sábado, 24 de outubro de 2015

Amor e ódio



Amor e ódio são emoções inseparáveis na complexidade psicodinâmica das relações humanas. É surpreendente essa química entre sentimentos aparentemente opostos que se alimentam reciprocamente, ora predominando um, ora prevalecendo outro. Quando um deles reina isoladamente o outro se esconde na profundidade subjetiva. A intimidade entre estas duas emoções revela que elas não são opostas porque não se anulam e até, de certa forma, se reforçam... Pode haver antipatia à primeira vista, mas ao ódio antecede sempre uma relação amorosa ou, pelo menos, de conhecimento. Por isso diz-se com toda propriedade que o verdadeiro oposto do amor é a indiferença e não o ódio que é apenas a sua outra face. Ambos, porém, por motivos psíquico-afetivos complexos mantêm os seus protagonistas unidos. É impossível desliga-los enquanto estiverem empolgados pelo amor ou pelo ódio. A  diferença é que a experiência amorosa é prazerosa, enquanto a do ódio é dilacerante, aflitiva.
As formas de amar se distinguem pelo comportamento dos amantes. O amor selvagem que envolve as pessoas apaixonadas faz suas próprias leis. Ele se apresenta sob a forma de forte emoção e dessa experiência arrebatadora a literatura nos traz exemplos emblemáticos de amores consumptivos e trágicos. Em contraponto com paixões avassaladoras, também há registros literários de ódios destrutivos alimentados por toda uma vida.
Por outro lado, o amor conjugal, berço da família, segue outra linha comportamental. É responsável, comporta a prática do bom senso na sua evolução, submete-se aos padrões éticos do grupo, portanto é disciplinado e controlável. Ele se distingue porque se constrói no convívio respeitoso, carinhoso, terno e responsável dos seus  protagonistas. Metaforicamente, compararíamos a paixão com uma fogueira que produz calor intenso, consumindo-se em cinzas; enquanto o amor conjugal se compararia a um sistema de calefação  autossustentável que mantém estável a temperatura indefinidamente. Nesse último caso, o amor perde sua tonalidade egoísta, purificando-se ao calor da solidariedade que preside os  laços de família nos quais sobressaem a responsabilidade, a amizade e o amor-caridade que busca o bem do outro sem a obrigatoriedade de qualquer recompensa.
O amor selvagem (paixão) é incompatível com o compromisso necessário à preservação da estabilidade social da coletividade humana. Aliás, é oportuno registrar que, por definição, a condição humana se caracteriza pelo exercício da consciência livre e responsável. A coerência dessa prática implica na construção de uma ordem indispensável à sobrevivência da humanidade, o que faz do amor selvagem (paixão) um comportamento marginal do ser humano, ou seja, uma conduta que retarda a evolução da espécie. Por ser indisciplinada, a paixão[1]  cria  entre os seres humanos situações incompatíveis com a própria humanização. A liberdade, diferencial da condição humana, fica coarctada pela paixão. E a consequência disso é fatal. Suprimida a liberdade, o homem perde a dignidade de pessoa reduzindo-se à condição de objeto, e como tal não pode amar. Porque sem liberdade o amor perde seu caráter essencial, transformando-se num sentimento de posse ou de submissão. Ora, o  par apaixonado, por definição, nega-se mutuamente a dignidade de ser livre na medida em que  se deixa escravizar pela paixão. É esta escravidão que transforma os apaixonados em objetos, um para o outro, e como tais, sem liberdade, portanto, privados da possibilidade de amar. Só nessa situação justifica-se a afirmação de Sartre: “o amor é uma fraude”.
Por outro lado, a paixão por um absoluto unificador, objeto de fé,  comporta outras considerações. Nesse caso a paixão corresponde a um ato de entrega consciente, incondicional, ao poder supremo, acolhedor, perfeito por sua própria natureza. Consiste na consagração a um absoluto significativo. Esta doação é a saída mais adequada para a angústia existencial marcada pela vivência torturante da finitude biológica que martiriza o homem. A imersão do homem no contexto de uma totalidade transcendental significativa torna-o participante de uma comunidade universal em que as fronteiras interpessoais são superadas pela intersubjetividade amorosa na qual todos se realizam plenamente numa comunidade solidária.
O amor selvagem e o ódio não são, porém, necessariamente fatais. Mediante rigorosa disciplina da razão e da vontade, funções psíquicas superiores que marcam o ser consciente, é possível controlar as catexes[2] que alimentam as paixões, redirecionando a energia psíquica em favor de ações construtivas da paz coletiva. Esse processo de “sublimação”[3] favorece a atualização da condição humana. Impõe-se, pois, ao homem lutar, com todas as reservas psíquicas, para transcender as paixões menores em favor da paixão maior vivida numa experiência mística.
O grande problema do homem é a conquista da harmonia entre as antinomias implícitas na sua condição de ser consciente livre e responsável. Nessa situação reconhece sua finitude, mas aspira à eternidade, quer tudo conhecer e sabe que seu conhecimento será sempre limitado, deseja poder tudo e tem de admitir a impotência de sua própria contingência. Diante destas contradições insolúveis à luz da consciência clara, estamos convencidos de que o remate do problema humano é místico e não racional. A participação apaixonada  num absoluto transcendental significativo integra o homem na realização suprema de uma comunidade universal solidária onde não há contradições e o amor reina absoluto.
Everaldo Lopes


[1] Sentimento que se sobrepõe à lucidez e à razão
[2] “Aplicação, consciente ou não, de energia psíquica em pessoa, coisa ou ideia” (Aurélio)
[3] Processo inconsciente que consiste em desviar a energia da libido (q. v.) para novos objetos, de caráter útil.