quarta-feira, 30 de maio de 2012

A convivência das gerações


Na medida em que evolui a inversão da pirâmide etária, mais visíveis são os problemas que emergem com a longevidade. Um número cada vez maior de idosos divide, hoje, o mesmo espaço geográfico e social com pessoas mais jovens. E nem todos os idosos conservam sua autonomia. Não raro se tornam dependentes. Alguns exigem dos filhos e netos tratamento especial, tomando-os como seus cuidadores naturais. Imaginam que lhes é devida a mesma atenção e zelo que dispensaram aos seus descendentes enquanto recém-nascidos, crianças e adolescentes. Como logo veremos esta cobrança é só aparentemente justa. Não obstante, o zelo dos filhos e netos dedicados, respectivamente, aos seus pais e avós reflete nobreza de caráter merecedora de admiração e respeito.
 Enquanto os jovens crescem, os seus “cuidadores” envelhecem, invertendo-se os termos da relação de dependência. Realidade que dá suporte a eventuais queixas dos idosos que se sentem abandonados. E, exatamente porque as suas reivindicações explícitas ou silenciosas são conflitantes com a realidade que vivem seus descendentes, a situação deve ser avaliada objetivamente para evitar atitudes passionais no equacionamento dos problemas suscitados, e no encaminhamento de soluções equânimes. Estes problemas envolvem conflitos afetivos, econômicos, sociais e políticos cuja abordagem superficial pode confundir o julgamento das pessoas envolvidas.
Do ponto de vista prático, os cuidados básicos (alimentação, abrigo e proteção) com o recém-nascido e as crianças menores são absolutamente necessários, e não admitem discussão nem restrições. Com variações mínimas, a cultura prevalente coloca a responsabilidade desses cuidados sobre os ombros dos pais biológicos, ou sucedâneos. O que à primeira vista parece razoável, uma vez que o filho foi gerado por iniciativa do casal, e assumido, espontaneamente pelos pais adotivos, quando for o caso. No modelo social atual, aos pais compete maior responsabilidade no apoio material educacional e moral ao filho até que este conquiste autonomia jurídica e econômica. A Escola Pública oferece ajuda expressiva, porém ainda insuficiente tendo em vista a assistência integral ao jovem até sua completa formação. Com o passar dos anos aumenta a autonomia do filho e decresce a influência parental. Todavia, a esta altura da vida os seus descendentes já assumiram compromisso moral e material com mulher e filhos, formando uma nova família, a sua própria, e absorvidos por esta responsabilidade, se não forem ricos estarão impossibilitados  de dar assistência total aos seus ascendentes carentes. Neste ponto teve influência decisiva a mudança dos parâmetros sociais inerente à transformação da família extensa[1] (patriarcal entre os povos da antiguidade clássica), na família departamental ou elementar[2]. Dependendo das finanças dos descendentes, a soma das despesas com duas famílias em ambientes diferentes cria obstáculos econômicos e administrativos ponderáveis. Muitas vezes as dificuldades se tornam críticas, configuradas em situações de insolvabilidade financeira, cruéis para os idosos carentes; e dramáticas para o filho que não dispõe dos recursos necessários para atendê-los. O exame desapaixonado da questão mostra a íntima relação dessas dificuldades com o tipo de organização social vigente, o que demonstra a importância do modo como o Estado burocrático encara o problema. Afinal, do ponto de vista evolutivo a procriação objetiva a sobrevivência da espécie[3]. O amor entre pais e filhos é uma prática virtuosa no decorrer do processo evolutivo. Porém, por mais amor que os pais dediquem ao seu rebento este está predestinado a servir à sociedade e à espécie. Portanto o Estado, teoricamente responsável pelo equilíbrio social e econômico da vida coletiva deveria assumir a maior cota de responsabilidade nos cuidados e obrigações, hoje, atribuídos aos pais biológicos ou adotivos. Outrossim, por justa retribuição, também deverá dar cobertura assistencial integral aos idosos que já não podem mais contribuir materialmente para  a sociedade que ajudaram a construir, incapazes, agora, de suprir as próprias necessidades básicas. No regime democrático, esta reorientação da política assistencial pressupõe atuação inteligente, íntegra e efetiva do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, refletindo os anseios da própria sociedade. O problema se agrava pela prática cínica, instalada no âmbito de uma economia de mercado que, através de competição não raro aética e do estímulo ao acúmulo de bens materiais torna o rico cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre. Neste clima, a cooperação e a partilha, inerentes ao comportamento solidário já não inspiram as iniciativas comunitárias, sejam governamentais ou pessoais. A prática social solidária, nobre e justa fica limitada a opções generosas de espíritos sensíveis movidos por sentimentos caridosos. Tudo isso leva a enfatizar a necessidade de criar mecanismos institucionais de participação do Estado na assistência a ser dispensada aos cidadãos no começo e no fim de suas vidas quando não podem dar conta de suas próprias necessidades. Tendo em vista a globalização da economia, a amplitude dos problemas expostos não se restringe mais a uma questão ética familiar, mas tem que ver com o equilíbrio da vida no Planeta e, consequentemente, envolve a própria Evolução. Portanto o Estado, representado pelos Poderes constituídos não pode omitir-se das responsabilidades que lhe cabem na solução dos problemas peculiares às crianças, aos jovens e aos idosos. Todavia, além dos ajustes formais do comportamento político dos gestores públicos, faz-se necessária a prática solidária entre os componentes da sociedade organizada.
No momento histórico em que vivemos, a ausência do Estado e do exercício extensivo da solidariedade deixam desamparados os economicamente excluídos, com prejuízo mais ostensivo para os infantes, adolescentes e idosos que não contam com a assistência dos familiares aos quais faltam os recursos financeiros necessários. Situações muitas vezes caracterizadas por dramas familiares incontornáveis.
 Everaldo Lopes


[1] Constituída pela associação de duas ou mais famílias elementares.
[2] Constituída pelo casal e filhos.
[3] Ler neste blog “Aspectos éticos da sexualidade”