Amor e ódio são emoções
inseparáveis na complexidade psicodinâmica das relações humanas. É
surpreendente essa química entre sentimentos aparentemente opostos que se
alimentam reciprocamente, ora predominando um, ora prevalecendo outro. Quando
um deles reina isoladamente o outro se esconde na profundidade subjetiva. A
intimidade entre estas duas emoções revela que elas não são opostas porque não
se anulam e até, de certa forma, se reforçam... Pode haver antipatia à primeira
vista, mas ao ódio antecede sempre uma relação amorosa ou, pelo menos, de
conhecimento. Por isso diz-se com toda propriedade que o verdadeiro oposto do
amor é a indiferença e não o ódio que é apenas a sua outra face. Ambos, porém, por
motivos psíquico-afetivos complexos mantêm os seus protagonistas unidos. É
impossível desliga-los enquanto estiverem empolgados pelo amor ou pelo ódio. A diferença é que a experiência amorosa é
prazerosa, enquanto a do ódio é dilacerante, aflitiva.
As formas de amar se
distinguem pelo comportamento dos amantes. O amor selvagem que envolve as
pessoas apaixonadas faz suas próprias leis. Ele se apresenta sob a forma de forte
emoção e dessa experiência arrebatadora a literatura nos traz exemplos
emblemáticos de amores consumptivos e trágicos. Em contraponto com paixões
avassaladoras, também há registros literários de ódios destrutivos alimentados
por toda uma vida.
Por outro lado, o amor
conjugal, berço da família, segue outra linha comportamental. É responsável, comporta
a prática do bom senso na sua evolução, submete-se aos padrões éticos do grupo,
portanto é disciplinado e controlável. Ele se distingue porque se constrói no
convívio respeitoso, carinhoso, terno e responsável dos seus protagonistas. Metaforicamente, compararíamos
a paixão com uma fogueira que produz calor intenso, consumindo-se em cinzas; enquanto
o amor conjugal se compararia a um sistema de calefação autossustentável que mantém estável a temperatura
indefinidamente. Nesse último caso, o amor perde sua tonalidade egoísta,
purificando-se ao calor da solidariedade que preside os laços de família nos quais sobressaem a
responsabilidade, a amizade e o amor-caridade que busca o bem do outro sem a
obrigatoriedade de qualquer recompensa.
O amor selvagem (paixão)
é incompatível com o compromisso necessário à preservação da estabilidade social
da coletividade humana. Aliás, é oportuno registrar que, por definição, a
condição humana se caracteriza pelo exercício da consciência livre e
responsável. A coerência dessa prática implica na construção de uma ordem indispensável
à sobrevivência da humanidade, o que faz do amor selvagem (paixão) um comportamento
marginal do ser humano, ou seja, uma conduta que retarda a evolução da espécie.
Por ser indisciplinada, a paixão[1] cria entre os seres humanos situações incompatíveis
com a própria humanização. A liberdade, diferencial da condição humana, fica
coarctada pela paixão. E a consequência disso é fatal. Suprimida a liberdade, o
homem perde a dignidade de pessoa reduzindo-se à condição de objeto, e como tal
não pode amar. Porque sem liberdade o amor perde seu caráter essencial, transformando-se
num sentimento de posse ou de submissão. Ora, o par apaixonado, por definição, nega-se
mutuamente a dignidade de ser livre na medida em que se deixa escravizar pela paixão. É esta
escravidão que transforma os apaixonados em objetos, um para o outro, e como
tais, sem liberdade, portanto, privados da possibilidade de amar. Só nessa
situação justifica-se a afirmação de Sartre: “o amor é uma fraude”.
Por outro lado, a paixão
por um absoluto unificador, objeto de fé, comporta outras considerações. Nesse caso a
paixão corresponde a um ato de entrega consciente, incondicional, ao poder
supremo, acolhedor, perfeito por sua própria natureza. Consiste na consagração
a um absoluto significativo. Esta doação é a saída mais adequada para a
angústia existencial marcada pela vivência torturante da finitude biológica que
martiriza o homem. A imersão do homem no contexto de uma totalidade
transcendental significativa torna-o participante de uma comunidade universal em
que as fronteiras interpessoais são superadas pela intersubjetividade amorosa na
qual todos se realizam plenamente numa comunidade solidária.
O amor selvagem e o ódio
não são, porém, necessariamente fatais. Mediante rigorosa disciplina da razão e
da vontade, funções psíquicas superiores que marcam o ser consciente, é
possível controlar as catexes[2] que alimentam as
paixões, redirecionando a energia psíquica em favor de ações construtivas da
paz coletiva. Esse processo de “sublimação”[3] favorece a atualização
da condição humana. Impõe-se, pois, ao homem lutar, com todas as reservas
psíquicas, para transcender as paixões menores em favor da paixão maior vivida
numa experiência mística.
O grande problema do
homem é a conquista da harmonia entre as antinomias implícitas na sua condição de
ser consciente livre e responsável. Nessa situação reconhece sua finitude, mas
aspira à eternidade, quer tudo conhecer e sabe que seu conhecimento será sempre
limitado, deseja poder tudo e tem de admitir a impotência de sua própria
contingência. Diante destas contradições insolúveis à luz da consciência clara,
estamos convencidos de que o remate do problema humano é místico e não
racional. A participação apaixonada num
absoluto transcendental significativo integra o homem na realização suprema de
uma comunidade universal solidária onde não há contradições e o amor reina
absoluto.
Everaldo Lopes