Na medida em que evolui a
inversão da pirâmide etária, mais visíveis são os problemas que emergem com a longevidade.
Um número cada vez maior de idosos divide, hoje, o mesmo espaço geográfico e
social com pessoas mais jovens. E nem todos os idosos conservam sua autonomia. Não
raro se tornam dependentes. Alguns exigem dos filhos e netos tratamento especial,
tomando-os como seus cuidadores naturais. Imaginam que lhes é devida a mesma
atenção e zelo que dispensaram aos seus descendentes enquanto recém-nascidos,
crianças e adolescentes. Como logo veremos esta cobrança é só aparentemente justa.
Não obstante, o zelo dos filhos e netos dedicados, respectivamente, aos seus
pais e avós reflete nobreza de caráter merecedora de admiração e respeito.
Enquanto os jovens crescem, os seus “cuidadores”
envelhecem, invertendo-se os termos da relação de dependência. Realidade que dá
suporte a eventuais queixas dos idosos que se sentem abandonados. E, exatamente
porque as suas reivindicações explícitas ou silenciosas são conflitantes com a
realidade que vivem seus descendentes, a situação deve ser avaliada
objetivamente para evitar atitudes passionais no equacionamento dos problemas
suscitados, e no encaminhamento de soluções equânimes. Estes problemas envolvem
conflitos afetivos, econômicos, sociais e políticos cuja abordagem superficial pode
confundir o julgamento das pessoas envolvidas.
Do ponto de vista prático,
os cuidados básicos (alimentação, abrigo e proteção) com o recém-nascido e as
crianças menores são absolutamente necessários, e não admitem discussão nem restrições.
Com variações mínimas, a cultura prevalente coloca a responsabilidade desses
cuidados sobre os ombros dos pais biológicos, ou sucedâneos. O que à primeira
vista parece razoável, uma vez que o filho foi gerado por iniciativa do casal, e
assumido, espontaneamente pelos pais adotivos, quando for o caso. No modelo
social atual, aos pais compete maior responsabilidade no apoio material educacional
e moral ao filho até que este conquiste autonomia jurídica e econômica. A
Escola Pública oferece ajuda expressiva, porém ainda insuficiente tendo em
vista a assistência integral ao jovem até sua completa formação. Com o passar
dos anos aumenta a autonomia do filho e decresce a influência parental. Todavia,
a esta altura da vida os seus descendentes já assumiram compromisso moral e
material com mulher e filhos, formando uma nova família, a sua própria, e absorvidos
por esta responsabilidade, se não forem ricos estarão impossibilitados de dar assistência total aos seus ascendentes carentes.
Neste ponto teve influência decisiva a mudança dos parâmetros sociais inerente
à transformação da família extensa[1]
(patriarcal entre os povos da antiguidade clássica), na família departamental
ou elementar[2].
Dependendo das finanças dos descendentes, a soma das despesas com duas famílias
em ambientes diferentes cria obstáculos econômicos e administrativos
ponderáveis. Muitas vezes as dificuldades se tornam críticas, configuradas em situações de insolvabilidade financeira,
cruéis para os idosos carentes; e dramáticas para o filho que não dispõe dos
recursos necessários para atendê-los. O exame desapaixonado da questão mostra a
íntima relação dessas dificuldades com o tipo de organização social vigente, o
que demonstra a importância do modo como o Estado burocrático encara o problema.
Afinal, do ponto de vista evolutivo a procriação objetiva a sobrevivência da
espécie[3].
O amor entre pais e filhos é uma prática virtuosa no decorrer do processo
evolutivo. Porém, por mais amor que os pais dediquem ao seu rebento este está
predestinado a servir à sociedade e à espécie. Portanto o Estado, teoricamente responsável
pelo equilíbrio social e econômico da vida coletiva deveria assumir a maior
cota de responsabilidade nos cuidados e obrigações, hoje, atribuídos aos pais
biológicos ou adotivos. Outrossim, por justa retribuição, também deverá dar
cobertura assistencial integral aos idosos que já não podem mais contribuir
materialmente para a sociedade que ajudaram
a construir, incapazes, agora, de suprir as próprias necessidades básicas. No
regime democrático, esta reorientação da política assistencial pressupõe
atuação inteligente, íntegra e efetiva do Legislativo, do Executivo e do
Judiciário, refletindo os anseios da própria sociedade. O problema se agrava
pela prática cínica, instalada no âmbito de uma economia de mercado que, através
de competição não raro aética e do estímulo ao acúmulo de bens materiais torna
o rico cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre. Neste clima, a
cooperação e a partilha, inerentes ao comportamento solidário já não inspiram
as iniciativas comunitárias, sejam governamentais ou pessoais. A prática social
solidária, nobre e justa fica limitada a opções generosas de espíritos
sensíveis movidos por sentimentos caridosos. Tudo isso leva a enfatizar a
necessidade de criar mecanismos institucionais de participação do Estado na
assistência a ser dispensada aos cidadãos no começo e no fim de suas vidas quando
não podem dar conta de suas próprias necessidades. Tendo em vista a
globalização da economia, a amplitude dos problemas expostos não se restringe
mais a uma questão ética familiar, mas tem que ver com o equilíbrio da vida no
Planeta e, consequentemente, envolve a própria Evolução. Portanto o Estado,
representado pelos Poderes constituídos não pode omitir-se das responsabilidades
que lhe cabem na solução dos problemas peculiares às crianças, aos jovens e aos
idosos. Todavia, além dos ajustes formais do comportamento político dos
gestores públicos, faz-se necessária a prática solidária entre os componentes
da sociedade organizada.
No momento histórico em que
vivemos, a ausência do Estado e do exercício extensivo da solidariedade deixam
desamparados os economicamente excluídos, com prejuízo mais ostensivo para os infantes,
adolescentes e idosos que não contam com a assistência dos familiares aos quais
faltam os recursos financeiros necessários. Situações muitas vezes
caracterizadas por dramas familiares incontornáveis.
Everaldo Lopes