terça-feira, 24 de setembro de 2013

Caráter missionário da Medicina



A assistência aos enfermos fazia parte da ação caridosa dos monges nos mosteiros da Idade Média. Laicizou-se depois para acompanhar a evolução científica e tecnológica. À medida que a Ciência médica evoluía, já não bastava a solidariedade dos religiosos, exigiam-se conhecimentos e habilidades especiais para assistir com eficiência as pessoas enfermas. Essa qualificação específica dos cuidadores dos enfermos ficou cada vez mais complexa e cara. Ao mesmo tempo, em função do avanço tecnológico, fizeram-se indispensáveis equipamentos especiais dispendiosos, para a execução de procedimentos diagnósticos e terapêuticos. Evidentemente, o custo para a formação do médico, construção, instalação e manutenção de ambulatórios e hospitais excede as possibilidades de simples doações caridosas. Como se sabe, os mosteiros e conventos se mantêm de doações e do trabalho artesanal dos monges que vivem em comunidade. Nenhum membro da coletividade monástica é remunerado, todo ganho do trabalho coletivo reverte para a manutenção da instituição monacal. A assistência prestada aos doentes pelos religiosos não visava qualquer remuneração pessoal, resultava, sim, da solidariedade, de um compromisso missionário fruto do amor ao próximo.
 Na conjuntura moderna, os cuidados médicos deveriam, então, ser assumidos pelo Estado. A este caberia remunerar os membros da coletividade que se propusessem executar a atividade médica. Ao desvincular a relação médico/paciente de qualquer tipo de lucro material imediato contornar-se-ia a comercialização eticamente inaceitável do ato médico. A dignidade humana exige que os serviços médicos jamais sejam negociados como um bem de troca. E como extensão desta exigência, evidencia-se a natureza eminentemente missionária da medicina. Afinal, essencialmente, o cuidado médico não é negociável posto que se propõe salvaguardar a vida humana que não tem preço. É necessário que na hora do atendimento o médico se atenha exclusivamente à cura e ao bem estar do paciente, sem visar qualquer ganho material atrelado ao ato médico. A esta realidade vincula-se o princípio Constitucional que determina ser a saúde um “direito do homem e um dever do Estado”. Lamentavelmente, o Estado descumpre seu dever, e os médicos se distanciam da vocação missionária. Como profissionais liberais eles se sentem à vontade para vender seus serviços. Porém são arbitrários ao cobrar pelo atendimento; não há como estabelecer critérios para estimar o valor de troca deste serviço. É fácil calcular o valor dos bens de consumo e dos serviços que geram riqueza material, pela quantidade de trabalho necessário para produzir estes bens e serviços. Mas este critério de avaliação não serve para aferir o valor do ato médico cujo produto é o bem estar físico, mental e espiritual de um ser humano. Esses bens pessoais inerentes ao modo de ser próprio do homem são inegociáveis. A eficácia do trabalho médico é indissociável da abordagem singular, de cada caso. Até porque cada ser humano é uma originalidade inconfundível. Se cada caso demanda atenções específicas, e a avaliação do trabalho médico transcende o critério quantitativo, não há como aferir quanto vale um ato médico. Dentro desta lógica, cada homem carrega o peso de toda humanidade. Qualquer procedimento médico encerra uma responsabilidade ímpar. Uma simples injeção intramuscular e uma cirurgia complexa podem igualmente levar à cura ou à morte. Não obstante os riscos inerentes, as decisões terapêuticas devem ser tomadas oportunamente e, muitas vezes, sob pressão; tudo depende da ação pronta e competente do médico diante de uma chance de cura que não se repete; não há tempo a perder.  Por tudo que ficou dito, a atividade médica precisa ter o caráter de uma resposta incondicional, competente e criativa forjada pela sensibilidade e responsabilidade despertadas pelo pedido ostensivo ou silencioso de ajuda, do enfermo. E diante desse apelo, para atender sua dimensão ética existencial, o médico precisa ser dotado de caráter exemplar, competência, e profundo sentimento de solidariedade para com o seu próximo. A verdade é que, pondo a assistência médica no nível de uma relação profissional entendida como atividade que gera riqueza material, o paciente seria para o seu médico, ao mesmo tempo, um ser humano carente de cuidados e uma possibilidade de ganho material. Ambigüidade que torna impossível separar, na relação “profissional” médico-paciente, a ganância e a solidariedade. Por isso, ao engajar-se num esquema de produção, o médico aliena-se do seu sacerdócio. No contexto de uma economia competitiva, a prática missionária da Medicina se torna um desafio para o Estado e para o Médico. Idealmente o Estado teria que satisfazer fartamente as necessidades pessoais e familiares do médico a fim de evitar que ele seja obrigado a tirar de uma relação de serviço diretamente remunerado pelo paciente o recurso financeiro de que precisaria para viver digna e confortavelmente com sua família. O médico, por sua vez terá que ser suficientemente competente, responsável e solidário. Não obstante, a questão não se restringe a uma opção simples. Vivendo numa sociedade economicamente competitiva, muito precocemente os indivíduos são absorvidos pelo modo de existência prevalente e passam a viver de acordo com os valores do sistema econômico vigente sem questioná-lo. Erich Fromm nos adverte que os dados empíricos, antropológicos e psicanalíticos tendem a demonstrar que "ter" e "ser" são dois modos fundamentais de existência cujas características determinam diferenças no comportamento social. É fácil associar o modelo profissional e o missionário, respectivamente, às experiências de "ter" e de "ser.
No sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, visando o lucro, alguns procedimentos assistenciais propedêuticos e terapêuticos têm alto custo adicional o que coloca o médico numa situação incômoda no modo “ter” de existir. Ao mesmo tempo em que se amplia seu poder de curar, subtrai-se a liberdade do médico de agir de acordo com sua consciência missionária. Por motivos óbvios, o elevado custo adicional destes procedimentos impede que o médico faça uso deles na atenção dispensada a todos os seus pacientes; criando-se, inevitavelmente, diferença cruel entre o atendimento dos pobres e dos ricos. Não há solução fácil para questões de tal complexidade. Para converter as pessoas e instituições ao modo “ser” de existir compatível com a atividade missionária seria preciso mudar radicalmente os determinismos socioeconômicos que condicionam o modo “ter” de existir. O meio termo para sair do impasse sem modificar a prática econômico-social implícita no modo de existência prevalente, hoje, o que se pode fazer, efetivamente, será socializar a assistência médica mediante controle total desse setor, pelo Estado. Na vigência do sistema capitalista são óbvias as dificuldades técnicas e administrativas para o resgate efetivo das obrigações do Estado com a saúde das pessoas. Tendo em vista contornar as distorções inevitáveis no modo “ter” de existir, como dissemos anteriormente, o “profissional” da saúde deverá ser subvencionado pelo Estado para poder viver confortavelmente com sua família, inclusive com oportunidades de estudar e aperfeiçoar-se nas habilidades que lhe são exigidas. Nestas circunstâncias não se avaliaria o custo do ato médico, mas quanto se deveria investir para oferecer ao médico e sua família as melhores condições de vida, liberando-o para prestar seu trabalho a quem dele precisasse sem qualquer retribuição material imediata do enfermo. Ao mesmo tempo, é fundamental que o Governo promova as condições de trabalho necessárias para que o médico possa oferecer o melhor atendimento, indistintamente, a todos os enfermos que demandem seus cuidados. Outrossim, impõe-se que o Estado ponha em prática um extenso projeto de educação sanitária, e de saneamento básico como parte de um amplo programa de saúde coletiva. Tudo isso parece um sonho muito distante, mas não há outro caminho. Seria estulto admitir que numa sociedade capitalista todas as pessoas, indistintamente, possam pagar assistência médica de alto padrão.
A socialização da prática médica no bojo de uma superestrutura socioeconômica de livre mercado seria uma excrescência utópica! Diriam muitos. Todavia, cremos ser possível criar um bolsão socialista para a assistência universal à saúde da população numa economia de mercado, mediante forte investimento público, e elevado compromisso moral dos Governos e dos médicos. Todavia, convenhamos, esta proposta excede muito as expectativas sinalizadas pelos indicadores que revelam o estágio atual do desenvolvimento humano[1]. Um olhar crítico para a realidade percebe sem dificuldade que o grande obstáculo é a adesão universal dos homens ao exercício ético da existência; ou seja, a prática da condição humana representada pela consciência pessoal e responsabilidade social. Todavia presumimos com grande margem de probabilidade que o investimento maciço do Governo e o compromisso moral de governantes e governados tornariam sustentável a assistência médica ampla e gratuita à saúde, no sistema capitalista. O modo “ser” de existir poderia prevalecer num setor da economia vinculada ao modo “ter” de existir, disciplinando as relações de trabalho no setor considerado.
A humanidade está distante de organizar-se em comunidade. Esperamos, todavia, que os homens venham a perceber, coletivamente, que sua completa realização será o fruto maduro da orientação que preside a experiência de "ser", e não da que perfaz a experiência de "ter”. As ações pertinentes ao modo "ser" de existir são a única maneira de impedir a destruição da espécie, seja a instantânea, anunciada pelo “cogumelo” resultante da explosão atômica, seja a que se prenuncia estampada nos corpos desnutridos, famintos, doentes, nos grandes bolsões de pobreza espalhados nos países ao sul do equador, e até no seio das nações desenvolvidas.      
 Everaldo Lopes


[1] “O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida resumida do progresso a longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde. O objetivo da criação do IDH foi o de oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento.”