírito, nós somos esse espírito efêmero das coisas, volúvel e diverso, variando, instante a instante, intimamente e, eternamente, dentro da indiferença do Universo”[2].
Uma intuição profética insinua-se na consciência vigilante, mas insegura, levando-a à convicção de que os contrastes se desvanecem e tudo tem sentido na unidade absoluta do “ser” total!
Existir é doloroso. O guru mais sábio pode até mostrar metas valiosas, contudo, cada um de nós terá de construir, penosamente, o seu caminho. Mas como? Uma vez mais, valho-me do Poeta Filósofo que aconselha: “Pratica teus sentidos nobremente, na sensação das coisas belas e harmoniosas, e assim educarás uma alma linda, parecida com tudo que sentires.”... [3] Seguramente, um apelo inerente ao “nível estético” da existência. Todavia, o mesmo Poeta, em outro soneto complementa o dito anteriormente, afirmando: “A beleza é a mais generosa das verdades”[4]... irmanando neste verso genial, a ética, a estética e a razão. Ampliam-se, assim, os horizontes existenciais das relações humanas, com implicação nas relações que envolvem atividade sexual.
É sabido que a sensualidade sem ternura vira erotismo grotesco. Daí a recomendação - “nobremente” - no primeiro verso da estrofe citada que exalta a prática dos sentidos; pois é indispensável acrisolar a sensibilidade estética (do belo e harmonioso), espiritualizando-a pela integração da experiência temporal numa transcendência absoluta (unidade universal).
Não obstante, a alma do Fauno embutida no homem insiste, complicando a vivência de incompletude que o inquieta . Acrescentarei, portanto: - Enquanto não vos libertardes do desejo fauniano exigente devereis fixar os limites extremos do modelo ético existencial que vos propondes, preservando a liberdade pessoal e o respeito à dignidade do outro. A isto se reduz, essencialmente, a dimensão espiritual de uma relação entre um homem e uma mulher, que ainda não está embasada no amor maduro. Esta perspectiva proporcionará maior flexibilidade à avaliação moral das decisões responsáveis, abrindo-se um intervalo existencial no qual a criatividade há de construir tudo o mais. Respeitados estes limites, as nossas escolhas e decisões estarão sempre inscritas na pauta de um humanismo consistente, imantado pelo ideal superior de construir a comunidade humana.
Criatividade é a palavra de ordem, a única via de superação da inércia existencial de caminhar para o nada. O grande problema é que somos todos chamados a definir um “para que” no âmbito das nossas existências. Assim motivados, traçamos o vir a ser pessoal, moralmente dispostos a construir nosso caminho, praticando o livre arbítrio sem ferir a dignidade do “outro”. Teleologicamente, neste contexto, seria razoável dizer: existir para fruir o prazer, seja o dos sentidos praticados nobremente, seja o intelectual e/ou o estético, vertentes destinadas á convergência final numa experiência pessoal significativa.  Existir para exercitar a liderança que nos couber inerente ao poder que nos confere o conhecimento e a força moral para construir a humanidade, conscientes de que o nosso modo de existir dará sentido à Evolução e ao mundo. O “para que” está inserido neste ideal, conferindo-lhe o dinamismo necessário. Foi Nietzsche quem disse, e a experiência pessoal confirma: “Quem tem um ‘para que’, pode suportar qualquer ‘como’.” Sem este suporte, a existência e o mundo parecerão absurdos.
                        Everaldo Lopes


[1] Exercício responsável da consciência.
[2] Raul de Leoni - em A alma das coisas somos nós.
[3] Idem – em  O meu Evangelho.
[4] Raul de Leoni – em Sabedoria.