sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Viver é perigoso

Preocupar-se é cuidar do amanhã, hoje, antecipando inquietações inerentes à incerteza do que está por vir. A pré-ocupação que visa um resultado ou forma um projeto implica em cuidar, hoje, do planejamento inteligente do amanhã, sem inquietações, tendo em vista um objetivo dentro da margem de liberdade e autonomia de cada um. Muitos se torturam, porém, imaginando acontecimentos indesejáveis possíveis no porvir e deixando de viver a experiência do agora. Ora, o futuro chegará, inexoravelmente. Portanto é tolice sofrer por antecipação as incertezas do amanhã; o que for inevitável acontecerá.  Quedar-se em expectativas sinistras ou mesmo auspiciosas sobre as quais não se tem controle é enredar-se em devaneios. E as fantasias pessimistas antecipadas com a imaginação mortificam a alma e podem levar ao desespero. Irreais, elas têm a importância que lhes emprestamos. Em si mesmas são tão inconsistentes como uma sombra, mas se forem assumidas como realidades iminentes terão o poder destruidor de uma força cega da Natureza. Não se deve deixar as fantasias pessimistas criarem raízes. Ao contrário, a fantasia otimista sendo uma expectativa construtiva, tranquilizadora e ética deve ser cultivada... ela também pode ganhar força quando as assimilamos como realidade inquestionável.  Este seria o caso de uma crença no absoluto transcendental criador que se consuma na fé e leva à plena realização existencial.
Construir uma existência que proporcione mais instantes de bem estar interior, paz e felicidade do que de desassossego e infelicidade demanda boa administração das potencialidades intelectuais afetivas e volitivas na circunstância em que se está contextualizado. As metas auspiciosas implícitas no desejo de ser feliz alcançam a plena realização quando fazem parte de projetos definidos aos quais dedicamos nosso empenho; principalmente se vierem ao encontro de dons naturais e contribuírem para a harmonia social.
A existência é um contínuum. Na verdade ela se constrói sobre um corte (vazio) no tempo físico[1].  A experiência temporal para o sujeito consciente se configura no “agora” que definiremos logo mais. Porém é o presente metafísico ou eterno que pontua o acontecer no agora onde, diante do olhar do ser consciente tudo acontece antes de ser transferido para o arquivo da memória. O “presente metafísico” que não passa, assiste imóvel à passagem do tempo físico entendido como a quarta dimensão da matéria. Este presente metafísico é a janela que se abre para a eternidade na subjetividade humana, pela qual o tempo físico é sugado inexoravelmente. Neste sentido, como uma fenda cronologicamente  indefinível no tempo físico, o presente metafísico demarca historicamente o antes e o  depois, separando o passado e o futuro na existência de cada um. Por um mecanismo psicológico complexo o tempo passado é arquivado com rigidez marmórea, em algum escaninho do servomecanismo biopsíquico do homem; enquanto o tempo futuro é reconhecido como projeto sujeito a mudanças antes de tornar-se passado. Os segmentos imediatos do antes (passado) e do depois (futuro) permanecem no “agora”. O primeiro vivido como vivência do passado mais recente, e o segundo como expectativa do que há de vir no momento seguinte, ambas (vivência e expectativa) guardadas em arquivo provisório num lugar qualquer do córtex cerebral. Esta descrição do dinamismo do vir a ser consciente é uma tentativa de representar a complexidade biopsíquica social e espiritual da subjetividade, experimentada como o “agora” que representa na prática o presente psicológico.  Seria insensato ocupar esse intervalo virtual com fantasias inspiradas em lembranças deprimentes ou expectativas sinistras. O presente metafísico ou eterno por ser atemporal é um ponto de observação do qual a consciência identifica a cronologia do tempo físico. Dele descortinam-se lembranças e expectativas que se sucedem, dando a impressão de um movimento temporal do passado para o futuro. O presente eterno (janela da eternidade) tem como representação subjetiva uma vivência permanente de ser[2]. Mas é no agora que vivemos nossas experiências históricas rotineiras ou criativas, cultas, inteligentes, agradáveis ou desagradáveis que materializam o sentimento de ser, de estar vivo, em pleno gozo da liberdade.
Este preâmbulo serve como introdução à compreensão das experiências psicossociais e das introspecções que, dia após dia, preenchem a existência feita de escolhas. A partir do advento da consciência crítica o indivíduo estabelece certa distância subjetiva entre seu ser mais íntimo e a realidade, por isso, capacita-se a julgá-la (a realidade) e fazer escolhas. Então, defronta-se com a interrogação que a vida lhe faz sobre o sentido que deseja imprimir à sua existência. Esta é uma questão cuja resposta não é redutível a um jogo lógico de ideias claras, ela é mais um acorde temático na construção do vir a ser pessoal. Ninguém pode ter certeza absoluta do acerto e consequências da sua resposta à pergunta que lhe faz a vida. A escolha inerente (a resposta) depende de muitas influências positivas umas e negativas outras. É preciso sentir as sutilezas e peculiaridades da existência de cada um, antes de avaliar o trágico ou o patético dos encontros e desencontros que se multiplicam sob todas as bandeiras e sob todos os credos. O reconhecimento da contingência humana é fundamental para a prática da tolerância caridosa que enriquece a solidariedade.
Escapa ao sujeito do conhecimento a essência das coisas, mas não lhe passa despercebida a intuição nebulosa de uma totalidade organizada universal, na qual se apoia a crença em que tudo tem um sentido. Assim a vida consciente tem um sentido no contexto evolucionário, mas à consciência pessoal de cada um cabe descobri-lo (o sentido) e torná-lo presente no mundo através do vir a ser existencial.  Quando a resposta do eu consciente é responsável, contextualizada num todo universal estruturado criativamente significativo garante ao eu agente uma vivência de paz e dignidade mais convincentes do que as certezas racionais. Nesta perspectiva, elabora-se o sentimento de autoestima que flutua ao sabor da eficiência dos esforços empreendidos para manter a coerência da contextualização histórica do que devemos e queremos fazer das nossas vidas. A autoestima se apoia na capacidade de integrar os valores assumidos na dinâmica estrutural psicossocial inerente à realização existencial de cada um, e se confirma subjetivamente mediante a vivência de significação pessoal. Isso implica na definição dos valores em torno dos quais construímos nossas existências. Na prática, esta contextualização se dá no processo da “individuação”[3]. Processo que é eminentemente cultural, portanto envolve sempre antecedentes que nos oferecem fórmulas comportamentais já formatadas. Todavia, nas decisões magnas que ultrapassam a rotina cultural, o sujeito consciente está só e não tem outra garantia para o acerto de suas escolhas além da autoridade ética que ele mesmo se outorga. Quando elas não recebem a chancela dos hábitos e valores culturalmente consagrados, contrariando o que ficou estabelecido culturalmente, batem de frente com a orientação da sociedade organizada sob outra visão de mundo já consagrada. Neste confronto, a sociedade fecha os olhos para toda verdade nova que  contrarie suas crenças, hábitos e costumes. Jesus é o exemplo extremo mais emblemático dessa disputa. Todos sabemos o Seu sacrifício pessoal para sustentar as verdades soberanas que pregou. Talvez este  saber tenha sido a razão que levou Guimarães Rosa a dizer em seu livro[4] que “Viver é muito perigoso”.
                                   Everaldo Lopes





[1] O tempo cósmico no qual os seres sensíveis acontecem; em oposição ao tempo metafísico em que  o presente é uma janela da eternidade que se abre no tempo cósmico.
[2] Enquanto privamos da consciência lúcida, cada um se sente, em essência, o mesmo, da infância à adultidade, não importando que o nosso corpo físico tenha mudado inteiramente morfológica e substancialmente. Ninguém depois de algumas décadas possui um só dos átomos de sua composição bioquímica na infância, mas, não se altera a vivência do “si mesmo”, ou self, centro de toda personalidade, para Jung.  
[3] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961)


[4] “Grande Sertão:Veredas!